Brincando com
Palavras :
De Impeachment a Recall
Carlos A. Lungarzo
No Brasil, é bem conhecido o gosto por palavras estrangeiras,
especialmente exóticas. Em Portugal fala-se SIDA, mas no Brasil diz-se AIDS;
até as doenças devem ter nome chique. Embora seja mais fácil dizer
“impedimento” que “impeachment”, prefere-se esta última. Agora, o termo
“recall” parece que estará logo na moda.
Recall, que
significa reconvocação ou “novo chamado” (reconheço, sim, que recall é mais breve e elegante que essas
duas palavras) é um referendum para decidir por maioria, em certas jurisdições
(estado, província, município) se a população aprova ou não o a continuidade do
governo, e equivale a uma substituição legal, sem golpe, dos representantes
desse governo.
Um grupo de parlamentares brasileiros e, alguns deles,
membros da esquerda (dos quais, pelo menos quatro têm uma tradição impecável)
estão propondo um recall para evitar
o golpe através do impeachment. Isto chama a atenção, em especial porque a
ideia do recall surgiu de figuras
oportunistas que mudaram um partido de esquerda por um ninho de ecoteólogos.
Veja neste link e outros relacionados.
Um dos proponentes diz, com toda
razão, que este congresso não tem legitimidade para fazer um impeachment. Isso é absolutamente
verdadeiro. Não obstante, apesar de a esquerda estar contra o golpe, talvez
poderia ter feito mais para evitar a atual situação. Todos conhecem o carisma, a inteligência e a
confiança que inspiram vários dirigentes da esquerda brasileira. Alguns já
ganharam o título de “parlamentares mais populares”. Quem sabe um bom esforço
de todos eles poderia ter tornado menos viável a colocação em marcha do golpe
atual.
Mas, agora, substituir o golpe por um recall (que, não é um golpe, mas é uma proposta extemporânea), pode
produzir os mesmos efeitos.
Manipular um referendum no Brasil é muito fácil. Isso foi visto em 2005 com o tema do
desarmamento.
Segundo as estatísticas, menos de 5% de domicílios não Brasil
têm armas. Então, por que mais de 50% das pessoas se interessariam em que as
armas fossem liberadas?
As agências da ONU observaram que as primeiras sondagens eram
esmagadoramente favoráveis à proibição de
armas, mas a coisa se inverteu logo que começou a campanha oficial, mesmo sendo que a Rede Globo apoiava o
desarmamento. Os subornos dados pelos fabricantes de armas a políticos e
algumas mídias (além de alguns truques publicitários) mudou a polaridade em
algumas semanas.
Voltando ao referendum político, vejamos seu lado trágico.
Uma população que tem uma vida duríssima, trabalhando por
salários miseráveis, viajando horas por dia em transportes péssimos, que devem
proteger seu filho das balas (quem disse perdidas?)
cruzadas por traficantes e polícias, não tem oportunidades nem tempo para esclarecer-se
a si mesma.
É verdade que tem, sim, sentido de supervivência. Mas, se
precisa mais que isso para poder diferenciar entre os verdadeiros culpados de
sua situação, e aqueles que a mídia vende, massivamente, como bodes expiatórios.
É difícil pensar que os populares tenham qualquer devoção pelos juízes e
promotores que mandam os policias a invadir suas comunidades e metralhar seus
filhos. Todavia, quando escutam o slogan:
“Fora todos!”, podem pensar que esses, seus algozes, são os que vão sair, e
algum messias chegará em seu lugar.
Há vanguardas populares bem informadas, mas em todo o mundo
subdesenvolvido elas são minorias. Então, num momento como este, em que o ódio
político deflagrado pelos coxinhas atinge
até as crianças (“Cala a boca; moleque, você é um f... de um petralha!”), é
mais natural que as pessoas votem por desespero que por reflexão.
Um dos abutres de Curitiba disse uma vez por TV que as
falcatruas da Petrobrás podem ultrapassar os 20 bi. Mesmo se isto fosse
verdade, imagina o que significa “bilhões” para uma população que rara vez viu mil
reais em dinheiro vivo! Eles podem imaginar que com esse dinheiro se muda o
país todo, que isso vai reverter em benfeitorias para o povo, que, se
exterminada a Petrobrás, o gás de cozinha vai ser de graça, e assim em diante.
Mas, é fácil predizer o que vai acontecer:
Faz-se o recall.
