*matéria citada por Celso Lungaretti aqui:
http://sarauxyz.blogspot.com.br/2016/02/meu-jesus-e-o-que-andava-sobre-as-aguas.html
A volta do Jesus revolucionário
Um novo livro afirma que o Jesus pacifista foi uma invenção dos evangelistas e sugere que, na vida real, ele foi mais um Che Guevara que uma Madre Teresa de Calcutá
RODRIGO TURRER
23/08/2013 - 08h00 - Atualizado 23/08/2013 08h00
Livros sobre Jesus são garantia de polêmica e publicidade. Tornaram-se uma mina de ouro editorial e um fecundo filão acadêmico. Todo ano publicam-se dezenas de obras e estudos que tentam iluminar algum aspecto da vida de Jesus. Nas listas de mais vendidos, sucedem-se os livros com “revelações” sobre o pai do cristianismo. O mais novo best-seller éZealot: the life and times of Jesus of Nazareth (Zelote: a vida e os tempos de Jesus de Nazaré), do iraniano Reza Aslan, um estudioso de religiões e professor de escrita criativa na Universidade da Califórnia. O livro, lançado há um mês nos Estados Unidos, lidera há três semanas a lista de mais vendidos do The New York Times e da Amazon. Desbancou até recordistas de vendas como a britânica J.K.Rowling. Em 2014, Zealot será lançado no Brasil.
Aslan e seu livro ascenderam aos céus do mercado editorial depois de uma polêmica entrevista na rede de televisão americana Fox News, com grande audiência entre os cristãos fundamentalistas dos Estados Unidos. Na entrevista de quase dez minutos, a âncora Laura Green questionou duramente Aslan. Perguntou sucessivamente a ele se tinha direito, por ser muçulmano, de escrever um livro sobre Jesus. Diante do preconceito da inquisidora, Aslan argumentou que escreveu o livro como acadêmico com doutorado e especializações em história das religiões e 20 anos de estudo das origens do cristianismo. O quiproquó contribuiu para as vendas aumentarem quase 50%.
Eis a tese defendida por Aslan no livro: Jesus, ao contrário do que prega a Igreja Católica, não foi um pacifista que, diante da violência, “oferecia a outra face” e amava os inimigos. Segundo Aslan, Jesus foi um revolucionário, cujo objetivo principal era expulsar os romanos da Judeia, criar um reino de Deus na Terra e assumir seu trono. Ele recupera com novas cores uma antiga versão de cristianismo – em voga nos anos 1960 graças à Teologia da Libertação, que misturava cristianismo com marxismo. Era um Jesus mais para Che Guevara do que para Madre Teresa de Calcutá. “Ele era um zelote revolucionário, que atravessou a Galileia reunindo um exército de discípulos para fazer chover a ira de Deus sobre os ricos, os fortes e os poderosos”, escreve Aslan no começo de seu livro. Zelote é uma palavra derivada do aramaico. Significa “Alguém que zela pelo nome de Deus”. Outra possível tradução para o termo é fervoroso, ou mesmo fanático. Sua origem está ligada ao movimento político judaico que defendia a rebelião do povo da Judeia contra o Império Romano. Os zelotes pretendiam expulsar os romanos pela força.
Segundo Aslan, Jesus compartilhava algumas das ideias igualitárias dos zelotes e, assim que se estabeleceu numa vila de pescadores em Cafarnaum, começou a procurar seus discípulos “entre aqueles que se viram lançados à margem da sociedade, cujas vidas tinham sido interrompidas pelas mudanças sociais e econômicas que ocorriam por toda a Galileia”. Na interpretação de Aslan, entre seus discípulos recolhidos nas franjas da sociedade da época, Jesus, como muitos revolucionários, tornou-se amado não apenas por seus ensinamentos, mas pelo carisma. “Ele era visto como alguém com autoridade, mas, ao contrário dos escribas inacessíveis e dos sacerdotes ricos, parecia um homem do povo, uma dádiva de Deus.”
Em Zealot, o ponto central da vida de Jesus não é seu nascimento nem sua Ressurreição, mas o Domingo de Ramos, um acontecimento mencionado nos quatro Evangelhos canônicos (Marcos, Mateus, Lucas e João). Nesse episódio, Jesus entra em Jerusalém de forma triunfal, montado num jumento. O povo comemora sua entrada sob gritos de Hosana, canta partes de um salmo e jogam ramos de árvores à sua frente. “Mais do que qualquer outra palavra ou ação, sua entrada em Jerusalém ajuda a revelar quem era Jesus e o que ele quis dizer”, diz Aslan. “Um camponês analfabeto entra em Jerusalém e é o tão aguardado Messias – o verdadeiro rei dos judeus –, que veio para libertá-los da escravidão.”
A prova de que Jesus pretendia livrar os judeus do jugo romano pelas armas está, segundo Aslan, na passagem do Evangelho de Mateus em que Jesus diz a seus apóstolos: “Não penseis que vim trazer paz à Terra; não vim trazer paz, mas a espada”. Ao dizer isso, Jesus demonstra ser um “adorador do sangrento Deus de Abraão, Moisés, Jacó e Josué”. Logo, Jesus passa das palavras à ação. Ao chegar ao Templo de Jerusalém, para a Páscoa Judaica, se enfurece com a visão de centenas de pessoas vendendo, comprando e trocando moedas no local sagrado. Com um chicote na mão, Jesus expulsa os que ali vendiam e compravam, derruba as mesas dos cambistas e acusa os comerciantes de profanar o local de culto e de mercantilizar a fé.
