sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Eu sou a crise


*via amigo Wilson

https://medium.com/@larusso/eu-sou-a-crise-91f6bab69756#.c4m4se5ut


Eu sou a crise

Por Larusso.

Imagina uma casa onde vivem eu, você e mais cinco pessoas. Nascemos e morreremos nela. Ninguém entra, ninguém sai.
Mas tudo bem. Tudo que precisamos tem nessa casa. É suficiente pra todo mundo. Tudo que conhecemos foi criado por nós, ou por nossos pais e avós que também nasceram nela. O que não conhecemos será criado pelos nossos filhos e pelos filhos deles.
Nessa casa tem de tudo. Tudo mesmo. Nossas soluções e nossos problemas. A água fica nela. Potável e o esgoto. Às vezes, tratamos. O lixo, por exemplo, fica na casa. Às vezes, cuidamos disso.
A gente produz nossa própria comida. Tem pra todo mundo. Mas nós desperdiçamos o que seria suficiente para alimentar duas das sete bocas. Um de nós passa fome todos os dias e pode morrer a qualquer momento por conta disso.
Nós temos computadores. Cada um tem o seu, mas nunca todos são usados ao mesmo tempo. Quando o computador de alguém quebra, nós jogamos no quintal. Às vezes, enterramos. Eventualmente, reciclamos e consertamos. Mas tem uma hora que não tem jeito. Não vale a pena arrumar porque está ultrapassado e isso não é vantajoso financeiramente a nenhum de nós.
Pois é, nessa casa existe dinheiro. E, por isso, cofres. Temos um sistema financeiro. Fazemos empréstimos e cobramos juros entre nós. Apostamos uns nos outros quando achamos que alguém vai produzir algo legal e vender pros demais, ficando com mais grana. Assim, um de nós consegue acumular mais dinheiro. Muito mais. Infinitamente mais e assim centraliza poder de negociação.
Por outro lado, sempre tem alguém completamente fora do jogo, porque está com uma dívida impagável. Ou diminuindo o ritmo da produção, entrando em crise.
De tempos em tempos, pelo menos um de nós é essa pessoa. Hoje sou eu, mas amanhã é você. Dizemos que o fulano entrou em recesso. Parou de crescer. Quando a coisa chega ao limite, ele quebra, como se fosse uma máquina. Não consegue mais fazer nada. A gente para de emprestar dinheiro pra ele, porque acreditamos que ele não vai mais pagar.
Nós mesmos convencionamos que todos os sete precisam seguir produzindo coisas e acumulando dinheiro pra que tudo esteja bem. Ou seja, para viver, precisamos ser dignos disso, através do nosso trabalho e daquilo que produzimos. Nessa casa não tem lugar pra vagabundo que não trabalha. Ainda que o mais rico de nós, que tem muito mais, infinitamente mais, na prática, não produza nada além de assinaturas.
Ele vive às custas da grana acumulada, fruto de muito suor de seus antepassados, e dos contratos que tem. Estes fazem com que todos os outros produzam por ele no presente e no futuro, por quatro gerações.
A pessoa que tem mais dinheiro que os outros, muito mais, infinitamente mais, criou uma “agência de risco”. Uma sala com papéis, ramais, reuniões e cafezinhos. Ela aponta pros outros quem é legal, ou não, pra “investir”. Esse é o nome que demos pras nossas apostas, que são embasadas cientificamente.
Assim, a pessoa mais rica tem ainda mais poder, centralizado em si próprio, e todos os outros têm mais segurança para investir nas pessoas que ela escolhe.
Pra sair do recesso, é preciso produzir mais. Ou seja, fazer mais comida, computadores, tirar ouro do quintal, cavar um buraco até achar petróleo, construir um quarto a mais na casa, ou um viaduto pra aquecer a economia. Mas tudo isso é excedente, porque na nossa casa já tem de tudo pra todo mundo. Está sobrando, inclusive.
Só que está mal distribuído. Até a pessoa que está em crise pode ter o suficiente. Mas, como ela diminuiu o ritmo, pode ser que ela seja a próxima a ficar sem comida e, quem sabe, morrer a qualquer momento por conta disso. Por isso, ela merece menos crédito.
O fato é que depois que inventamos o dinheiro, especulação e os quartos individuais, pelo menos um de nós sempre está em crise. Tudo leva a crer que vamos continuar passando por isso. Mas, como ninguém quer ser o infeliz da vez, ficamos tentando passar a bomba um pro outro.
Já tentaram dividir tudo igualmente na força. Mas deu problema, porque esse movimento centralizou o poder de novo, e ainda mais.
Essa casa se chama Terra e na verdade não existem sete, mas sete bilhões de pessoas. Não tem só uma pessoa passando fome, mas um bilhão. E também não temos uma só pessoa acumulando mais, muito mais, infinitamente mais.  

