Charlie Recomeça
Carlos A. Lungarzo
Há em cada aldeia uma tocha: o mestre
escola. E uma boca que sopra para a apagar: O pároco.
Victor Hugo, romancista francês (1802-1885)
A
nova época de Charlie Hebdo, inaugurada
com uma edição 84 vezes maior que a habitual, está gerando novas ondas de
protesto em povos islamizados, e até dúvidas nas pessoas que, justamente indignadas
pelas atrocidades, se juntaram numa grande passeata com figuras poderosas (até
com os seguidores de Le Pen), transformado o que era um repúdio ao terrorismo
numa ação de proveito político para a NATO.
Nas
últimas semanas tentei, sem sucesso, escrever um artigo sobre o múltiplo
assassinato. Seis rascunhos acabaram na lixeira digital e comecei a desistir. Meu
problema não era a falta de assunto, mas o medo de reforçar opiniões fascistas,
mesmo que uma pessoa desconhecida nunca seja muito influente.
Há
uns dias li um panfleto de um bispo da “libertação”, sugerindo censura judicial
quando os dogmas religiosos são alvo de sarcasmo. Pouco depois, vi nos jornais uma manifestação
de um juiz/político ligado ao governo de SP, proclamando “Eu sou Maomé”. Recentemente,
li um post onde um comediante, que se reivindica cristão e diz repudiar o
terrorismo, acusa aos membros de Charlie
Hebdo de blasfémia Finalmente, ele pergunta: “O que esperavam que
acontecesse?” (sic) Implicitamente, e apesar de todos as declarações contra a
violência, percebe-se em muitos críticos de CH certa satisfação por aquele final
trágico.
Meu
medo de entrar no pacote de messiânicos e opusdeístas
aumentou, mas, afinal, foi mais forte minha tristeza ao pensar que, se não
escrevesse nada, seria o único terráqueo mais ou menos alfabetizado que não dava
seu pitaco sobre Charlie Hebdo. Após
ler tudo o relativo ao caso durante duas semanas, decidi afrontar o desafio.
Então,
aí vai:
Blasfémia e Crença
Moderada
a indignação dos que se solidarizaram com as vítimas, várias pessoas ousaram
confessar que repudiam o “pecado” de blasfémia. Ressuscitar esse crime medieval, mostra não
apenas a pretensão de censura em casos específicos, mas, ainda, a proibição geral de esclarecer, de procurar
a verdade e de educar.
Uma
pessoa tem o direito individual de aderir e até criar crendices, e de
compartilhá-las com os que as aceitem
voluntariamente. Estas crenças até podem ser úteis como identificação
cultural para unir-se contra os inimigos comuns, como aconteceu no século XII
com numerosas seitas de hereges que a Igreja queimava sem trégua. Isso, claro, desde
que as tais crenças não prejudiquem os direitos humanos e os direitos da
natureza.
Os
crentes devem ser respeitados em seu direito humano básico de expressar-se
livremente. Mas... o que isso significa? Ninguém deve ser pessoalmente
humilhado por acreditar em algo, e nenhum aderente a um mito pode ser
considerado responsável por seus efeitos negativos. Mas, esse respeito ao crente, não significa poupar críticas aos
que o manipulam, mesmo se fossem críticas inverídicas. Por exemplo, jamais
passou por minha cabeça reagir contra a mídia que nos chama de “esquerdopatas”,
terroristas, imorais, etc. Que façam bom proveito. Seria diferente e, nesse
caso, a crítica mereceria ser repelida, se alguém fosse insultado nesses
termos, pessoalmente, de maneira
pública.
Mas a
“blasfémia”, que é um repúdio aos propagadores do mito (embora os líderes
religiosos façam acreditar que é uma ofensa a uma figura mítica que eles
qualificam de sagrada) é inevitável
em muitos casos, se você não quer ser cúmplice dos numerosos crimes baseados na
sacralidade.
Quase
todos as religiões “provam” que a alma de um ser humano se cria no feto no
momento da concepção. Se você não desafia essa fábula, permitirá que milhões de
mulheres fora da Europa morram por causa de abortos clandestinos. Manter o
respeito às crendices nocivas não apenas é covarde, mas, em casos como este,
significa compactuar com crimes massivos.