Para Aslan, o episódio revela todos os “segredos messiânicos” de Jesus. “Atacar o comércio do templo era uma ofensa semelhante a atacar a nobreza clerical, o que, considerando a emaranhada relação do templo com Roma, era o mesmo que atacar o próprio Império”, escreve. Com esse gesto, Jesus diz, no entender de Aslan, que a terra sagrada não pertencia a Roma, mas a Deus, e era hora de César devolvê-la ao verdadeiro rei dos judeus – ele mesmo. Diante disso, afirma Aslan, Jesus se torna um personagem “tão radical, tão perigoso, tão revolucionário que a única resposta concebível para Roma seria prendê-lo e executá-lo por insurreição”. Como era o mais grave dos crimes contra o Império Romano, a punição foi também a mais severa: a crucificação.
Se Jesus foi de fato um revolucionário, como se deu sua conversão num pacifista humilde, que ensina a amar a todos, até ao inimigo? Foi, diz Aslan, obra dos Evangelhos canônicos e das epístolas de Paulo de Tarso, escritas depois da crucificação, no período em que a perseguição aos judeus e aos primeiros cristãos se intensificou. Receosos de ser vistos como insurgentes, os primeiros seguidores do cristianismo quiseram se afastar do fervor revolucionário de Jesus. “Assim começou o longo processo de transformar Jesus de um revolucionário nacionalista judeu num líder espiritual desinteressado de questões terrenas”, diz Aslan. Como judeu, Jesus se rebelaria contra qualquer noção de que Deus pudesse encarnar num humano. Por isso, a ascensão de Jesus a divindade surgiu quase 30 anos após a crucificação, pelas mãos de “judeus cristãos” que, na tentativa de evitar as perseguições do Império, “transformaram o Jesus revolucionário num semideus romanizado”. Foi dessa maneira que Paulo criou a religião universal, sem distinção entre as pessoas, que três séculos depois conquistou o Império Romano e se espalhou pelo mundo.
Apesar dos esforços de teólogos e filósofos, a primeira busca foi em vão: pouco se revelou sobre o Jesus histórico. No século XX, os teólogos alemães Martin Dibelius e Rudolf Bultmann começaram uma segunda busca. Definiram critérios objetivos para separar o que era histórico do que não era nos relatos bíblicos. A ideia era encontrar o real Jesus, despindo-o dos mitos a ele acoplados por seus discípulos nos Evangelhos. Para muitos, porém, a segunda leva de pesquisas continuou a revelar mais sobre os pesquisadores do que sobre Jesus.
A terceira onda de busca do Jesus histórico ressurgiu com intensidade no começo do nosso século, com livros, filmes e programas de TV. Ela é baseada em métodos históricos e racionais, incluindo a análise crítica dos Evangelhos, a pesquisa arqueológica e o estudo do contexto histórico e cultural em que Jesus viveu. Como a busca pelo Jesus histórico se atém ao racionalismo e nega a existência dos milagres, ela costuma ser rechaçada pelos defensores do Cristo da fé. As críticas vêm tanto de teólogos ligados à tradição dos Evangelhos, defensores dos milagres como sustentáculo do cristianismo, como dos filósofos que rejeitam o materialismo e a ideia de que tudo na existência pode ser descrito pelas ciências naturais.
Ao reavivar as teses do Jesus revolucionário, Aslan conseguiu um feito: foi criticado por ambas as vertentes. “Aslan usou demais suas habilidades de professor de escrita criativa e ignorou seus estudos históricos”, afirma Stephen Prothero, professor de história do cristianismo na Universidade de Boston. “O livro de Aslan é uma litania de erros, todos causados pelo fato de ele aceitar premissas que não existiam para reforçar suas teses.” De fato, sobram certezas definitivas no livro de Aslan, que passa ao largo de quase todas as infindáveis controvérsias a respeito da vida de Jesus. Teria ele nascido em Belém? Aslan garante que ele nasceu em Nazaré. Por que Jesus saiu de Nazaré e foi para a Judeia pela primeira vez? Aslan deixa nas entrelinhas que era para se juntar aos zelotes revolucionários. Jesus era um profeta inovador e único? Aslan afirma que nos tempos de Jesus havia um candidato a Messias em cada figueira e oliveira da antiga Palestina. Quem eram os evangelistas? Para Aslan, eram seguidores de Jesus que se reuniram em comunidades a partir do ano 70 d.C.
De onde vêm todas as certezas de Aslan? Das mesmas fontes que ele critica. “Aslan diz que os Evangelhos não são uma fonte confiável, mas se lambuza neles quando quer reforçar suas teses de um Cristo revolucionário”, afirma o teólogo Martin Goodman, professor de história romana em Oxford. “O problema não é ele ser muçulmano ou ser iraniano. O problema é que ele usa uma tese ultrapassada e desacreditada como se fosse uma verdade absoluta.” A entrevista na Fox News provou, portanto, ter sido muito útil para Aslan. Ele escreve de modo fluente e coloquial sobre complexas discussões acadêmicas e transforma densos emaranhados filosóficos em narrativas emocionantes. Mas seu livro apenas prova como é difícil cingir a compreensão do cristianismo à história de um personagem de traços tão fugidios como Jesus.
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