As 10 mentiras mais contadas sobre os indígenas
http://www.axa.org.br/a-axa/historico/
Histórico da AXA:
A AXA surge em 2007 do encontro de dois processos sociais que
aconteciam na região: a Campanha Y’Ikatu Xingu, trabalho compartilhado
por diversas instituições para a recuperação das nascentes e matas
ciliares da Bacia do Rio Xingu, que iniciava suas ações em Canarana (MT)
em 2006, e, a atuação militante, desde a década de 1970, das
organizações sociais nascidas ou inspiradas na Prelazia de São Félix do
Araguaia (MT), principalmente a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a
Associação Nossa Senhora da Assunção (Ansa) e a Associação Terra Viva
(ATV).
Desse encontro e da provocação dos assentados, agricultores familiares e indígenas, público alvo do trabalho de todas essas instituições, se articulou a criação de um espaço interinstitucional que ajudaria a otimizar os trabalhos realizados no eixo da BR-158.
O objetivo dessa aliança é mobilizar a sociedade para criar uma alternativa sustentável de manejo da terra, de recuperação de áreas degradadas, e de geração de renda a partir da floresta em pé. Com ações demonstrativas e de sensibilização, empreendimentos sustentáveis. Além da mobilização de grupos e fiscalização das políticas públicas, a AXA visa contribuir para a transformação social incentivando uma nova maneira de de desenvolvimento nas bacias do Rios Araguaia e Xingu.
Desse encontro e da provocação dos assentados, agricultores familiares e indígenas, público alvo do trabalho de todas essas instituições, se articulou a criação de um espaço interinstitucional que ajudaria a otimizar os trabalhos realizados no eixo da BR-158.
O objetivo dessa aliança é mobilizar a sociedade para criar uma alternativa sustentável de manejo da terra, de recuperação de áreas degradadas, e de geração de renda a partir da floresta em pé. Com ações demonstrativas e de sensibilização, empreendimentos sustentáveis. Além da mobilização de grupos e fiscalização das políticas públicas, a AXA visa contribuir para a transformação social incentivando uma nova maneira de de desenvolvimento nas bacias do Rios Araguaia e Xingu.
http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=83726
via Adital
Lilian
Brandt, antropóloga e colaboradora da Articulação Xingu Araguaia (AXA) fez um
levantamento importante para se entender os estereótipos que ainda envolvem a
imagens dos indígenas no Brasil. Ela denomina de "As 10 mentiras mais contadas
sobre os indígenas”. Segundo a especialista, as afirmações listadas foram
extraídas da vida real. "Algumas nas ruas do interior do Brasil, outras nas
cidades grandes, outras em discursos de políticos. Percepções diversas, vindas
de pessoas com histórias diferentes, mas com um direcionamento em comum: a
disseminação do discurso anti-indígena”.
http://www.axa.org.br/reportagem/as-10-mentiras-mais-contadas-sobre-os-indigenas/
As 10 mentiras mais contadas sobre os indígenas
02 de dezembro de 2014
As afirmações listadas abaixo foram extraídas da vida real. Algumas nas ruas do interior do Brasil, outras nas cidades grandes, outras em discursos de políticos. Percepções diversas, vindas de pessoas com histórias diferentes, mas com um direcionamento em comum: a disseminação do discurso anti-indígena com argumentos falsos.
Por Lilian Brandt* / AXALeia nesta reportagem sobre as seguintes mentiras:
1) Quase não existe mais índio, daqui alguns anos não existirá mais nenhum
2) Os índios estão perdendo sua cultura
3) Estão inventando índios, agora todo mundo pode ser índio
4) O Brasil é um país miscigenado, aqui não tem racismo
5) Os índios têm muitos privilégios
6) Os índios são tutelados, por isso índio não vai preso e não pode comprar bebida alcoólica
7) Tem muita terra para pouco índio
8) Os índios são preguiçosos e não gostam de trabalhar
9) Nossa sociedade é mais avançada, não temos nada para aprender com os índios
10) Os índios atrasam o desenvolvimento do País
Mentira nº 1: Quase não existe mais índio, daqui alguns anos não existirá mais nenhum
Se as pessoas não sabem muito sobre os
indígenas na atualidade, sabem menos ainda sobre o passado destes povos.
Mesmo os pesquisadores não encontram um consenso, e os números variam
muito conforme os critérios utilizados.
