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http://forumeja.org.br/files/Autonomia.pdf
LIVRO "PEDAGOGIA DA AUTONOMIA" Saberes Necessários à Prática Educativa - PAULO FREIRE
-Editora Paz e Terra
*versão impressa - lá pelas páginas 141 e 144...até 152
3.7- Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica
3.7 – Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica
Saber igualmente fundamental à prática educativa do professor ou da professora é o que diz respeito à força, às vezes maior do que pensamos, da ideologia. E o que nos adverte de suas manhas, das armadilhas em que nos faz cair. É que a ideologia tem que ver diretamente com a ocultação da verdade dos faros, com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade ao mesmo tempo em que nos torna “míopes”. O poder da ideologia me faz pensar nessas manhãs orvalhadas de nevoeiro em que mal vemos o perfil dos ciprestes como sombras que parecem muito mais manchas das sombras mesmas. Sabemos que há algo metido na penumbra mas não o divisamos bem. A própria “miopia” que nos acomete dificulta a percepção mais clara, mais nítida da sombra. Mais séria ainda é a possibilidade que temos de docilmente aceitar que o que vemos e ouvimos é o que na verdade é, e não a verdade distorcida. A capacidade de penumbrar a realidade, de nos “miopizar", de nos ensurdecer que tem a ideologia faz, por exemplo, a muitos de nós, aceitar docilmente o discurso cinicamente fatalista neo- liberal que proclama ser o desemprego no mundo uma desgraça do fim de século. Ou que os sonhos morreram e que o válido hoje é o “pragmatismo” pedagógico, é o treino técnico- científico do educando e não sua formação de que já não se fala. Formação que, incluindo a preparação técnico- científíca, vai mais além dela. A capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos faz às vezes mansamente aceitar que a globalização da economia é uma invenção dela mesma ou de um destino que não poderia se evitar, uma quase entidade metafísica e não um momento do desenvolvimento econômico submetido, como toda produção econômica capitalista, a uma certa orientação política ditada pelos interesses dos que detêm o poder. Fala- se, porém, em globalização da economia como um momento necessário da economia mundial a que por isso mesmo, não é possível escapar. Universaliza- se um dado do sistema capitalista e um instante da vida produtiva de certas economias capitalistas hegemônicas como se o Brasil, o México, a Argentina devessem participar da globalização da economia da mesma forma que os Estados Unidos, a Alemanha, o Japão. Pega-se o trem no meio do caminho e não se discutem as condições anteriores e atuais das diferentes economias. Nivelam-se os patamares de deveres entre as distintas economias sem se considerarem as distâncias que separam os “direitos” dos fortes e o seu poder de usufruí- los e a fraqueza dos débeis para exercer os seus direitos. Se a globalização implica a superação de fronteiras, a abertura sem restrições ao livre comércio, acabe- se então quem não puder resistir. Não se indaga, por exemplo, se em momentos anteriores da produção capitalista nas sociedades que lideram a'globalização hoje elas eram tão radicais na abertura que consideram agora uma condição indispensável ao livre comércio. Exigem, no momento, dos outros, o que não fizeram consigo mesmas. Uma das eficácias de sua ideologia fatalista é convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade é assim mesmo, de que não há nada a fazer mas seguir a ordem natural dos faros. Pois é como algo natural ou quase natural que a ideologia neoliberal se esforça por nos fazer entender a globalização e não como uma produção histórica. O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos,na verdade, por um mundo de gente. O discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao máximo, mesmo que modificada, da medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História. O discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza de uns poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no neo- liberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca. Espero, convencido de que chegará o tempo em que, passada a estupefação em face da queda do muro de Berlim, o mundo se refará e recusará a ditadura do mercado, fundada na perversidade de sua ética do lucro. Não creio que as mulheres e os homens do mundo, independentemente até de suas opções políticas, mas sabendo-se e assumindo- se como mulheres e homens, como gente, não aprofundem o que hoje já existe como uma espécie de mal- estar que se generaliza em face da maldade neoliberal. Mal- estar que terminará por consolidar- se numa rebeldia nova em que a palavra crítica, o discurso humanista, o compromisso solidário, a denúncia veemente da negação do homem e da mulher e o anúncio de um mundo “genteficado” serão armas de incalculável alcance. Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se Fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a da negação de nós mesmos como seres humanos submetidos à “fereza” da ética do mercado. É neste sentido que jamais abandonei a minha preocupação primeira, que sempre me acompanhou, desde os começos de minha experiência educativa. A preocupação com a natureza humana* * Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança, Cartas à Cristina e Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
