*ler na íntegra em:
http://www.cefetsp.br/edu/eso/valerio/hobbesjanine.html
HOBBES: o medo e a esperança
(Do livro: Os clássicos da política, vol. I, org. Francisco C. Weffort, Ed. Ática, 1989, 54-77)
Prof. Dr. Renato Janine Ribeiro (Prof. da USP)
O mais difícil de se entender no pensamento de Thomas
Hobbes - melhor dizendo, a chave para entender o seu pensamento - é o
que ele diz do estado de natureza. Sabemos que Hobbes é um
contratualista, quer dizer, um daqueles filósofos que, entre o século
XVI e o XVIII (basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da
sociedade está num contrato: os homens viveriam, naturalmente, sem poder
e sem organização - que somente surgiriam depois de um pacto firmado
por eles, estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação
política.
No século XIX e mesmo no XX, quando se firmaram as
concepções modernas da história e da ciência social, os contratualistas
foram muito contestados.
Ao iniciar uma interpretação sociológica do direito,
na metade do século XIX, Sir Henry Maine - por exemplo - criticou-os
asperamente: seria impossível (dizia) selvagens que nunca tiveram
contato social dominarem a tal ponto a linguagem, conhecerem uma noção
jurídica tão abstrata quanto a de contrato, para que pudessem se reunir
nas clareiras das florestas e fazerem um pacto social. Na verdade
(continuava), o contrato só é possível quando há noções que nascem de
uma longa experiência da vida em sociedade.
A guerra se generaliza - Começamos por
essa crítica porque espontaneamente, quando um homem do século XX lê os
contratualistas, ele sente a mesma estranheza que Maine. E por isso é
preciso ver que erro Maine cometeu. Raro, ou nenhum, contratualista
pensou que selvagens isolados se juntam numa clareira para fazer um
simulacro de constituinte. Voltaremos a isso depois (ao ver o que é
ciência política para Hobbes). Por ora, só isso: o homem natural de
Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que vive em sociedade. Melhor
dizendo, a natureza do homem não muda conforme o tempo, ou a história,
ou a vida social. Para Hobbes, como para a maior parte dos autores de
antes do século XVIII, não existe a história entendida como
transformando os homens. Estes não mudam. É por isso que Hobbes, e
outros, citam os gregos e romanos quando querem conhecer ou exemplificar
algo sobre o homem, mesmo e seu tempo.
Como o homem é, naturalmente?
"A natureza fez os homens tão iguais,
quanto ás faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se
encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito
mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em
conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente
considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer
benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque
quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o
mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que
se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.
Quanto ás faculdades do espírito (pondo de lado as
artes que dependem das palavras, e especialmente aquela capacidade para
proceder de acordo com regras gerais e infalíveis a que se chama
ciência; a qual muitos poucos têm, e apenas numas poucas coisas, pois
não é uma faculdade nativa, nascida conosco, e não pode ser conseguida -
como a prudência - ao mesmo tempo que se está procurando alguma outra
coisa), encontro entre os homens uma igualdade ainda maior do que a
igualdade de força.
Porque a prudência nada mais é do que experiência,
que um tempo igual igualmente oferece a todos os homens, naquelas coisas
a que igualmente se dedicam. O que talvez possa tornar inaceitável essa
igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria, a
qual quase todos os homens supõe possuir em maior grau do que o vulto;
quer dizer, em maior grau do que todos menos eles próprios, e alguns
outros que, ou devido à fama ou devido a concordarem com eles, merecem
sua aprovação.
Pois a natureza dos homens é tal que, embora sejam
capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência, maior
eloquência ou maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos tão
sábios como eles próprios; porque vêem sua própria sabedoria bem de
perto, e a dos outros homens à distância. mas isto prova que os homens
são iguais quanto a esse ponto, e não que sejam desiguais. Pois
geralmente não há sinal mais claro de uma distribuição eqüitativa de
alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com a parte que
lhes coube. (Leviatã, cap. XIII, p. 74)
Nesse texto célebre - e o que causou maior
irritação contra Hobbes - ele não afirma que os homens são absolutamente
iguais, mas que são "tão iguais que...": iguais o bastante para que
nenhum possa triunfar de maneira total sobre outro. Todo homem é opaco
aos olhos de seu semelhante - eu não sei o que o outro deseja, e por
isso tenho que fazer uma suposição de qual será a sua atitude mais
prudente, mais razoável. Como ele também não sabe o que quero, também é
forçado a supor o que farei. Dessa suposições recíprocas, decorre que
geralmente o mais razoável para cada um é atacar o outro, ou para
vencê-lo, ou simplesmente para evita rum ataque possível: assim a guerra
se generaliza entre os homens. Por isso, se não há um Estado
controlando e reprimindo, fazer a guerra contra os outros é a atitude
mais racional que eu posso adotar (é preciso enfatizar esse ponto, para
ninguém pensar que o "homem lobo do homem", em guerra contra todos, é um
anormal; suas ações e cálculos são os únicos racionais, no estado de
natureza.)