A antropóloga e demógrafa Marta Maria
Azevedo estima que, na época da chegada dos europeus, a população
indígena no Brasil era de 3 milhões de pessoas. Eram mais de 1.000 povos
diferentes, que durante séculos foram exterminados pelos
conquistadores, seja por suas armas de fogo, seja pelas doenças que eles
trouxeram. De acordo com antropóloga, em 1957 havia no Brasil apenas 70
mil indígenas. O crescimento desta população é observado somente a
partir da década de 1980.
Em 1991, quando o IBGE passou a coletar
dados sobre a população indígena brasileira, eles somavam 294 mil
pessoas. Em 2000, o Censo revelou um crescimento da população indígena
muito acima da expectativa, passando para 734 mil pessoas. Em 2010, a
população indígena continuou crescendo, e o Censo mostrou que mais de
817 mil brasileiros se autodeclararam indígenas, representando 0,47% da
população brasileira. Eles estão distribuídos em 305 etnias e falam 274
línguas.
Esse aumento populacional jamais seria
possível se fossem considerados apenas fatores demográficos, como a
natalidade e a mortalidade. Esses dados revelam o crescimento do número
de pessoas que passaram a se reconhecer como indígenas e o
“ressurgimento” de grupos indígenas. Isto se dá porque, antes, ser índio
no Brasil significava ser atrasado, inferior, escravizado, catequizado,
ser alvo de discriminação, de chacinas e até mesmo não ser considerado
humano. Diversos povos foram obrigados a abrir mão de suas línguas e de
sua cultura. Agora os povos indígenas voltam a afirmar sua identidade,
talvez porque as circunstâncias estejam mais amigáveis. Ou talvez porque
este grito não suporte mais ser calado.
Tratá-los simplesmente como “índios”
esconde a imensa diversidade cultural e circunstâncias de vida tão
distintas. Mas algo muito mais forte que as diferenças étnicas propicia a
união destes povos: o fato de se sentirem diferentes de nós.
Temos no Brasil todos os tipos de
extremos: índios que possuem seu território assegurado e índios que
morrem lutando por seu território; índios brancos e índios negros;
índios cristãos e índios pajés; índios isolados e índios urbanos.
Os povos indígenas isolados são aqueles
que não estabeleceram contato permanente com a população nacional e com o
Estado. As informações sobre eles são transmitidas por outros índios,
por moradores da região e por pesquisadores. A Funai (Fundação Nacional
do Índio) tem cerca de 107 registros da presença de índios isolados em
toda a Amazônia Legal, dos quais 26 já foram confirmados e estão sendo
monitorados, seja por imagens de satélite, sobrevoos ou expedições na
região. Não se sabe, no entanto, a quantidade destes povos e indivíduos
que vivem voluntariamente isolados.
Muitos já tiveram alguma experiência de
contato não amistosa com garimpeiros, madeireiros, grileiros e
traficantes próximos à fronteira. Também é provável que tenham tido ou
mantenham contato com populações ribeirinhas, seringueiros e,
principalmente, com algum outro povo indígena.
Os resultados do contato conosco são
trágicos, a começar pelas doenças que transmitimos, para as quais eles
não têm imunidade: sarampo, rubéola, caxumba, difteria, tétano,
hepatite, gripe e outras. Conhecendo esta realidade, estes povos que
vivem em situação de isolamento escolheram fugir. Isso não significa, no
entanto, que eles não tenham notícias de nossa sociedade. Eles observam
rastros, utilizam ferramentas e se relacionam com outros indígenas que
contam as novidades do mundo do branco.
Em outros tempos, como muitos devem se
lembrar, o órgão governamental indigenista, na época chamado SPI
(Serviço de Proteção aos Índios), deixava presentes como espelhos,
panelas e ferramentas para atrair os indígenas. Hoje a Funai busca
garantir que eles tenham seu território assegurado para transitarem
livremente. Mas as ameaças são muitas e cada vez mais seus territórios
são menores.
Os indígenas que vivem em áreas urbanas
somam 324 mil, ou seja, 36% do total da população indígena, um número
que vem crescendo ano após ano (IBGE, 2010). Há dois motivos recorrentes
para que esses índios vivam em áreas urbanas. Um deles é a migração dos
territórios tradicionais em busca de melhores condições de vida na
cidade. O outro é que os limites das cidades cada vez mais alcançam as
fronteiras de seus territórios.
As pessoas continuam acreditando que a
população indígena está sendo reduzida, mesmo que os números digam o
contrário e que eles estejam mais presentes nos centros urbanos. A
desinformação tem uma consequência: fingimos que os índios estão
deixando de existir e gradualmente não pensamos mais na situação deles.
