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23/08/2015 - Copyleft
'A América Latina começou uma nova história, que eu considero irreversível'
A América Latina começou a tomar consciência de que pode deixar de ser colônia. Esta primavera política, a dos governos populares, é a segunda emancipação.
IHU - Unisinos
“Minha terra natal é a Argentina, a outra é o Brasil, mas a pátria grande é a América Latina. Sou um latino-americanista”, disse Enrique Dussel (foto), pausadamente, em seu tom híbrido, no qual ainda restam traços do mendocino (Mendoza, Argentina) que alguma já teve.
Filósofo
argentino radicado, há quarenta anos, no México, Dussel deixou seu país
natal duas vezes. A primeira foi após passar pela Universidade de Cuyo.
Ficou 10 anos na Europa e seu pensamento crítico do eurocentrismo,
afirmou, fez com que se sentisse um estrangeiro em todas as partes: “A
maioria dos professores ainda são absolutamente eurocêntricos e em
filosofia são helenocêntricos. Acreditam que a filosofia nasceu em
Atenas e os próprios Heródoto, Platão e Aristóteles dizem que nossa
filosofia surgiu no Egito”.
Voltou
à Argentina em 1968 e viajou por toda a América Latina. Nos anos 1970,
junto com outros intelectuais argentinos, fundou a Filosofia da
Libertação. Esse movimento comprometido com a emancipação dos oprimidos e
relacionado com a Teologia da Libertação, que começou uma reforma
universitária em Mendoza, com programas de estudo de filosofia mundial
não eurocêntrica, fez com que ele se tornasse alvo de ameaças e
perseguições. “No dia 3 de outubro de 1973, colocaram uma bomba em minha
casa e começou a perseguição contra nós. Depois, quando veio a
intervenção de Oscar Ivanissevich, em março de 1975, retiraram-me da
universidade e fiquei desprotegido”.
Este
intelectual, que desde aquele momento adotou o México como destino do
exílio e lugar de residência, é reconhecido por suas contribuições nos
campos da filosofia, teologia e história. “No caso de um filósofo da
periferia, do Sul, a biografia é parte do conteúdo. Os europeus e os
norte-americanos já tem estabelecido o lugar a partir de onde falam, ao
contrário, (em nosso caso) necessita-se explicar muitas coisas para
dizer a partir de onde se fala”, afirma.
Reitor
interino (2013-2014) da Universidade Nacional Autónoma da Cidade do
México, atualmente é professor no Departamento de Filosofia na
Universidade Autónoma Metropolitana (Cidade do México) e no Colégio de
Filosofia da Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM (Cidade
Universitária). Veio à Argentina para receber o título de Doutor Honoris
Causa da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM).
A entrevista é de Astrid Pikielny, publicada por La Nación, 16-08-2015. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Que traços definem a cultura latino-americana?
Explicar
a América Latina é explicar a história universal, porque os que
chegaram aqui vinham do extremo do Ocidente: Finisterra, Portugal e
Espanha. E os que estavam aqui eram o extremo oriente do Oriente. Os
nossos indígenas são todos asiáticos, por raça e por mitos. E o choque
foi o mais importante da história universal: o extremo ocidente com o
extremo oriente. Isso me levou a repensar muitas coisas e ainda continuo
ensinando isto, porque ainda continuamos sendo eurocêntricos, estudando
estupidezes como a Idade Antiga, Medieval e Moderna, que foi uma
invenção dos românticos. Repetimos estas coisas como se fosse a ciência e
é pura ideologia.
Após 200 anos das revoluções no continente, você acredita que a América Latina deixou de ser colônia?
Começou
a tomar consciência de que pode deixar de ser colônia. E esta primavera
política, a dos governos populares, é a segunda emancipação. As
revoluções de 1800 foram o primeiro movimento: uma quase independência
política, militar, mas não mental, histórica e nem cultural. E entramos
em um neocolonialismo do qual não saímos. Pela primeira vez na América
Latina, de (Hugo) Chávez em diante, começa a ser levado a sério o tema
de que seremos iguais aos Estados Unidos e Europa em um ou dois séculos
de história. Não será em cinco dias, será um processo. Agora, também
estamos caminhando com força porque já temos uma consciência nova, que
não se cria por gênios teóricos, mas, ao contrário, é fruto de um
processo e de uma história. Que eu possa dizer isto é resultado de que a
América Latina está em outro nível de consciência. É a primeira vez que
a “esquerda”, com muitas aspas, ou os progressistas começam a tentar
fazer algo diferente.
É
possível falar de primavera política, quando a região ainda exibe
índices alarmantes de pobreza, desigualdade, exclusão e corrupção?
Os
processos podem entrar em crise, burocratização, contradição, mas já
começou uma nova história da América Latina, que eu considero
irreversível. Há primaveras que depois se transformam em invernos e, em
seguida, voltam a surgir primaveras. Eu falo de várias revoluções na
América Latina. A cubana de 1959, que infelizmente teve que ser
soviética e teoricamente há pouca originalidade. A chilena de Allende,
uma alternativa socialista democrática que, se a houvessem deixado
funcionar, teria dado muitos resultados, mas Pinochet a liquidou. A
sandinista de 1979, uma revolução cultural que rompia os esquemas do
marxismo-leninismo. Tudo isso vai lentamente abrindo um diagnóstico mais
complexo da realidade. A revolução já não é instantânea, nem é tão
clara, mas, ao contrário, é muito mais complexa, contraditória, leva
mais tempo no tempo. E depois quase é preciso esperar a revolução de
Chávez.
Acredita que na Venezuela houve uma revolução e que foi exitosa?
