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Mulheres encarceradas, outra face do machismo
# Agoraéquesãoelas. Número de presas está disparando no Brasil. Condenações devem-se a obsessão punitiva e desconsideram tanto irrelevância dos “crimes” quanto situação vulnerável das mulheres
Por Juliana Carlos | Imagem: Luiz Silveira / Agência CNJ
O aprisionamento das mulheres vem crescendo em todo o mundo: entre 2000 e 2014, enquanto a população mundial cresceu 18%, o número de mulheres presas aumentou 50%. Durante o mesmo período, o número de mulheres presas no Brasil aumentou quase 4 vezes, segundo dados do Institute for Criminal Policy Research.
Na semana passada a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (o estado com o maior número de presos no Brasil: 221.636 pessoas) finalmente divulgou informações sobre o perfil de sua população carcerária, revelando que o tráfico de drogas é a causa da prisão de 72% das mulheres presas no estado.
Esse número permite ver que o tráfico de drogas, que já é hoje a maior causa de encarceramento no país (27% no total) e também no estado de São Paulo (38%), vem afetando de maneira desproporcional as mulheres.
Antes de mais nada é preciso lembrar que as mulheres presas por tráfico de drogas comumente são os elos mais vulneráveis na economia do crime, cumprindo papeis subalternos e ainda mais descartáveis do que seus parceiros homens. Some-se a isso a fato de que os efeitos da prisão – deletérios para qualquer pessoa – são ainda mais nocivos às mulheres. Sobre elas pesa, além da pena, o estigma de inadequação ao papel de gênero esperado e, não raro, o abandono dos parceiros e familiares durante o cárcere.
Já é mais do que hora de interrompermos essa espiral de punição, segregação e negação de direitos que a guerra às drogas tem provocado, sobretudo para as mais vulneráveis. E é hora também de pensarmos em políticas específicas para elas, que pagam o preço mais alto por essa guerra.
A Costa Rica já reconheceu a especificidade da condição feminina nos crimes de tráfico de drogas ao incluir o critério de gênero para análise de proporcionalidade das penas e de atenuantes causados por vulnerabilidade das mulheres (Ley 9161, de 2013). Lá as penas podem ser reduzidas em função da extrema pobreza, chefia de lar, responsabilidade sobre crianças e adolescentes, idosos ou pessoas com deficiência.
Esses critérios podem ser utilizados ainda para que o juiz determine o cumprimento de uma pena alternativa pela mulher presa por tráfico. Essa incorporação da perspectiva de gênero na legislação de drogas na Costa Rica foi reconhecida pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) como uma boa prática a ser implementada por outros países.
No Brasil, a descriminalização do uso de drogas e a definição de critérios objetivos para diferenciação entre uso e tráfico poderia ser um primeiro passo (embora, certamente, não seja suficiente) para diminuirmos o crescente número de mulheres encarceradas por crimes de drogas. Espera-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização do uso, ansiosamente aguardada, venha a evitar que pessoas com quantidades ínfimas de droga continuem a entupir nossos presídios. Essa alteração poderia ser benéfica sobretudo para as mulheres, comumente presas com pequenas quantidades de drogas.
A curto prazo, porém, a inclusão de uma categoria específica para mulheres presas por tráfico de drogas no Indulto Natalino* deste ano vem sendo defendido por mais de uma centena de instituições de reconhecida luta pelos direitos humanos e direitos das mulheres, e destacada nos últimos dias pelas. A proposta (destacada pelas grandes Julita Lemgruber e Kenarik Boujikian) é de que a presidenta Dilma inclua, como beneficiárias do indulto de Natal deste ano, as mulheres presas por tráfico de drogas que cumpram pena de até 5 anos de prisão, e mulheres com filhos menores de 18 anos, visando preservar o vínculo entre elas e seus filhos.