Assim fica mais fácil justificar nenhum respeito a seus direitos e à sua
própria vida.
Voltar à lista de mentirasMentira nº 2: Os índios estão perdendo sua cultura
Esta afirmação resume uma série de
outras ideias muito difundidas: “índio que usa celular não é mais
índio”, e suas variáveis televisão, computador, calça jeans, tênis, rede
de pesca, barco a motor, caminhonete, trator e etc.
De modo geral, cultura é o conjunto de
manifestações que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a língua, a
moral, os costumes, os comportamentos e todos os hábitos e aptidões
adquiridos por pessoas que fazem parte de uma sociedade específica.
Sendo composta por diversos elementos, a
cultura está em constante transformação, se inter-relacionando de
diferentes formas com o ambiente, as circunstâncias, outras culturas e
consigo mesma. Logo, a cultura não é algo que se perde, é algo que se
transforma constantemente.
É certo, no entanto, que não temos uma
relação de troca cultural justa com os indígenas. Nossa sociedade se
caracteriza por termos uma cultura dominadora e impositiva. O impacto do
nosso modo de vida reflete diretamente na vida dos indígenas, de forma
que hoje já não há a mesma fartura e biodiversidade que se tinha em
1500. O rio está contaminado por agrotóxicos, a floresta foi derrubada e
a quantidade de peixe e de caça foi drasticamente reduzida.
Neste sentido, a incorporação de
elementos de outra cultura é também uma estratégia de resistência. O uso
de equipamentos de pesca dos “brancos”, por exemplo, pode ser um modo
de resistência cultural, num entendimento de que pescar é mais
importante para a identidade indígena do que se manter preso a técnicas
tradicionais e não chegar com o peixe em casa.
Uma das maneiras de se fortalecer a
tradição é inovar a partir de uma forte referência tradicional. Um grupo
de jovens Guarani Kaiowá nos dá um bom exemplo de resistência cultural.
O grupo de rap Brô MC’s é formado por duas duplas de irmãos, e daí o
nome “brô”, do inglês “brother”. Suas rimas misturam português e guarani
e denunciam o desmatamento ilegal, o esquecimento e a perseguição que
seu povo sofre por pressão do agronegócio. (Curta o som aqui)
Outras vezes, objetos não-indígenas
podem ser inseridos na cultura indígena com um significado e uso
completamente diferentes do nosso, como garrafas plásticas
cuidadosamente cortadas e limadas para fazerem colares, à semelhança do
que fazem há centenas de anos com as lascas de caramujos. E outras
vezes, por fim, eles podem incorporar determinado elemento de outra
cultura e nem por isso serem “menos índios”, assim como comer sushi não
nos torna japoneses, tomar chimarrão não nos torna gaúchos e tomar
banhos diários não nos torna índios.
Nos assusta a velocidade com que alguns
indígenas incorporam elementos da nossa cultura no seu modo de vida. Mas
sabemos que as trocas entre povos sempre existiram. Se nos chama a
atenção ver um indígena ao celular, é porque não sabemos que o adorno
que ele utiliza em rituais de sua tradição há séculos podem ter sido
confeccionados por um outro povo e utilizados como moeda de troca. E por
que não?
Com que velocidade os Karajá
incorporaram elementos da cultura Tapirapé, e vice-versa? Com que
velocidade os brasileiros incorporam elementos da cultura
norte-americana? Não existe meios de medir precisamente as causas e os
efeitos destas trocas culturais.
Nossa sociedade não aceita que este
sujeito tão diferente de nós possa utilizar as mesmas tecnologias e bens
de consumo que utilizamos. Assim, ao mesmo tempo que vemos os indígenas
como inferiores por não terem desenvolvido as tecnologias que nos
saltam aos olhos, não aceitamos que ele desfrute das facilidades da vida
contemporânea. Como se tudo o que temos hoje fosse resultado apenas do
trabalho de homens brancos e para usufruto exclusivo de homens brancos.
Como se o progresso tecnológico e econômico não tivesse sido
impulsionado também pela tomada de territórios e riquezas que pertenciam
a esses índios.
Mas para que índio quer tecnologia?
Tenho visto indígenas vendendo artesanatos através do Facebook, trocando
e-mails com lojas que revendem suas produções, promovendo
abaixo-assinados para terem seus direitos respeitados, se comunicando
com parentes que ficaram na aldeia enquanto ele saiu para estudar na
cidade e namorando, como a gente.