Não
há êxitos: começa um processo que contará com altos e baixos. Agora,
pode ocorrer um processo de corrupção democrática, é quase normal que
ocorra e é quase milagroso que não aconteça. A burocratização das
instituições é um processo inevitável.
O que Chávez contribuiu nesse processo?
Por
exemplo, a recuperação do capital petróleo é fundamental. Estava
completamente vilipendiado nas mãos de uma burocracia estrangeira. O
país não se beneficiava com isso.
Também não parece se beneficiar muito agora, não é?
Eu
não faço apologia a nenhum regime. É preciso ver a história de cada
lugar. O que era a Venezuela, desde a época colonial? Uma capitania
geral. Um lugar para onde iam os piratas; um lugar que, mesmo em
comparação com a Colômbia ou o México, era um pouco terra de ninguém. Os
venezuelanos não tiveram uma história, nem cultural e nem industrial,
porque era um país muito diferente dos outros. É preciso conhecer essa
história que, a partir de 1912, está vegetando, dependente do petróleo.
Não havia sido propiciada uma produção industrial, não havia tido uma
mentalidade em algumas coisas positivamente modernas e, então, não
podemos dar murro em ponta de faca. A Venezuela não é o mesmo que o
Brasil e a Argentina, mas houve mudanças fundamentais. E deu ao povo uma
consciência. Toda essa gente marginalizada começou a ser mais autora.
Isso não se faz em uma geração ou duas, leva mais tempo. Já não estamos
na revolução instantânea, nem nos milagres, é um processo. Começou a
primavera, mas virão invernos, outonos e outras primaveras. No fim do
século XXI, teremos avançado.
Que a Venezuela tenha a inflação mais alta do mundo, que haja saques, que haja fraturas sociais...
O
próprio fato de Chávez ter morrido tão jovem e com tanta capacidade de
condução é uma lástima, mas é uma realidade. Morreu Chávez, que poderia
ter continuado conduzindo um processo que eu chamaria de magistério. Que
tenha existido um Chávez já foi algo excepcional: um homem que era um
militar, que fez ciências políticas, e que estudou na universidade
central.
E um homem que, há anos, pegou em armas contra o governo e liderou um golpe.
Há
golpes e golpes. Contudo, não era um militar qualquer, era um homem
culto, que pelo menos captava a política. Que presidente está nesse
nível? García Linera. No mundo todo, não há um vice-presidente desse
nível teórico.
Certa
vez, você disse a Chávez que “a liderança perfeita é sua dissolução, é
quando o líder já não é necessário porque o povo já sabe governar e
participar”. Chávez gostou de sua ideia, mas fez totalmente o contrário.
E quando se olha para o mapa da América Latina, em muitos casos, estão
distantes disso porque continuam sendo terras de fortíssimas lideranças.
Nunca
tratamos teoricamente a fundo o tema da liderança, tampouco os
socialistas. Quem fez a revolução? Lenin, Mao, Fidel, todos grandes
líderes. A liderança é essencial na política, mas é preciso haver muitos
e em todos os níveis, gente que acredita no que diz e que esteja
empenhada, como San Martín. Fidel Castro disse, certa vez: “Quando um
povo acredita em alguém, é gente que se empenha pelo que pensa, mas a
questão é que o povo acredite em si mesmo”. No entanto, está difícil que
um povo acredite em si mesmo. Todos os meios de comunicação levam o
povo a ter uma apreciação mínima de si mesmo e se entregar ao primeiro
que lhe faz a propaganda da Coca-Cola.
Não
está dando muito poder aos meios de comunicação, que, em definitivo,
não esboçam políticas de Estado, nem implementam medidas de governo?
São
os que criam as condições para. Você diz “eu tomo a decisão A” e pode
ter sido a correta, mas os meios de comunicação dizem que é ruim, e
fazem outra contrária. Se eu quero destruir alguém, posso fazer isso
sempre porque sempre haverá uma razão contrária. A opinião pública é o
ponto de partida da política.
Não está subestimando o cidadão?
Isso
me dizem, às vezes. Uma vez explicava isto e os zapatistas me disseram:
“Você desconfia do povo”. Contudo, como pode ser que alguém ainda vote
em um governo que vende todos os recursos comuns de um país, como o
governo mexicano? Está vendendo o petróleo e está recebendo propina,
então liquida a jornalista que mostra como recebeu propina. E assim
temos uma ditadura perfeita, como dizia Vargas Llosa, porque aparece
como democracia e é pior que a ditadura militar...
Foi
publicada uma pesquisa jornalística que sustenta que a filha de Chávez
teria 4 bilhões de dólares. Não vejo em você nenhuma crítica aos
excessos ou aos defeitos de Chávez. E se os teve, gostaria que me
dissesse quais são.
A
condição humana é falível. Eu pensava que Pinochet era um homem
fanático, que se contentava com o exercício do poder. Quando se soube
que havia roubado sete milhões de dólares para a família, Pinochet caiu
para mim. Que a filha de Chávez tenha feito isso, bom, a filha cai para
mim. Agora, não acredito que Chávez tenha feito isso. Não me resulta
factível. No entanto, se fosse verdade, diria: “Pobre, caiu como outros
seres humanos”. Não justificarei ninguém. Abriu um caminho que continuou
com Correa, Evo Morales e muita gente.
Qual
a opinião de alguém como você, com um compromisso político de esquerda,
quando um governo como o kirchnerista intervém no Indec e deixa de
medir a pobreza?
E por que deixou de fazer isso? Para que não se veja a pobreza?
É provável. É uma das leituras.
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