Os impactos das transformações do jornalismo na democracia
http://www.iea.usp.br/noticias/os-impactos-das-transformacoes-no-jornalismo-na-democracia-2
por Mauro Bellesa
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publicado
04/12/2015 14:10
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última modificação
04/12/2015 14:15
Participantes do seminário (a partir da esq.): Marco Aurélio Nogueira, José Álvaro Moisés, Ricardo Gandour, Eugênio Bucci e Marco Antônio Carvalho Teixeira |
Os motivos dessa dúvida são algumas peculiaridades das novas mídias e do uso que a sociedade tem feito delas. A imensa fragmentação de fontes de informação, a superficialidade e a falta de rigor na apuração e checagem de muitos conteúdos, o auto grau de redundância das informações e o nivelamento da credibilidade entre autores com diferentes graus de comprometimento com princípios essenciais da comunicação pública fazem com que muitos cientistas sociais e jornalistas questionem a capacidade das novas mídias em fortalecer a cidadania.
Novo grupo pesquisará as
Durante o debate com Ricardo Gandour, Eugênio Bucci, conselheiro
do IEA, anunciou a criação do Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e
Sociedade, numa parceria entre o Instituto e o Departamento de
Jornalismo e Editoração (CJE), onde Bucci é docente, da Escola de
Comunicações e Artes (ECA) da USP. |
O jornalismo impresso sofre com a perda de publicidade e de leitores, o fracionamento das grandes empresas jornalísticas e a redução no número de jornalistas nas redações, que se desestruturam, restando a opção de limitar a cobertura, processo que já tem levado ao fim de algumas publicações impressas. Alguns analistas já preveem o fim dos jornais na próxima década.
Segundo José Álvaro Moisés, coordenador do Grupo de Pesquisa Qualidade da Democracia do IEA, organizador do seminário, "as redes sociais levam informação a mais pessoas, potencializando-as a agir, mas também provocam efeitos negativos. Há uma suposta democratização da informação, ainda que esta não seja uma conclusão obrigatória desse processo".
Moisés citou o escritor e semioticista italiano Umberto Eco, que em junho, numa entrevista coletiva, disse que “as redes sociais dão direito à palavra a legiões de imbecis”.
Para Ricardo Gandour, a maioria do debate sobre o jornalismo atual e seu futuro concentram-se nos modelos de negócio, com pouco espaço para a discussão sobre como a vida social e democrática será impactada se o jornalismo como é conhecido até agora terminar.
Para ele, “as fragilidades dos modelos de negócio, na esteira da fragmentação da publicidade e da aparente primazia dos jornais e revistas como gatekeepers [controladores do acesso] da informação, são aspectos centrais da discussão e do equacionamento para o futuro, em busca de um modelo sustentável para uma atividade predominantemente privada, mas de elevado interesse público”.
Gandour considera o jornalismo uma atividade multidisciplinar apoiada em três fatores: atitude, método e narrativas. “Olhar com atenção para esse tripé é uma forma produtiva de analisar as mudanças que nos tem afetado.”
Atitude
Para ele, a atitude é a centelha da profissão jornalística e está associada a uma permanente insatisfação com tudo a que se é apresentado. “É essa atitude que nos faz perguntar um pouco mais, de tentar entender melhor as coisas e o mundo, e por meio dos muitos e complexos lados que compõem um dado contexto.”
No entanto, essa postura de questionamento do jornalista deve estar associada, a seu ver, a uma postura de humildade, onde o profissional admite ter dúvidas e busca esclarecimentos e prestar um serviço ao leitor, cumprindo a missão de elucidar os fatos e traduzir o complexo, despindo-se de preconceitos e de posturas de autovalorização, como o vocabulário complexo.
Gandour afirmou que desde a queda do Muro de Berlim, há quase quatro décadas, o mundo desfruta e cultiva os paradigmas ligados aos parâmetros que norteiam o livre empreendedorismo: “Dar certo é imperativo. Ser bem-sucedido, atingir as metas, efetivar o plano de negócios”.
A dinâmica de mercado se exacerba e atinge até os contextos pessoais: “É preciso ser feliz, a todo custo e a qualquer hora; floresce a literatura de autoajuda empresarial e pessoal e, sobretudo a partir dos anos 90, renasce o jornalismo de celebridades”.