O uso da fotografia e, especialmente, a
produção de vídeos, tem se destacado entre os povos indígenas com a
função de registrar a realidade, de encenar mitos e histórias, de criar
estórias e de mostrar para outros povos (indígenas ou não) um pouco de
sua cultura. As produções audiovisuais também têm sido usadas como uma
ferramenta de denúncia ao ataque de seus direitos.
Outro equipamento que tem sido bastante
útil é o GPS, que pode ser uma ferramenta de vigilância e atuação
conjunta com os órgãos responsáveis pelo combate do garimpo, de
madeireiras e de outras atividades ilícitas.
Voltar à lista de mentirasMentira nº 3: Estão inventando índios, agora todo mundo pode ser índio
Se a pessoa se reconhece como indígena e
se identifica com um grupo de pessoas que também se reconhecem como
indígenas e a consideram indígena, então ela é. Não existe nenhum
reconhecimento da Funai, nenhum julgamento de um não-indígena e nenhum
critério imposto por nossa sociedade que possa ser maior do que o seu
sentimento e o sentimento da coletividade a qual ela pertença.
Ela pode se considerar indígena por uma
questão genética e/ou cultural, mas não cabe a nós e nem ao governo
atribuir identidade a outra pessoa. A autodeclaração é defendida também
pela Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2000.
Por isso, não tem fundamento a ideia de
que “sendo assim, todos os brasileiros seriam indígenas, já que correm
em nossas veias sangue indígena, daquela bisavó que foi pega no laço”.
Este discurso não viria de um indígena. Se o cidadão diz isso querendo
reduzir o direito de ser índio na atualidade, é evidente que está se
identificando muito mais com o bisavô estuprador do que com a bisavó
violentada.
Repare que a televisão, por exemplo, se
esforça em caricaturar os indígenas. Quando a TV mostra aquele
“indiozão” bonito da Amazônia, forte, guerreiro, caçador, todo enfeitado
de penas e muito bem pintado, o povo acha bonito de ver e até acha que
não existe mesmo racismo contra indígena. Mas quando a TV diz que aquele
é um índio, discretamente nega outras possibilidades de índios.
Nega que existam índios sem penas e sem
pinturas, com jeans e celular. Nega aqueles que não têm mais arara em
seu território e por isso não usam cocar. Nega aqueles que têm cabelo
crespo porque os negros escravizados fugiram para sua aldeia e foram bem
recebidos como parceiros de resistência. Nega aqueles que vivem nas
cidades porque seus territórios foram invadidos, aqueles que vão para
Brasília protestar, etc.
Os índios são como são. Se nossa
sociedade tem dúvida se um indivíduo é índio, esta dúvida não encontra
recíproca por parte dele. Quem é índio sabe que é, porque tem a vivência
do seu povo e sente na pele o racismo.
Nossa sociedade acredita que existe uma
escala de quem é mais ou menos índio: “vive em maloca? Tem cabelo liso?
Sabe pescar? Usa celular? É rico?”. Mas não é assim que funciona, não
existe uma tabelinha para a gente definir quem é e quem não é, quem é
mais e quem é menos. Essa crença evidencia o desejo oculto de querer que
tenham menos índios, pois alguns já estão “aculturados” e “integrados”.
A Convenção nº 169 da OIT garante a
autodeterminação dos povos e o direito de que cada população indígena ou
tribal possa escolher seus próprios caminhos para o futuro. Esse
princípio consta ainda na Declaração das Nações Unidas sobre os direitos
dos povos indígenas.
O entendimento de que os indígenas
seriam assimilados até deixarem de existir já foi superado na
legislação, mas ainda precisa ser superado na sociedade.
Voltar à lista de mentirasMentira nº 4: O Brasil é um país miscigenado, aqui não tem racismo
Racismo, assim como machismo, é algo
sutil. Às vezes ele aparece escancarado, quando um sujeito chama um
negro de “macaco”, quando uma mulher é estuprada, quando se constata um
salário menor para mulheres e negros do que para homens brancos para
fazerem exatamente o mesmo trabalho. Esse racismo escancarado é muitas
vezes (mas nem sempre) condenado pela sociedade.
Mas nem tudo é preto no branco, racismo
ou não-racismo. Há infinitas combinações de cores, há infinitas formas
de demonstrar e de esconder o racismo e ainda assim julgar-se superior.