Ora,
se você incorre nessa “blasfémia”, ou, ainda mais, decide auxiliar às vítimas
da crendice, pode ser alvo de terroristas. Embora se fale pouco disto, nos EUA
é comum que as clínicas de aborto legais, geralmente gratuitas e
supervisionadas pelos departamentos de medicina, sofram ataques terroristas de fanáticos evangélicos e católicos.
Dos
últimos anos, conhecem-se, pelo menos, os seguintes números:
41
ataques a bomba,
173
incêndios,
91 tentativas
(de bombas e incêndios)
619 ameaças
de bombas
1630
incidentes de invasão e assalto,
64 incidentes
de vandalismo,
100
ataques com ácidos corrosivos.
Em
tempos recentes, houve dez mortos, algo inferior ao número de mortos em Paris.
Mas, a relevância que se deu a estes crimes foi milhares de vezes menor que a dada as vítimas do CHe.
Muito análogo à abominação contra CH
foi a pretensão de alguns charlatães fascistas de condenar o programa cómico
brasileiro Porta dos Fundos. O
programa de final de 2013 foi também acusado de blasfémia e, do ponto de vista teológico, é. Do ponto de vista dos
humanos reais, ele não ridiculariza pessoas vulneráveis, mas ironiza a empáfia
dos que se acham porta-vozes da divindade. O assunto da virgindade é social e
não racial ou cultural, e, portanto, não há escárnio a nenhum povo perseguido. Se
você apregoa sua crença na partenogênese, expõe-se a que pessoas excessivamente
piadistas tomem sua crença para chacota, embora
isso não autorizaria a que uma pessoa específica seja, pública e nominalmente,
satirizada por essa criança. Isso seria bullying.
Ora, quem se ofende porque é aludido
de maneira coletiva, sem ser nomeado, não está obrigado a assistir os programas
ou ler os textos onde se fazem as sátiras. Observe
que deve defender-se a pessoa humana contra o escárnio. Mas não faz sentido
defender fetiches irracionais, que, por outro lado, moveriam a sarcasmo a quase
qualquer que não esteja comprometido com eles.
São justas as críticas feitas por CH
(que li várias vezes desde sua aparição, em minha época de estudante) aos
dogmas semeados pelos opressores como se fossem valores intocáveis. Se essa
crítica for tolhida, também poderemos ser impedidos de criticar o racismo, o
chauvinismo, o sexismo, o infanticídio, a pedofilia (tão comum no meio dos anti-blasfémia!) e assim em diante.
Os Erros de CH
Mas, Charlie Hebdo se equivoca ao não ter em conta:
1.
Que o atacado deve ser o carrasco e
não a vítima.
Algumas das sátiras do magazine atingem não só os teólogos, mullah e afins, mas
também as massas compelidas a aceitar os dogmas impostos por eles. Este é o
erro dos que comparam a sátira atual com a de humoristas clássicos como Swift e
Defoe. Eles ridicularizavam o chauvinismo britânico e o cristianismo imperial,
mas não os povos a eles submetidos. Voltaire satirizava o colonialismo francês,
mas não os operários de Paris.
2. Que humilhar a condição humana dos muçulmanos que fogem de seus países cria um
constrangimento que os obriga a reforçar
sua condição cultural. Onde eles são bem acolhidos, como na Escandinávia,
acontece o contrário: o 75% dos descendentes de islâmicos repudiam a violência do Islã e se
definem como não
religiosos. Na Suécia essa porcentagem é >= 85%, um fato
que o Estado reconhece e protege, dando condições aos descendentes de islâmicos
para integrar-se na sociedade, respeitando as características não nocivas de
suas culturas (língua, comida, hábitos cotidianos, roupa não humilhante, etc.)
Houve casos de consultores e ministros de origem muçulmana que se revoltaram
pelo que eles acham brandura na luta contra as mensagens de ódio contidas no
Islã. Mais ainda, os filhos da primeira geração de imigrantes adotam, na quase
totalidade, os hábitos escandinavos e apenas usam sua língua para se comunicar
com muçulmanos da geração de seus pais.