Nenhuma dessas medidas tem, sozinha, o poder da transformação que se deseja ver para as mulheres encarceradas no Brasil. Sabemos que os problemas estruturais do sistema de justiça e penitenciário, assim como o machismo que acompanha os julgamentos (morais e judiciais) que pesam sobre as mulheres continuarão a puni-las de maneira desproporcional e continuada. Esses passos, porém, oferecem oportunidades e abrem pequenos espaços para avançarmos na conquista de dignidade e respeito a essas mulheres – e os últimos dias já deixaram claro para quem ainda não sabia: em aproveitar os pequenos espaços para iniciar as mudanças que queremos nós já temos alguma experiência.
∗ Indulto de Natal: benefício de extinção da pena, concedido tradicionalmente pelo Presidente da República no fim de dezembro de cada ano.
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Juliana Carlos é socióloga, mestre em sociologia (USP) e em Direitos Humanos e Métodos de Pesquisa (Essex – Inglaterra). Recentemente publicou pesquisa sobre o impacto da política de drogas sobre encarceramento no estado de São Paulo (disponível em http://goo.gl/3lSzS5 ) – Escreveu para o Quebrando o Tabu a convite de Pedro Abramovay no projeto #AgoraéQueSãoElas
A obscura ameaça de privatização das águas
Por Roberto Malvezzi (Gogó)
Esses dias fui entrevistado pela Folha de São Paulo sobre uma nova investida da Agência Nacional de Águas para a criação do “mercado de outorga de águas”. O assunto é antigo e, vez em quando, se mexe no túmulo.
A proposta vem do Banco Mundial e FMI para a criação do mercado de águas como a melhor forma de gerir a crescente crise hídrica global. Como no Brasil a água é um bem da União (Constituição de 1988) ou um bem público (conforme a lei 9.433/97), ela não pode ser privatizada, nem mercantilizada.
Acontece que há tempos o grupo que representa o pensamento dessas instituições internacionais no Brasil – e das multinacionais da água — busca brechas na lei para criar o mercado de águas, pelo mecanismo de compra e venda de outorgas. Já que a água não pode ser um bem privado, então busca-se criar o mercado das outorgas (quantidades de água concedidas pelo Estado a um determinado usuário), para que possam ser vendidas de um usuário para outro.
Hoje, o mercado de outorgas é impossível. Quando um usuário que obteve uma outorga não utiliza a água demandada, ela volta ao poder do Estado. Não pode ser transferida para outro usuário, muito menos ser vendida. A finalidade é óbvia: evitar que se crie especulação financeira em torno de um bem público e essencial, evitando a compra e venda de reservas de água.
A lei já tem uma aberração, que é a outorga preventiva. Uma empresa pode reservar para si um determinado volume de água até que seu empreendimento possa ser implantado. Essa outorga preventiva pode ser renovada mesmo quando o prazo expirou sem que nenhuma gota d’água tenha sido utilizada.
Onde o mercado de águas – sob todas as formas – foi criado o fracasso foi mortal, literalmente. Na Bolívia gerou a guerra da água, na França, depois de alguns anos, o serviço voltou ao controle público. Assim em tantas partes do mundo. Mas o Brasil é tardio e colonizado. Muitos de nossos agentes públicos também o são.
Pela nossa legislação existe uma ética no uso da água, isto é, em caso de escassez a prioridade é o abastecimento humano e a dessedentação dos animais. Portanto, prioridades como essas, estabelecidas em lei, não podem ser substituídas pelo mercado. Em momentos críticos como esse, exige-se intervenção do Estado através do organismo competente para determinar a prevalência das prioridades sobre os demais usos.
Porém, se as regras forem mudadas para que passe a prevalecer o mercado, uma empresa de abastecimento de água, para ganhar dinheiro, poderá vender sua outorga — total ou parcialmente — para outra companhia: de irrigação, por exemplo. Nesse caso, sacrificaria as pessoas em função do lucro e da empresa que pode pagar mais pela água.
Portanto, não é só uma questão legal. É, antes de tudo, ética, humanitária e protetora dos direitos dos animais. A proposta inverte a ordem natural e dos valores, colocando o mercado como senhor absoluto da situação, exatamente em momentos de escassez gritante.
É sintomático que essas observações feitas à Folha de São Paulo não tenham sido publicadas. Apareceram apenas as vozes dos defensores do mercado de águas.
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