Ele disse que uma das boas definições diz que a notícia é uma informação que alguém não quer que seja divulgada. “Sempre que uma revelação com significativo peso jornalístico vem à tona, a probabilidade de alguém ser incomodado é muito grande, e ser incomodado é tudo o que essa sociedade do século 21 menos quer.”
Para Gandour, a sobrevivência do jornalismo exige um reforço de evangelização em torno de conceitos da atividade que não são óbvios nem facilmente assimiláveis a parcelas significativas da sociedade “expostas à corrente torrencial e crescente do laissez-faire”.
Método
Gandour destacou que o método jornalístico é composto pela aplicação de diversas disciplinas, como conceitos do cruzamento lógico de referências, filosofia, ciência política, direito, técnicas de entrevista e de pesquisa e mais modernamente o data journalism. No entanto, a adoção consciente e estruturada desse rol de disciplinas “está sendo substituída em grande medida pela simples consulta a um buscador na internet”.
Ele se questiona se atualmente os jornalistas apuram e editam melhor, uma vez que o entrevistado tem todos os seus dados, produção e referencias disponíveis na web. O contraponto a isso, no era pré-internet, era a consulta a uma pasta de recortes selecionados sobre o personagem no arquivo da redação.
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Outro fenômeno que interfere no método tradicional citado por Gandour é o contato pessoal cada vez menor entre repórteres e editores com seus interlocutores, devido à agenda sempre lotada. A troca de mensagens por meios eletrônicos resolve tudo de forma rápida, mas “perde-se o olhar, o ambiente e tudo o mais que pode enriquecer o contexto de uma reportagem”.
Ele disse que a complexidade, a sofisticação e a proliferação cada vez maior das estruturas governamentais, ONGs e empresas privadas está a exigir do jornalismo um método cada vez mais robusto
Narrativas
Atitude e método, porém, não bastam. É preciso oferecer ao público “uma narrativa adequada a um clientela cada vez mais exigente e exposta a uma miríade de possibilidades em story telling”.
Ele explicou que até o final da década de 80, a preocupação era harmonizar textos e imagens (fotos e ilustrações), numa solida parceria de editores e designers. Depois, nos anos 90, foram adicionados os infográficos, consolidando-se o trio texto-foto-arte, “que revirou os projetos gráficos de todas as publicações, de pequeno a grande porte”.
A utilização de vídeos nas páginas online se incorporou às possibilidades narrativas, “mas ainda estamos longe de incorporá-los com efetividade, usando-os como meras ilustrações de apoio, exatamente como fazíamos com as fotografias até os anos 80”.
Gandour considera que exercer plenamente o jornalismo na atualidade depende do resgate, preservação e manutenção desses três componentes e “manter-se relevante num mar de irrelevâncias”.
Ricardo Gandour: "Jornais são coágulos de reflexão e questionamento" |
Na sua avaliação geral sobre o papel do jornalismo e as mudanças provocadas pelas novas mídias, Gandour argumentou que os algoritmos das redes sociais reforçam os comportamentos de peer groups, em que se busca “a opinião, o comentário e a repercussão apenas ou majoritariamente de quem pensa igual ou semelhante, muitas vezes rejeitando o contraditório e o inusitado, características fortes do jornalismo”.
Ele disse que os blogs e as redes sociais foram saldados nos últimos anos como libertários, concordando que em muitos sentidos eles o são: “É inegável o poder da autopublicação e de estabelecimento e resgate de contatos, de mobilização em prol de caus públicas, no fortalecimento de convívio de grupos sociais e até na educação”. No entanto, considera que todos esses benefícios ficam ofuscados quando comparados “ao poder pernicioso da proliferação irresponsável de rumores não-checadas, a comprometer reputações e influenciar decisões”.
Gandour afirmou que os veículos denominados “tradicionais (“aglutinações onde se pratica jornalismo estável, profissional, remunerado”), mesmo pressionados, continuam sendo referência informativa, até mesmo nas redes sociais. “A dificuldade que permanece é como os veículos transforma essa (ainda) forte imagem de origem crível de informação qualificada em receita adicional, para compensar a fragmentação dos faturamentos por vias tradicionais.”
Segundo ele, o que mais preocupa os responsáveis pelo planejamento estratégico das empresas jornalísticas é o tempo que poderá decorrer até que a carteira de assinantes digitais seja suficientemente relevante para compensar as quedas constantes da publicidade tradicional.