"(Da) igualdade quanto à capacidade
deriva a igualdade quanto á esperança de atingirmos nossos fins.
Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é
impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no
caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às
vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao
outro.
E disto se segue que, quando um invasor nada mais tem
a recear do que o poder de um único outro homem, se alguém planta,
semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de
esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para
desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também
de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo
perigo em relação aos outros.
E contra esta desconfiança de uns em relação aos
outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a
antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de
todos os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao
momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para
ameaçá-lo. E isto não é mais do que sua própria conservação exige,
conforme é geralmente admitido.
Também por causa de alguns que, comprazendo-se em
contemplar seu próprio poder nos atos de conquista, levam estes atos
mais longe do que sua segurança exige, se outros que, do contrário, se
contentariam em manter-se tranqüilamente dentro de modestos limites, não
aumentarem seu poder por meio de invasões, eles serão incapazes de
subsistir durante muito tempo, se se limitarem apenas a uma atitude de
defesa. Consequentemente esse aumento do domínio sobre os homens, sendo
necessário para a conservação de cada um, deve ser por todos admitido.
Por outro lado, os homens não tiram prazer algum da
companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer),
quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. Porque
cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele
se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou
de subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que a tal se
atreva (o que, entre os que não têm um poder comum capaz de os submeter a
todos, vai suficientemente longe para levá-los a destruir-se uns aos
outros), por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor,
causando-lhes dano, e dos outros também, através do exemplo.
De modo que na natureza do homem encontramos três
causas principais de discórdia. Primeiro, a competição, segundo, a
desconfiança; e terceiro, a glória.
A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em
vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os
primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas,
mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para
defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso,
uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja
diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus
parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.
Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em
que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em
respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e
uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a
guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele
lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é
suficientemente conhecida.
Portanto a noção de tempo deve ser levada em conta
quanto á natureza da guerra, do mesmo modo que quanto à natureza do
clima. Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou
três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias
seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real,
mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há
garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz. (Ibidem, cap.
XIII, p. 74-6).
Hobbes tem perfeita consciência de que essa
definição há de chocar seus leitores, que se prendem à definição
aristotélica do homem como zoon politikon, animal social. Para
Aristóteles, o homem naturalmente vive em sociedade, e só desenvolve
todas as suas potencialidades dentro do Estado. Esta é a convicção da
maioria das pessoas, que preferem fechar os olhos à tensão que há na
convivência com os demais homens, e conceber a relação social como
harmônica. Por isso Hobbes acrescenta um apelo á experiência pessoal:
"Poderá parecer estranho a alguém que
não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim
dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns
aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando nesta
inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela
experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que
quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; que
quando vai dormir fecha suas portas; que mesmo quando está em casa
tranca seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários
públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser
feita.
Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar
armado; de seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e
servidores, quando tranca seus cofres? Não significa isso acusar tanto a
humanidade com seus atos como eu o faço com minhas palavras? Mas nenhum
de nós acusa com isso a natureza humana. Os desejos e outras paixões do
homem não são em si mesmos um pecado. Nem tampouco o são as ações que
derivam dessa paixões, até ao momento em que se tome conhecimento de uma
lei que as proíba; o que será impossível até ao momento em que sejam
feitas as leis; e nenhuma lei pode ser feita antes de se ter determinado
qual a pessoa que deverá fazê-la" (Ibidem, cap. XIII, p. 76)
O que Hobbes pede é um exame de consciência: "conhece-te a ti mesmo".
Estamos carregados de preconceitos, acha Hobbes, que vêm basicamente de
Aristóteles e da filosofia escolástica medieval. Mas o mito de que o
homem é sociável por natureza nos impede de identificar onde está o
conflito, e de contê-lo. A política só será uma ciência se soubermos
como o homem é de fato, e não na ilusão; e só com a ciência política
será possível construirmos Estados que se sustentem, em vez de tornarem
permanente a guerra civil.
"[...] há um ditado que ultimamente
tem sido muito usado; que a sabedoria não se adquire pela leitura dos
livros, mas do homem. Em conseqüência do que aquelas pessoas, que regra
geral são incapazes de apresentar outras provas de sua sabedoria,
comprazem-se em mostrar o que pensam ter lido nos homens, através de
impiedosas censuras que fazem umas às outras, por trás das costas. Mas
há um outro ditado que ultimamente não tem sido compreendido, graças ao
qual os homens poderiam realmente aprender a ler-se uns aos outros, se
se dessem ao trabalho de fazê-lo: isto é, Nosce te ipsum, "Lê-te a ti mesmo".(...)
INÍCIO
Nenhum comentário:
Postar um comentário