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Quem é esse tal de Žižek (?)
Por Rodrigo Barros, em colaboração com o Colunas Tortas.
Poucos filósofos conseguem a façanha de se tornarem ícones ainda vivos não somente no mundo acadêmico, mas inclusive fora dele. Slavoj Žižek
entra nesse seleto grupo composto por figuras já conhecidas, como
Jean-Paul Sartre, Michel Foucault e Peter Sloterdijk. Descrito como “o
filósofo mais perigoso do Ocidente” pela New Republic, Žižek
ganhou fama por aliar alta teoria, abstração filosófica e psicanálise
com cultura popular, humor mordaz e exemplos cotidianos. Mas esses
rótulos e generalizações escondem uma densa obra que permanece
desconhecida, distante do grande público que consome apenas seus artigos
em jornais e revistas, além dos seus vídeos no YouTube.
É bem verdade que alguns de seus livros
auxiliam nesta imagem de filósofo popular, já que visam tornar ideias
acessíveis ao grande público de forma mais branda, sem adentrar em áreas
mais complexas. E eles não devem ser considerados desprovidos de valor
por este motivo, mas temos que nos ater a não repousar nosso olhar
somente neste material caso nosso objetivo seja explorar mais a fundo.
Como estudioso da obra de Slavoj Žižek,
me pego constantemente revisitando várias vezes os seus escritos no
intuito de esclarecer pontos turvos, ou de deixar ainda mais claros
aqueles que acredito ter iluminado. Muitas vezes acabo encontrando
coisas novas e – mais do que eu gostaria – acabo escurecendo outras que
achava já ter resolvido. É um trabalho que não termina e que nem
terminará, mas para os que estão começando ou que, por algum motivo, tem
o interesse em saber mais do vocabulário zizekiano, este texto se
propõe a apontar um caminho. Aviso de antemão que este caminho não é
único e que pode, com o passar do tempo, adquirir outras configurações
já que não serve apenas para ajudar o leitor; serve para ajudar este que
vos escreve da mesma maneira.
Slavoj Žižek (o “Ž” tem som de “G”)
nasceu no ano de 1949 na Eslovênia, que na época fazia parte da extinta
Iugoslávia. Graduou-se em filosofia e logo depois doutorou-se na mesma
área, mas foi impedido de exercer a profissão de professor universitário
por causa do seu pensamento tido como heterodoxo e não marxista: seus
textos não eram bem vistos pelo status quo intelectual de seu
país, caracterizados pela ortodoxia. Sem muitas alternativas lhe restou
ir para o exterior, mais exatamente a França, onde estudou e concluiu um
doutorado em psicanálise com Jacques-Alain Miller e François Regnault.
Ao contrário de muitos intelectuais que
se trancam em suas especializações, Žižek demonstra uma saudável
capacidade para caminhar por diferentes áreas do conhecimento, numa
clara abordagem interdisciplinar. Da filosofia para a psicanálise, com a
teoria social contemporânea, a antropologia e até as ciências
cognitivas – sem falar da cultura popular, do cinema, da música e da
literatura. Contudo, não devemos pressupor que ele anda sem norte, pois o
maior mérito de uma abordagem ampla é ser capaz de retornar para a
morada com aquilo que adquiriu em outros espaços. Žižek é antes de tudo
um filósofo e sua produção está engajada primordialmente com a
filosofia.
A partir deste ponto podemos elaborar o
que chamo de tripé zizekiano. São as principais fontes e as influências
que dão suporte para o esloveno fundamentar suas ideias e suas teorias, e
que estão presentes em praticamente todos os seus livros:
- Primeiro, o idealismo alemão de Kant, Fichte, Hegel (principalmente) e Schelling.
- Em seguida, o marxismo de Karl Marx e também da Escola de Frankfurt.
- Por último, mas não menos importante, a psicanálise de Jacques Lacan.
De Hegel, Žižek herdará a paixão pela
dialética e pelo retorno de categorias como verdade e
totalidade/universalidade – contra a maré pós-moderna que coloca de lado
estas questões. Do marxismo de Marx e da Escola de Frankfurt virá o
olhar sobre as contradições, assim como a crítica do capitalismo e da
ideologia. E com a psicanálise lacaniana virá o contraponto do sujeito,
do inconsciente das pulsões libidinais.