Com indígenas é pior, porque a diferença
não está só na cor da pele, no tipo de cabelo e na classe social. Além
de tudo isso, a diferença é cultural e muitas vezes até linguística. Os
indígenas são os brasileiros mais ímpares e diferentes que compartilham o
mesmo território que nós.
O racismo pode aparecer em momentos
leves, entre amigos. As pessoas naturalizaram de uma tal forma o racismo
contra indígenas, que não percebem que jamais poderiam usar aquelas
mesmas palavras para se referir a qualquer outro grupo de pessoas. Nossa
sociedade tem sido muito conivente com o racismo contra indígenas, a
despeito do que diz nossa legislação.
Conforme a Constituição Federal e a Lei
nº 7.716/89, serão punidos os crimes de discriminação ou preconceito
contra raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, sendo o crime
de racismo inafiançável e imprescritível. No entanto, diariamente os
indígenas são discriminados e são raros os casos de denúncia e
condenação.
As redes sociais, por exemplo, estão
repletas de conteúdo racista. Em abril de 2014, a Justiça Federal
condenou um jornalista amapaense por cinco mensagens que utilizavam
expressões de desprezo se referindo aos índios Guarani Kaiowá. De acordo
com a decisão, o jornalista prestaria serviços comunitários na Casa de
Apoio à Saúde Indígena do Amapá (Casai) e pagaria seis salários mínimos
ao Conselho de Caciques de Oiapoque e à Associação dos Indígenas de
Wajãpi. A proposta é que, prestando serviços comunitários na Casai, o
jornalista conviva com indígenas e, conhecendo a realidade, passe a
respeitá-los. Tomara que sim. (Saiba mais)
Na esfera política os discursos de ódio
estão cada vez mais escancarados. O presidente da Frente Parlamentar da
Agropecuária, Deputado Federal Luís Carlos Heinze (PP-RS), diversas
vezes desqualificou publicamente quilombolas, índios, gays e lésbicas (saiba mais).
As urnas mostraram que a população o apoia: em 2014, Heinze foi
reeleito pela 5ª vez, como Deputado Federal do Rio Grande do Sul, sendo o
deputado mais votado do estado.
Os discursos racistas atingem
diretamente os indígenas. O relatório Conflitos no Campo Brasil 2013, da
Comissão Pastoral da Terra (CPT), mostra que, das 1.266 ocorrências
relacionadas ao conjunto dos conflitos no campo no Brasil, 205 estão
relacionadas a indígenas, totalizando 16%. A maior parte destes casos
refere-se a conflitos por terra ou retomada de territórios, somando 154
ocorrências.
Os povos indígenas são os mais afetados
pela violência no Brasil. Ainda segundo o relatório Conflitos no Campo
Brasil, em 2013, das 829 vítimas de assassinatos, ameaças de morte,
intimidações, tentativas de assassinato e outras, 238 eram indígenas.
Das 34 mortes por assassinato, 15 eram de indígenas. Eram também
indígenas 10 das 15 vítimas de tentativas de assassinato, e 33 das 241
pessoas ameaçadas de morte.
É triste constatar que as mortes de
indígenas no campo, as quais se caracterizam como um verdadeiro
genocídio, encontram uma referência no discurso de figuras públicas e
lideranças políticas, quase sempre motivadas por interesses econômicos.
O racismo (assim como o machismo) habita
o imaginário social, paira sobre a sociedade como um todo, e,
consequentemente, sobre cada indivíduo. Como toda ideia, ele é vivo,
autônomo e se faz transparecer em ações e ideologias.
Um dos modos que o racismo age é pela
generalização, quando se nota algo negativo de um indivíduo e se
transfere essa questão ofensiva para o povo todo. Utilizando um exemplo
bem comum em cidades pequenas que convivem com indígenas, imagine que
alguém veja na rua um homem bêbado. Se o homem não é indígena,
comenta-se “este homem está bêbado”, mas se ele for indígena o
comentário é “os índios estão sempre bêbados”.
A sociedade é racista, e mesmo que você
não se considere racista, às vezes ele pode escapar discretamente. Vigie
seus atos, pensamentos, sentimentos e se permita ver.
Voltar à lista de mentirasMentira nº 5: Os índios têm muitos privilégios
Se estivéssemos aqui falando de
privilégios como desfrutar de uma vida em meio à natureza, estaria tudo
bem. Mas não, infelizmente este discurso vem acompanhado da crença de
que “índio recebe um salário do governo a partir do momento que nasce”.