a que devo a minha lealdade sempre proclamada. Antes mesmo de ler Marx já fazia minhas as suas palavras: já fundava a minha radicalidade na defesa dos legítimos interesses humanos. Nenhuma teoria da transformação político- social do mundo me comove, sequer, se não parte de uma compreensão do homem e da mulher enquanto seres fazedores da História e por ela feitos, seres da decisão, da ruptura, da opção. Seres éticos, mesmo capazes de transgredir a ética indispensável, algo de que tenho insistentemente “falado” neste texto. Tenho afirmado e reafirmado o quanto realmente me alegra saber- me um ser condicionado mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamento. A grande força sobre que alicerçar- se a nova rebeldia é a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. E a ética da solidariedade humana. Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar, sem relutar, a apostar no ser humano, a me bater por uma legislação que o defenda contra as arrancadas 'agressivas e injustas c]e quem transgride a própria ética. A liberdade do comércio não pode estar acima da liberdade do ser humano. A liberdade de comércio sem limite é licenciosidade do lucro. Vira privilégio de uns poucos que, em condições favoráveis, robustece seu poder contra os direitos de muitos, inclusive o direito de sobreviver. Uma fábrica de tecido que fecha por não poder concorrer com os preços da produção asiática, por exemplo, significa não apenas o colapso econômico-financeiro de seu proprietário que pode ter sido ou não um transgressor da ética universal humana, mas também a expulsão de centenas de trabalhadores e trabalhadoras do processo de produção. E suas famílias? Insisto, com a força que tenho e que posso juntar na minha veemente recusa a determinismos que reduzem a nossa presença na realidade histórico- social à pura adaptação a ela. O desemprego no mundo não é, como disse e tenho repetido, uma fatalidade. É antes o resultado de uma globalização da economia e de avanços tecnológicos a que vem faltando o dever ser de uma ética realmente a serviço do ser humano e não do lucro e da gulodice irrefreada das minorias que comandam o mundo. O progresso científico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação. A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres. A um avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulhere s e de homens de perder seu trabalho deve-ria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso anterior. Como se vê, esta é uma questão ética e política e não tecnológica. O problema me parece muito claro. Assim como não posso usar minha liberdade de fazer coisas, de indagar, de caminhar, de agir, de criticar para esmagar a liberdade dos outros de fazer e de ser, assim também não poderia ser livre para usar os avanços científicos e tecnológicos que levam milhares de pessoas à desesperança. Não se trata, acrescentemos, de inibir a pesquisa e frear os avanços mas de pô- los a serviço dos seres humanos. A aplicação de avanços tecnológicos com o sacrifício de milhares de pessoas é um exemplo a mais de quanto podemos ser transgressores da ética universal do ser humano e o fazemos em favor de uma ética pequena, a do mercado, a do lucro. Entre as transgressões à ética universal do ser humano, sujeitos à penalidade, deveria estar a que implicasse a falta de trabalho a um sem- número de gentes, a sua desesperação e a sua morte em vida. A preocupação, por isso mesmo, com a formação técnico-profissional capaz de reorientar a atividade prática dos que foram postos entre parênteses, teria de multiplicar- se. Gostaria de deixar bem claro que não apenas imagino mas sei quão difícil é a aplicação de uma política do desenvolvimento humano que, assim, privilegie fundamentalmente o homem e a mulher e não apenas o lucro. Mas sei também que, se pretendemos realmente superar a crise em que nos achamos, o caminho ético se impõe. Não creio em nada sem ele ou fora dele. Se, de um lado, não ode haver desenvolvimento sem lucro este não pode ser, pó por outro, o objetivo do desenvolvimento, de que o fim último seria o gozo imoral do investidor. De nada vale, a não ser enganosamente para uma minoria que terminaria fenecendo também, uma sociedade eficazmente operada por máquinas altamente “inteligentes”, substituindo mulheres e homens em actividades as mais variadas, e milhões de Marias e Pedros sem ter o que fazer, e este é um risco muito concreto que corremos.* * MOERMANN, Joseph. Le Courrier – 8 Août, 1996 – Suisse La globalization de l'economie provoquera- t- elle un mai 68 mondial? – La marmite mondiale sousf pression.