Em termos mais didáticos, o marxismo
procura compreender as engrenagens da sociedade até os seus pontos mais
elementares, enquanto que a psicanálise nos abre o universo inconsciente
dos sujeitos que compõem a sociedade. Temos aqui não um conflito por
qual abordagem é mais apropriada, como as divergências teóricas da
sociologia clássica entre Emile Durkheim (a sociedade é o que molda o
indivíduo) e Max Weber (a ação individual é o que molda o social), mas
sim a produção de uma análise baseada na união de duas disciplinas
fundamentalmente dialéticas que se ramificaram para além dos seus pais
fundadores (Marx e Freud), mas que nunca os abandonaram e sempre acabam
tendo que realizar algum retorno até eles.
Questão de Ideologia
No início da década de 1980 o bloco
soviético já se encontrava em crise, o que resultaria em seu desmanche
na década seguinte. Com a Iugoslávia socialista não era diferente, e o
enfraquecimento do regime permitiu brechas para a oposição ganhar
terreno, com maior abertura para os dissidentes e marginalizados. Žižek
ganhou algum destaque durante esse período, trabalhando como tradutor
(traduziu obras de Derrida, Lacan e Althusser para o esloveno) e
escrevendo artigos para revistas e periódicos de diferentes países.
Em 1989, com a publicação do seu primeiro
livro em inglês, Žižek se tornará reconhecido internacionalmente. O
livro recebeu o título de The Sublime Object of Ideology (Eles
não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia, Zahar, 1992) e foi
lançado numa coleção coordenada pelos filósofos Ernesto Laclau e
Chantal Mouffe, destinada ao que é denominado pós-marxismo.
No livro, Žižek propõe que o conceito de
ideologia como é defendido pelo marxismo tradicional é insuficiente e
que precisa de um novo rumo. Sua tese é de que a ideologia não consiste
em uma falsa consciência e não reside na casa do saber, mas sim na
morada inconsciente e no campo das práticas – aqui ele traça uma clara
conexão com a teoria da ideologia desenvolvida por Louis Althusser. Ele
avança no sentido de afirmar que a ideologia contemporânea se realiza
por meio de uma fantasia social (Lacan), defendendo que a mesma não
encobre a realidade dos sujeitos, mas que a realidade em si, como é
vivida espontaneamente, já é ideologia pura, pois somente através desse
artifício que se é capaz de enxergar a sociedade como um todo completo e
harmônico, quando na verdade a sociedade em si é uma fantasia criada
para excluir o antagonismo (conceito desenvolvido por Laclau e
Mouffe). A fantasia ideológica não se opõe a realidade; ela estrutura a
própria realidade social, sempre tentando apagar as pistas da sua
impossibilidade. Para saber mais sobre o conceito de ideologia em Žižek,
recomendo a leitura do meu artigo mais aprofundado, disponível aqui.
Rumo a uma teoria radical
Não podemos correr o risco de qualificar
Žižek apenas como um marxista no sentido clássico do termo, embora ele
endosse muitas das teses marxistas. O erro presente nesta classificação
se deve ao fato do que ela carrega consigo: um pacote de pressupostos
que Žižek definitivamente não endossa. Mesmo que se diga um comunista
irredutível, devido ao seu pensamento heterodoxo, ele não enxerga um
inevitável futuro rumo ao paraíso terreno. Do seu ponto de vista, a
história não caminha para um futuro inescapável de progresso – na
verdade não caminha para lugar algum em específico e tudo pode
acontecer.
Os diálogos com Ernesto Laclau e Chantal
Mouffe também o coloca dentro da esfera do pós-marxismo, mas mesmo este
diálogo apresenta limites. Laclau e Mouffe não consideram mais a
existência de uma classe específica para a realização da revolução
social (proletariado) ou mesmo de um evento global de insurreição contra
o capital. Ambos buscaram saídas em novos grupos, minorias e movimentos
de esquerda na América Latina, fortalecendo correntes populistas e
socialdemocratas, com intervenções mais locais. Žižek aqui se mostra
completamente contra esta estratégia que qualifica como “reformista” e
insuficiente, pois coloca questões menores na frente do grande
adversário de onde emana toda o poder: o capitalismo global.