Os membros de CH não reconheceram que a França está no
caso oposto aos Escandinavos. A França não dá um acolhimento completo aos
estrangeiros, prejudicando a assimilação. Mesmo assim, é suficiente falar com
mulheres que conseguiram se afastar de seu credo para perceber que rejeitam
profundamente o machismo, o sadismo religioso, a repressão sexual e as
indumentárias. Todas elas adotam os hábitos de mulheres ocidentais, mesmo fora
da Europa, como no caso das afegãs, que começaram a usar maquiagem e roupas sensuais
depois da derrota do Talibã.
Quero lembrar, apenas para aliviar minha consciência,
que, em abril de 2011, o representante de Anistia
Internacional para assuntos culturais, cometeu um erro ao condenar a
proibição da burka pelo governo
francês, e eu assinalei esse erro num post, que não foi comentado. Todavia, o
governo francês não fez isso em defesa da dignidade feminina, mas por razões de
segurança, e, por outro lado, nunca teve um plano eficiente para ajudar à
libertação das muçulmanas do jugo doméstico.
3.
Que a crítica às crendices deve colocar
ênfase em que os criticados são os líderes e não os arrebanhados pela força. Pelo contrário, CH não avisa que suas sátiras vão contra os
teólogos e não contra uma sociedade
que é identificada, de maneira abusiva, com uma religião. Em seu íntimo, as pessoas
comuns não consentem com as atrocidades teológicas, porque elas são as vítimas,
como aconteceu com a iraniana Sakineh, sobre cujo caso o Brasil demorou muito a
se manifestar, com o argumento incrível de que “cada país tem suas leis”.
Os sujeitos que atuam como voluntários na lapidação ou os terroristas
suicidas são uma minoria da comunidade islamizada. Se fosse verdade que os
povos são incondicionais à veneração de Allah, haveria muitos mais mártires que
refugiados. Pessoas comuns que não lucram com a ignorância, sabem que a paz e felicidade
valem muito mais que as ḥūrīyah que promete
o profeta, mas ninguém encontrou nunca.
4.
CH ignorou que em nenhum caso deve
tratar-se com sátira (esperando provocar o riso) fatos que são trágicos. CH não apenas critica as divagações
teológicas, mas também atos concretos. Uma de suas charges, talvez a pior que conheço, mostra vários profetas e deuses
fazendo sexo anal. Que sentirão, ao ler isso, os milhares de jovens que foram
estuprados por religiosos, sejam islâmicos ou cristãos, uma prática comum nas
seitas com patologias sexuais? Devem ter lembrado seus carrascos com horror,
mas também devem ter-se sentido agredidos por seus “humoristas”.
A crença num deus, vários deuses ou
nenhum, deve ser um sentimento individual, como é o fato de torcer por um time.
Isso não impede que o crente se manifeste, desde que não perturbe a condição
humana e social, que é válida para todos,
qualquer que seja (ou não seja) sua religião. Atribuir um caráter objetivo
à religião é tornar obrigatórias crenças que variam de uma pessoa para outra, como se fosse um direito natural que os mais fortes proíbam os
outros criticar seus fetiches.
Sátira versus Educação
Há
charges, cartuns, desenhos, piadas de bom e mau gosto, porém, o humor inteligente,
como o de Uderzo, Woody Allen, Steven Brodner, Quino e alguns outros é
infrequente. Acho que a maioria das piadas de CH é de mau gosto. Acredito isso
desde os vinte e poucos anos, muito antes do auge do terrorismo.
Nas
charges de 2006 do Jyllands-Posten da
Dinamarca há uma que, no começo, parece aguda. Um xeque diz aos homens bomba
que não adianta continuar os atentados, pois acabaram as virgens no paraíso. Isso parece um sarcasmo contra o sadismo dos
teólogos, que, usando o tabu da virgindade, proibiram à mulher o prazer sexual
e, em geral, qualquer outro direito. Mas, observem que, ao tocar esse trágico
assunto, também se faz chacota com a
triste realidade de milhões de mulheres escravizadas.