Dilma perde. Então, se realiza o sonho de setores que, curiosamente, estão nos
polos do espectro ideológico:
Todo mundo
fora!
Agora, imaginemos novas eleições, e que a justiça dá o maior
prazo possível.
Eu gostaria de saber, daqueles arautos progressistas do
recall:
Como vão
fazer para encontrar partidos dignos, honestos, eficientes, populares, e,
sobretudo, minimamente esclarecidos, em 3, 6 ou 12 meses?
Claro que pode ser feito em alguns poucos anos, como
aconteceu em outros países da região, mas antes foi necessário um processo de
luta e educação política. Concordo em que o PT é responsável por ter abandonado
os militantes, e por pintar o capitalismo brasileiro como se fosse aliado dos
populares, e não um inimigo que devia ser combatido.
Mas, isso não foi feito e o tempo não volta atrás. É de
extremo mau gosto jogar no rosto erros que não podem ser corrigidos, embora
tenham sido, como neste caso, muitos. Então, jogamos ao quê:
Tudo ou Nada? Quanto pior, melhor?
Quem ganharia essas recall
elections? O PSOL, o PSTU, o PCB ou PCdoB, o PCO, a esquerda do PT, ou uma
coalizão de todos eles? Nós todos sabemos que isso, mesmo sem ser impossível,
tem probabilidade de bilionésimo por cento.
Mas, há dois grupos de candidatos fortes: os narcobanqueiros e os ecoteólogos, aos quais se aderirão, no
segundo turno, as numerosas siglas de mercenários e picaretas.
Os narcobanqueiros levariam o país a uma situação muito pior
que em 1998. Claro que a mídia vai aplaudir. O dólar estará bem baixo, inflação
quase nula, e o prestígio nacional, medido pelas agências de adestradores de
executivos, chegará às alturas. Os programas sociais podem ser totalmente
varridos em algumas semanas. Petrobrax e outras empresas “inúteis”
seriam vendidas. E o desemprego pode aproximar-se ao que foi na Argentina em
1995: 42%.
E os ecoteólogos? Ahhh, esses são mais
completos. Como estão aliados com os narcos, e já os apoiaram em 2014, as
medidas sociais serão as mesmas. Aliás, eles têm melhores argumentos: a
Petrobrás deve ser vendida porque o petróleo estraga a ecologia. Verdade.
Porém, será que nas mãos da Exxon, Gulf, etc,. vai estragar menos?
Além disso, os ecos podem adicionar sua própria teoria, que os
narcos, mais liberais, não têm. Ficará proibida a masturbação, as novelas
eróticas, a educação sexual nas escolas, e se instituirá o crime de blasfémia:
10 anos de prisão e 200 horas de choque elétrico. As escolas deverão ensinar
que a teoria da evolução é pura besteira, que a ciência está errada, e que pessoas
inteligentes são pecadores e malfeitores.
Um dos partidos de esquerda que propõe o recall possui um
excelente histórico em direitos humanos, talvez o melhor do Continente. Não sei
qual de suas divisões é a que apoia o recall, mas, é necessário pensar, que
esta proposta (que até acredito que alguns estejam propondo por ingenuidade) é
vergonhosa, e só faz jogo dos ecoteólogos,
que, caladinhos, esperam o momento para dar o bote.
Então, a enorme tarefa realizada por este e outros partidos
nas prisões, com os doentes de Aids, nas comunidades, com crianças e mulheres, etc.,
ficará prejudicada, porque é claro que uma nova direita, após 12 anos de
abstinência, voltará com todo o ressentimento e não deixará nada em seu lugar.
Evitar a alteração da legalidade constitucional não é
fraqueza nem centrismo. A indignação contra o governo pela esquerda é
compreensível, mas a solução não é o fim
de tudo. A pressão contra a linha de centro-direita do governo deve
aumentar, e vale a pena pensar que pode ser corrigida. Mas, ninguém poderá
parar o estrago que farão os narcobanqueiros e os ecoteólogos, se eles
voltaram.
Aliás, acho pouco sensata esta proposta, e quero acreditar
que os ativistas de esquerda que se deslumbraram por esta possibilidade talvez
não a pensassem o suficiente.
Introduzir novas regras na metade do caminho, para ferrar
seja quem for (direita ou esquerda) é uma prática negativa, que pode aniquilar
este pequeno embrião de democracia.
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