O esloveno, portanto, não tece críticas
somente dirigidas aos adversários políticos mais evidentes (a direita
conservadora/liberal), como também mira na esquerda atual, considerando
boa parte dela um entrave tão problemático quanto a própria direita se
esta persistir em não se renovar. Podemos encontrar esses temas no livro
Bem-Vindo ao Deserto do Real! (Boitempo, 2003), onde nos
deparamos rapidamente com a polêmica frase “Com essa esquerda, quem
precisa de direita? ”. Žižek não se contenta com as alternativas
presentes e advoga por saídas radicais.
Quais seriam os meios de renovar a
esquerda mundial? Para uma política de emancipação radical, não devemos
agir na esfera do possível, mas exigir o impossível. A esfera do
possível é sempre definida pela ideologia hegemônica, pelas forças que
movimentam o poder; enquanto que a política do impossível surge da
subversão e da ação insurgente, destruindo o conformismo que paralisa.
Esses pontos são apresentados em duas densas obras: Às Portas da Revolução
(Boitempo, 2005), onde Žižek fará um retorno aos escritos de Lênin, nos
mostrando o que podemos aprender com o líder revolucionário russo; e Em Defesa das Causas Perdidas
(Boitempo, 2011), avaliará as experiências revolucionárias mais
relevantes do passado, tentando trilhar possíveis saídas para o futuro.
Aqui embarcamos numa também polêmica tese de que as experiências como a
revolução francesa de Robespierre e de toda a Revolução Russa não foram
radicais o suficiente. Nesta obra ele também trava um intenso diálogo
com expoentes intelectuais da esquerda, apresentando as brechas nas
teorias de Antonio Negri e Michael Hardt, assim como criticando
ferrenhamente a razão populista de Laclau.
É importante frisar que Žižek reconhece o
fracasso do socialismo real e não levanta bandeiras de países que ainda
se encontram neste cenário (Cuba, Coréia do Norte, China), mas não vê
nisto um obstáculo para a defesa do comunismo. Neste aspecto, ele
defende A Hipótese Comunista do filósofo e amigo Alain Badiou,
segundo a qual o comunismo não deve funcionar como um fim, mas sempre
como um horizonte inalcançável que continua a mover nossos passos para
frente – tente, erre; tente novamente, erre menos.
Por onde começar?
O número de questões abordadas por Žižek é
realmente grande, e não nos cabe aqui tentar dissecar todas elas – este
seria um trabalho monumental, digno talvez num outro momento e com mais
fôlego. Mas por onde deve-se começar a leitura das obras? Do mais leve
ao mais complicado talvez? Definitivamente, se você não possui uma boa
bagagem teórica em filosofia, psicanálise e teoria social, não comece
por A Visão em Paralaxe, um grande monstrinho tanto em
quantidade de folhas como em densidade de escrita que irá fazer com que
qualquer leigo fuja. Outro ponto importante e ruim de se alertar é que
um de seus mais importantes livros, Eles Não Sabem o que Fazem: O Sublime Objeto da Ideologia, encontra-se esgotado há anos no Brasil e que só pode ser adquirido em sebos ou através de cópias digitais em péssimo estado.
Um dos seus livros mais fáceis é também um dos mais divertidos: Como Ler Lacan,
publicado pela editora Zahar. Aqui Žižek se propõe a abordar os
principais temas presentes na obra de Jacques Lacan, mostrando que não é
impossível ler aquele que é considerado um dos mais difíceis autores da
psicanálise francesa. Com isso nos apresenta vários conceitos,
categorias e lógicas que iremos encontrar em seus outros trabalhos mais
densos, onde a psicanálise lacaniana está sempre presente. O cinema e a
literatura estão presentes, assim como as piadas e as referências aos
mais íntimos comportamentos e reações subjetivas, tornando-se palpáveis
de serem vistas em nós mesmos.
Bem-vindo ao deserto do Real!, O Ano em que Sonhamos Perigosamente e Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa
também não bons pontapés, já que temos nesses vários artigos diversos
temas e que podem ser lidos de maneira independente um do outro. A
crítica ao capital, à esquerda tradicional e a ideologia também se
encontram nesses textos menores, mas não menos importantes.