Lembro
outra charge que li em NY há muitos anos. Num quadrinho de um jornal aparece um
pastor que olha sua filha adolescente com verdadeiro pânico, enquanto a menina,
toda feliz, disse: “Pai, aleluia, somos abençoados... o Espírito Santo me
engravidou”. Este é um humor diferente, onde os únicos satirizados são os ativistas
cristãos.
Entre
a sátira “justa” é a “injusta” há uma linha tênue, que nem sempre pode ser
discernida. Portanto, o melhor é aproveitar o grande talento dos artistas, não
para fazer sátiras, mas para fazer um humor educativo como, por exemplo, o de Ásterix.
Textos
educativos devem ser eficientes e fáceis de entender, o que não tira o humor
inteligente, mas não condiz com a sátira. A desmistificação do “sagrado” não deve
atacar os sentimentos puramente
individuais sobre o sobrenatural. O alvo é a fraude de vender os sentimentos como se fossem fatos objetos objetivos, quando, em
realidade, provocariam a hilaridade de qualquer um que não seja aderente a
essas crendices.
Conheci
comunidades islâmicas em numerosos países, incluída a França, e acho óbvio que
a maioria dos refugiados muçulmanos, especialmente os mais pobres, seguem
ligados a sua religião como suporte emocional por causa das perseguições da
direita cristã.
O antídoto
contra o obscurantismo é a educação, a democracia substantiva (e não apenas a
existência de uma agenda eleitoral), e o aumento da racionalidade, do
naturalismo e da solidariedade. Isto se percebe no decrescente número de
teístas na Europa mais culta, onde os direitos humanos e a informação são mais
fortes que no resto do mundo. Os seguintes dados são de estatísticas do
Eurobarometer de 2010. Dizem acreditar em Deus as seguintes proporções de
habitantes (como máximo):
16%
na República Tcheca,
18% na
Suécia,
22%
na Noruega
28% na
Dinamarca,
27%
na França
Veja agora a diferença:
79%
na Polônia
74%
na Itália
70%
na Irlanda
70%
em Portugal
Veja esta fonte, considerada muito prestigiosa na Europa:
"Special
Eurobarometer: Biotechnology" (PDF).
Outubro 2010. página 381 e seguintes.
A única força contra o obscurantismo
e o belicismo é o aperfeiçoamento de nossa componente biológico-emocional:
amor, racionalidade, solidariedade, naturalismo e universalismo.
Afinal, somos apenas primatas de
luxo, e pretender que temos alguma benção especial em nosso DNA pode ser a
causa de outro colapso da civilização mundial, como no lapso 1933=1945.
Um
símbolo da superação humana é o caso maravilhoso de Malala Yousafzai, cuja
palavra de ordem é “uma menina com um caderno”. Ela contribui à libertação dos
povos oprimidos pela religião muito mais que as mais eficientes charges de
qualquer magazine, para não falar das de CH.
Só o
esclarecimento pode parar a superstição, mas não podemos ser excessivamente
otimistas. Em 16 séculos de domínio oficial de Ocidente, a repressão teocrática
começou a ceder terreno muito tarde, após a Revolução Francesa.
Aliás,
tem recuperado algo na América Latina nas últimas décadas e tornou-se tão aguda
no Brasil, que até aspirantes ao governo deste país não têm inibição em
proclamar que querem elevar a teologia à condição de conhecimento equivalente
ao científico. Já o Islã não tem
experimentado nenhum declínio desde Maomé. Esta
situação dramática exige uma luta cultural muito séria e não piadas e
sarcasmos, mesmo se fossem bons!
O
pessoal de CH era especialmente talentoso, e os sobreviventes também são. Eles
têm tudo para fazer uma séria campanha de conscientização, e não contribuir aos
restos de ódio que insistem em permanecer vivos na Europa, setenta anos após a
derrota (parcial) da grande esperança dos místicos, autoritários e racistas do
planeta: o nazi-fascismo.
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