terça-feira, 3 de novembro de 2015

NOVOS SENTIDOS PARA O LIXO - MAURÍCIO WALDMAN


Por MAURÍCIO WALDMAN


TERÇA-FEIRA, 20 de outubro de 2015 / opinião / 3a
 

Novos sentidos para o lixo

http://www.mw.pro.br/mw/ColunaPR_Imparcial24.pdf

O mundo das palavras é um universo de significados
que atendem ao eterno anseio humano de encontrar sen-
tido no universo real. Daí que, enquanto vários termos
desaparecem e partem para o mundo silencioso do es-
quecimento, novas terminologias nascem seduzindo os
ouvidos com o sabor da novidade. Neste sentido, o
ambientalismo motivou novas percepções para as subs-
tâncias, objetos, formas de vida e os próprios humanos.
Foi assim que a valorização do natural inaugurou
percepções inéditas direcionadas aos bichos. Por exem-
plo, desde os anos 1970 tornou-se praxe que os casais - e
também os pretendentes - se tratem como gatinho e gati-
nha. Progresso evidente quando se sabe que na Idade
Média os pobres bichanos eram caçados até a morte. Na
época, os felinos eram estigmatizados como sócios das
bruxas e aliados do demônio.
O mesmo aconteceu com o lixo. As sobras sempre fo-
ram condenadas pela cultura ocidental. Aprendemos
desde criança que lixo é coisa imprestável, sem valor,
imunda, suja, que ofende o olfato, que transmite doença.
Algo a ser descartado longe. E quanto mais longe, me-
lhor. Este estigma é inclusive imposto às pessoas. Basta
consultar os dicionários: lixo é a camada mais baixa da
sociedade, a escória social; dejeto é uma pessoa sem bri-
lho, caráter ou beleza; carroceiro, um sujeito grosso;
sucateiro, quem executa mal o serviço; trapeiro, quem
gosta de coisas vis, nojentas e repulsivas.
E reparem a fala coloquial. Pessoa mal amada se tor-
na um lixo. Alguém que se dá mal vira lixo também. Se a
economia desagrada é porque - fato óbvio - está um lixo.
E caso um pai esteja indignado com as notas do filho, ele
indaga em tom profético: “O que você vai querer ser quan-
do crescer, um lixeiro?”.
Novas terminologias alteraram tais clichês. Assim,
se o discurso tradicional percepciona o lixo como algo
inútil, perigoso e ruim, falar em resíduo sólido constitui,
por outro lado, uma forma inteiramente diferente de per-
ceber as sobras. Não se trata de mero eufemismo. Falar
em resíduo sólido implica em outros “óculos sociais”,
revendo o que era julgado imprestável. Nesta linha de
entendimento, a cultura do lixo cedeu lugar à cultura dos
resíduos sólidos, isto é: materiais reaproveitáveis, fonte
de bem-estar, de progresso e equilíbrio ambiental.
Seria inevitável frisar que esta nova percepção do lixo
calçou clara evolução positiva nos indicadores da
reciclagem. Navegando na onda da defesa do natural, na
década passada o avanço da reciclagem foi notável. A
recuperação do papel cresceu 163,2%; latas de alumínio,
25,3%; latas de aço, 32,8%; vidros, 17,5%; pneumáticos,
480%; embalagem longa vida, 160%; plásticos, 41,3%, den-
tre os quais notadamente o PET, que cravou 160,9% de
expansão.
É de se notar que nos últimos anos ocorre um movi-
mento semelhante quanto ao lixo culinário, ou seja, o lixo
orgânico das residências, feiras livres, agricultura e in-
dústrias. Também definido como fração úmida do lixo, os
orgânicos são de longe o principal filão do lixo nacional.
Pela média, 60% do lixo do país é orgânico. Portanto,
soluções sérias, justas e decentes para os resíduos da co-
zinha dariam cabo de grande parte dos monturos que se
erguem por este Brasil afora.
Oportunamente, cresce a consciência de que as so-
bras orgânicas - no passado negativamente definidas
como restos putrescíveis - merecem tratamento digno.
Difunde-se agora uma nova terminologia: os lixos
compostáveis. Assim, o antigo lixo putrescível, fonte de
problemas e de mazelas, transformado em adubo passa a
ser um amigo da agricultura, da revitalização dos jardins
e da vida urbana. Um problema que se transforma em
uma solução.
Portanto, lixo não se resume naquele saquinho deixa-
do na calçada. Na realidade, começa nas formas de se ver
e julgar o mundo. Sentidos presentes nas palavras utili-
zadas para julgá-lo.
 

Maurício Waldman é pós-doutor em Resíduos Sólidos pela Unicamp (Universidade de Campinas) e ambientalista histórico do Estado de São Paulo. Waldman participou do movimento ecumênico, foi membro da
direção da AGB (Associação dos
Geógrafos Brasileiros - seção São Paulo - e assessor de Chico Mendes. Autor de “Lixo: Cenários e Desafios”, obra finalista da edição 2011 do Prêmio Nacional Jabuti. Contato:
mw@mw.pro.br.




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