Em seguida a essas leituras, indico um livro de Glyn Daly chamado Arriscar o Impossível
no qual Slavoj Žižek é o entrevistado. Aqui nós temos contato com
vários dados biográficos únicos, além de um vasto histórico de formação e
abordagem de muitos aspectos de sua obra, o que pode ajudar a
enriquecer a leitura, esclarecer alguns obstáculos e escurecer outros
mais, e isso não é necessariamente ruim, diga-se de passagem. Logo
depois me aparecem na mente Violência (igualmente uma coletânea
de textos que, embora também funcionem de forma independente um do
outro, ganham mais sentido se lidos em conexão um com o outro, e que
procuram mostrar outros semblantes dos movimentos e espasmos de
violência social) e Vivendo no Fim dos Tempos (neste livro, o
esloveno procura demonstrar que o capitalismo global enfrenta problemas
críticos, cíclicos, e que perpassa por algo semelhante com os cinco
estágios do luto mental na tentativa de se lidar com crises).
Problema no Paraíso também é uma tentativa acessível de rever (tomar um ar) e atualizar pontos cruciais apresentados em Vivendo no Fim dos Tempos
e em outras obras, revisitando temas e redescobrindo análises e
problematizações. Neste ponto o leitor já terá percebido as repetições
de Žižek, mas também verá que aquilo que ele repete também ganha um
acréscimo, como um incansável exercício de olhar novamente para aquilo
que escreveu.
Não foi mencionado anteriormente, mas
Žižek também tem um pé na teologia, embora se declare um ateu convicto
no seu sentido mais materialista. Ele defende que há um legado
importante no cristianismo que deve ser defendido pela herança
emancipatória radical, além de promover interpretações polêmicas e
complexas a respeito de textos bíblicos, eventos religiosos e rituais
hegemônicos; essas teses são bem abordadas em quatro títulos: O Absoluto Frágil, O Sofrimento de Deus, A Monstruosidade de Cristo (estes dois anteriores foram escritos juntamente com teólogos ligados a organizações religiosas) e Sobre a Crença.
Se houve sangue para chegar até aqui, há de enfrentar as obras mais densas, que ao meu ver começam por Em Defesa das Causas Perdidas e Às Portas da Revolução. O embate com a esquerda tradicional aqui alcança seu mais alto ápice e também temos certas sínteses do seu trabalho. Será em O Sujeito Incômodo, A Visão em Paralaxe e Menos que Nada: Hegel e a Sombra do Materialismo Dialético
que Žižek realizará suas maiores e mais densas elaborações teóricas, em
trabalhos que buscam não fechar completamente suas ideias, mas
alavancar os grandes alicerces do seu trabalho mais importante. São
textos mais complexos, difíceis e de alto nível abstrativo – obviamente
são os menos lidos. Mas não devem ser de forma alguma evitados caso se
queira realmente estudar o autor.
Existem ainda quatro documentários
disponíveis na internet (e com legendas em português) em que Žižek é o
narrador/protagonista em cena. O primeiro deles foi lançado em 2004 e
chama-se A Realidade do Virtual, que consiste numa grande
palestra de mais de uma hora de duração em que Žižek explora a tríade
lacaniana e a esmiúça no sentido de explicar suas próprias construções
teóricas. Em 2005 foi lançado Žižek!, onde acompanhamos o
filósofo por vários países e locais diferentes, da sua casa até as mesas
redondas onde se discute inúmeros temas e polêmicas inflamadas. Em 2006
saiu The Pervert’s Guide to Cinema (em tradução livre, O Guia
Pervertido do Cinema), dirigido pela cineasta Sophie Fiennes, onde Žižek
se torna um narrador que explica fenômenos da realidade social, da
psique e da subjetividade através dos filmes, com engenhosas
interpretações de clássicos da arte que, segundo ele, é a mais perversa
de todas. Por fim, dando continuidade à parceria com Sophie Fiennes,
temos The Pervert’s Guide to Ideology (2012), onde o cinema –
mas não somente o cinema – é utilizado para tornar evidente as
construções ideológicas vigentes em nosso mundo, como a ideologia
católica, militar, liberal etc.
Não temos muitas introduções críticas
(nenhuma, praticamente) do pensamento de Slavoj Žižek no Brasil (ainda),
o que nos força a fazer um trabalho mais saudável: ler o original e não
viciar a leitura na interpretação de terceiros.
Neste caso, leia e erre. Leia novamente e erre menos.
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