Para Gandour, a robustez, solidez e relevância dos veículos jornalísticos são essenciais para:
- permanecer firmes no papel de fiscalizadores das diversas esferas de interesse público;
- manter e aprimorar o reconhecimento pela sociedade da importância do jornalismo independente e de qualidade;
- atuar na manutenção e avanço da media literacy, especialmente entre as novas gerações, que podem crescer sem necessariamente aprender a discernir (pois os meios digitais frequentemente confundem os gêneros) um texto informativo de um opinativo, uma reportagem de um artigo analíticos e até jornalismo de publicidade;
- consolidar e manter os métodos formais que sustentam a prática jornalística, sob o risco de tais códigos e éticas se perderem e/ou se enfraquecerem, e assim não serem plenamente transpostos para as novas narrativas midiáticas;
- manter os investimentos em formação e treinamento das novas gerações de jornalistas, responsáveis pelo zelo e aprimoramento dos métodos e éticas.
Um dos debatedores, o cientista político Marco Aurélio Nogueira, da Unicamp, disse que o jornalismo, apesar de ser cada vez mais relevante em termos de poder, é visto sempre com desconfiança pela opinião pública. “E não é uma desconfiança apenas pelo poder político (quando se fala de ‘mídia golpista’, por exemplo), mas uma desconfiança do cidadão comum, que se afasta da imprensa.” Nogueira também comentou a postura dos jornalistas e do jornalismo: “Quanto mais poder, mas a imprensa se comporta de forma arrogante e é vista como arrogante”.
O sociólogo Marco Antônio Carvalho Teixeira, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) disse que ao mesmo tempo que a agilidade exigida na busca de informação indica que só o jornalismo profissional deverá sobreviver isso também representa um risco para ele, para que possa produzir informações consistente, checadas e transmitidas com boa narrativa.
Ele destacou a grande repercussão, principalmente via redes sociais, do que é publicado em blogs com posicionamento político-partidário: "Talvez eles sejam 'a mais perfeita tradução' do plebiscitarismo mencionado por Gandour e da superficialidade que toma conta do debate".
Teixeira também comentou o aspecto da humildade proveniente da dúvida e da necessidade de construir uma narrativa ouvindo outras pessoas, ressaltando, porém, "que muitas vezes quando alguém é procurado para uma entrevista trata-se apenas para confirmar uma posição já adotada pelo jornalista."
Para o jornalista e professor Eugênio Bucci, conselheiro do IEA e superintendente de Comunicação Social da USP, há um problema cultural que é uma agravante no Brasil: a incompreensão do que seja o jornalismo. “Chamamos assessor de imprensa de jornalista, há certa promiscuidade nas relações entre as áreas editorial e comercial e dificuldades educacionais no jornalismo e na sociedade”, exemplificou.
Bucci destacou a avaliação feita por Gandour de que a superficialidade presente nas mídias sociais é um componente que favorece a polarização de opiniões. Acrescentou que o Facebook, "ao contrário da natureza pública que deveria caracterizar as redes sociais, configura-se como um território privado e, nesse sentido, estamos na Idade Média”.
Gandour concordou em linhas gerais com os comentários feitos pelos debatedores e disse que o jornalismo assim como a democracia, "não é infalível, mas a forma de manifestação jornalística estruturada, com contornos identificais, ou seja, a mídia tradicional com suas grandes redações, ainda não foi suplantada por algo melhor". Ele caracterizou os jornais, ao lado de outras instituições como grandes "coágulos" de reflexão e questionamento e perguntou: "A sociedade pode viver sem esses coágulos?".
Presente na plateia, o diretor de redação da revista “Época”, João Gabriel Lima, disse nos Estados Unidos as instituições de imprensa configuraram um “ecossistema jornalístico” e que os veículos digitais não se colocam em atitude de oposição à imprensa tradicional, havendo inclusive grande fluxo de profissionais desta para sites como o Vox e o ProPublica.
O cientista político Edson Nunes, professor da PUC-SP, utilizou metáfora similar à dos coágulos mencionada por Gandour. Segundo ele, a democracia tem dificuldade em sobreviver numa sociedade em que não há "gruminhos", imagem criada por Alexis de Tocqueville (1805-1859), para quem "os gruminhos são uma contraposição ao despotismo". Disse também que no contexto da internet falta a postura de confronto da mídia tradicional e todas as opiniões se equivalem: “Essa igualdade leva à superficialidade, que por sua vez leva à polarização”.
Fotos: Leonor Calazans/IEA-USP
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