Não creio também que a política a dar carne a este espírito ético possa jamais ser a ditatorial, contraditoriamente de esquerda ou coerentemente de direita. O caminho autoritário j é em si uma á contravenção à natureza inquietamente indagadora, buscadora, de homens e de mulheres que se perdem ao perderem a liberdade. É exatamente por causa de tudo isso que, como professor, devo estar advertido do poder do discurso ideológico, começando pelo que proclama a morte das ideologias. Na verdade, só ideologicamente posso matar as ideologias, mas é possível que não perceba a natureza ideológica do discurso que fala de sua morte. No fundo, a ideologia tem um poder de persuasão indiscutível. O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas, dos acontecimentos. Não podemos escutar, sem um mínimo de reação crítica, discursos como estes:
“ O negro é geneticamente inferior ao branco. É uma pena, mas é isso o que a ciência nos diz."
“Em defesa de sua honra, o marido matou a mulher.”
“Que poderíamos esperar deles, uns baderneiros, invasores de terra?”
“Essa gente é sempre assim: damos- lhe os pés e logo quer as mãos.
“Nós já sabemos o que o povo quer e do que precisa.- Perguntar- lhe seria uma perda de tempo.”
“O saber erudito a ser entregue às massas incultas é a sua salvação.”
“Maria é negra, mas é bondosa e competente.”
“Esse sujeito é um bom cara. E nordestino, mas e sério e prestimoso.”
“Você sabe com quem está falando?”
“Que vergonha, homem se casar com homem, mulher se casar com mulher."
“É isso, você vai se meter com gentinha, e o que dá."
“Quando negro não suja na entrada, suja na saída.”
“O governo tem que investir mesmo é nas áreas onde mora gente que paga imposto.”
“Você não precisa pensar. Vote em fulano, que pensa por você.”
“Você, desempregado, seja grato. Vote em quem ajudou você. Vote em fulano de tal.”
“Está se vendo, pela cara, que se trata de gente fina, de trato, que tomou chá em pequeno e não de um pérapado qualquer.”
“O professor falou sobre a Inconfidência Mineira.”
“O Brasil foi descoberto por Cabral.”
No exercício crítico de minha resistência ao poder manhoso da ideologia, vou gerando certas qualidades que vão virando sabedoria indispensável à minha prática docente. A necessidade desta resistência crítica, por exemplo, me predispõe, de um lado, a uma atitude sempre aberta aos demais, aos dados da realidade; de outro, a uma desconfiança metódica que me defende de tornar- me absolutamente certo das certezas. Para me resguardar das artimanhas da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros nem tampouco me enclausurar no ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o melhor caminho para guardar viva e desperta a minha capacidade de pensar certo, de ver com acuidade, de ouvir com respeito, por isso de forma exigente, é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições dogmáticas, em que me admita como proprietário da verdade. No fundo, a atitude correra de quem não se sente dono da verdade nem tampouco objeto acomodado do discurso alheio que lhe é autoritariamente feito. Atitude correra de quem se encontra em permanente disponibilidade a tocar e a ser tocado, a perguntar e a responder, a concordar e a discordar. Disponibilidade à vida e a seus contratempos. Estar disponível é estar sensível aos chamamentos que nos chegam, aos sinais mais diversos que nos apeiam, ao canto do pássaro, à chuva que cai ou que se anuncia na nuvem escura, ao riso manso da inocência, à cara carrancuda da desaprovação, aos braços que se abrem para acolher ou ao corpo que se fecha na recusa. É na minha disponibilidade permanente à vida a que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade, desejo, que vou a prendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim. E quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças, tanto melhor me conheço e construo meu perfil.
3.8 – Ensinar exige disponibilidade para o diálogo
Nas minhas relações com os outros, que não fizeram necessariamente as mesmas opções que fiz, no nível da política, da ética, da estética, da pedagogia, nem posso partir de que devo “conquistá- los”, não importa a que custo, nem tampouco temo que pretendam “conquistar- me”. É no respeito às diferenças entre mim e eles ou elas, na coerência entre o que faço e o que digo, que me encontro com eles ou com elas. É na minha disponibilidade à realidade que construo a minha segurança, indispensável à própria disponibilidade. É impossível viver a disponibilidade à realidade sem segurança mas é impossível cambem criar a segurança fora do risco da disponibilidade.(...)
*para ler na íntegra, acessar:
http://forumeja.org.br/files/Autonomia.pdf
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