Temos 67. São 67 pessoas no mundo todo com tanto dinheiro quanto 3,5 bilhões de humanos, a metade mais pobre da humanidade.
Por que essa diferença acontece? Se temos recursos pra todo mundo, por que temos crises, fome e exclusão?
Porque a gente age como se a escassez fosse real. Jogamos o jogo. Entramos no esquema. Não somente a pessoa mais rica. Mas também eu e você.
Eu, que estou aqui escrevendo, não sou a pessoa passando fome, nem a que tem muita grana. Você também não. Nós somos, sempre, os outros. Aqueles que passam despercebidos e não têm nada a ver com isso. Afinal, a gente nunca acha que o problema é com a gente.
Mas é.
Os 67 alimentam as crises e nós alimentamos eles. Nós damos poder a eles todos os dias.
Somos nós que aceitamos trabalhar pras empresas desses 67. E pras empresas que aceitam trabalhar pras empresas desses 67. Achamos que estamos tirando dinheiro deles. Mas, na verdade, estamos fazendo suas fortunas crescerem. Eles dizem que geram empregos e distribuem riqueza. Mas só contratam quem pode gerar lucro e fazer a diferença aumentar. Ou seja, nós mesmos.
Somos nós que sempre queremos mais e mais. A gente até pode dizer que não quer ser um desses bilionários. Mas na megasena a gente joga. Almejamos ganhar mais. Queremos viajar o mundo, comprar mais computadores, casas na praia e chocolates que os 67 vendem. Sem deixar, claro, de fazer uns investimentos que continuem alimentando nosso poder de consumo. Enquanto não ficamos ricos, apostamos na bolsa, na poupança, entregamos nossa grana pra quem pode fazer ela aumentar. Os bancos. Os 67.
A gente até pode achar errado esse acúmulo desenfreado. Mas somos nós quem compramos um negocinho da China que é mais barato. Nós que não fazemos ideia de onde vem e pra onde vão nossos computadores, nossas roupas, nossa comida. Mesmo assim, continuamos consumindo. A gente merece, depois de uma semana de trabalho pesado.
Nós subsidiamos o sistema através das nossas escolhas inconsequentes. Isso é a crise. Eu sou a crise. E você também. A crise não é econômica. Não é brasileira. É uma crise sistêmica.
Essa crise “da Dilma” vai passar. E depois vai vir outra. Vai passar. E depois outra. Porque é assim que funciona esse sistema. A recessão não é o problema. O problema é sistêmico. É o modelo de centralização que alimentamos.
A gente pode pensar que a gente não tem escolha. Mas a gente tem. Nós podemos dizer "não". Podemos dizer "não" aos produtos, aos serviços, aos empregos, aos investimentos, aos investidores.
E podemos, assim, tornar essas instituições irrelevantes.
Sabe por que a economia para de crescer? Porque a gente não precisa crescer mais.
Sabe quando a indústria para de crescer? Quando a gente não precisa mais dela.
Sabe por que as grandes empresas têm cada vez mais dificuldade de contratar e segurar as cabeças pensantes? Porque as cabeças mais pensantes já se ligaram que esse modelo faliu.
Por isso, o problema e a solução somos nós. Eu e você. E também o cobrador de ônibus e também o bilionário. São as nossas escolhas que geram o que temos.
Eu também não sei como tudo isso vai acontecer e estou embebido num mar de contradições. Escrevo este texto do meu computador Apple, usando a internet da TIM. Já fiz uns tantos trabalhos pros 67, diretamente e indiretamente.
Eu ainda não fui no talo. Mas, nas minhas experimentações, diante das minhas limitações, tenho percebido pistas dia após dia. Escolha após escolha.
Mudanças assustam. Temos medo do desconhecido. Mas eu acho que viver nessa crise que enxergamos assusta ainda mais.
A mudança é pessoal. Gradual e firme. Rápida e leve. Autônoma e livre. Precisamos de autossuficiência distribuída e conectada. Autoconhecimento, confiança e colaboração. Abertura e generosidade.
Precisamos deixar de produzir mais e passar a distribuir melhor. Deixar de crescer e passar a celebrar a suficiência. Tornar irrelevante as agências de risco, o governo, as instituições financeiras, a indústria, os 67 e todas as formas de centralização de poder. A gente precisa alimentar sistemas que distribuem e fluem. E não que centralizam e acumulam.
O fim da crise sistêmica passa por uma mudança radical de modelo, de postura e de estilo de vida. Provoca escolhas, privações e esforços. Mas também qualidade de vida, compaixão e esperança.

Originalmente publicado no meu blog, onde escrevo todos os dias.
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Larusso

Aqui no Medium eu requento os textos mais importantes que publico no www.larusso.com.br/blog





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