Pior do que ter tantas pessoas
acreditando nisso, é a surpresa que expressam quando descobrem que não.
“Não? Mas então, do que vivem?”. Parece impossível acreditar que
trabalham e que batalham pelo seu sustento. Ao contrário do que tantos
brasileiros acreditam, não existe muita vantagem em ser indígena hoje em
dia. Existe sim, muita coragem.
Em relação à saúde, a diferença é que os
indígenas são atendidos pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde
Indígena), que é parte do mesmo SUS que atende aos não-indígenas. Na
teoria, essa distinção permite um olhar diferenciado dos profissionais
de saúde, considerando questões culturais e atuando em consonância com
as práticas de saúde tradicionais indígenas. Na prática, como os nossos
postos de saúde, alguns funcionam bem, outros não. Faltam equipamentos,
às vezes não têm remédios, faltam profissionais especializados, etc.
Falta percorrer um longo caminho.
Na área da educação por muitos anos os
indígenas estiveram expostos à imposição de nossos valores e negação de
sua identidade e cultura. Hoje o Ministério da Educação é responsável
por desenvolver uma educação diferenciada, intercultural e bilíngue,
dando espaço aos processos de aprendizagem e aos conhecimentos
indígenas. Além disso, os indígenas podem elaborar seus próprios
currículos e rotinas escolares com gestão indígena. De acordo com o
Ministério da Educação, a maioria dos professores ainda são
não-indígenas, totalizando 7.968, enquanto professores indígenas somam
7.321. Na prática, como no ensino público para não-indígenas, com
exceção de alguns casos de sucesso, faltam materiais didáticos
específicos, alimentação (sendo que poucas vezes esta é de fato
diferenciada), infra-estrutura etc.
Quanto aos benefícios sociais, indígenas
são considerados pelo INSS “segurados especiais” para fins de acesso ao
salário maternidade, aposentadoria por idade, auxílio doença, auxílio
acidente, aposentadoria por invalidez, pensão por morte e auxílio
reclusão.
Segurados especiais são os trabalhadores
rurais que produzem em regime de economia familiar, sem utilização de
mão de obra assalariada. Além dos indígenas, são considerados segurados
especiais os agricultores, os seringueiros e os pescadores artesanais.
Os indígenas precisam comprovar que sua subsistência advém do
extrativismo, do plantio ou de outra atividade vinculada à terra e aos
recursos naturais. Ou seja, os indígenas acessam estes benefícios não
por serem indígenas, mas sim por viverem de atividades rurais, pois se
forem assalariados, deixam de ser segurados especiais.
E, por fim, os indígenas possuem o direito de usufruir de seu território. As Terras Indígenas não
são dos indígenas, são propriedade da
União, terras públicas que pertencem a toda a nação brasileira, cedidas
aos índios em regime de posse permanente e usufruto exclusivo. Ou seja,
eles não têm a propriedade das terras: ganham o direito de nelas residir
e fazer uso das riquezas do solo e das águas para a atual e as futuras
gerações viverem.
Voltar à lista de mentirasMentira nº 6: Os índios são tutelados, por isso índio não vai preso e não pode comprar bebida alcoólica
Essa história é antiga e tem um fundo de
verdade. Desde o período colonial até o século passado, o Estado sempre
considerou que os indígenas deveriam ser integrados, ou seja, deveriam
negar suas identidades em nome de sua inserção à nação brasileira.
Esta concepção foi perpetuada por
séculos e virou “tutela” no Código Civil de 1916 (artigo 6º), que
enquadrou os índios na categoria de relativamente incapazes, condição
semelhante à dos órfãos menores de idade no século XIX.
O Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/73)
endossou o regime de tutela, depois de separar categorias de índios em
“isolados”, em “vias de integração” e “integrados”, estabelecendo que o
regime tutelar se aplicaria aos índios ainda não integrados.
O Estado tutor é aquele que decide pelos
índios e, sob pretexto de cuidar deles, os mantém sob controle. Em nome
desta “tutela”, o Estado brasileiro promoveu um verdadeiro genocídio. A
Comissão Nacional da Verdade, que investiga crimes cometidos pelo
governo ou agentes da ditadura militar, estima que somente a construção
de estradas na Amazônia, no governo do general Médici (1969-1973), matou
em torno de 8 mil índios (saiba mais).
Na região do Araguaia, o povo Xavante de
Marãiwatsédé entregou um relatório de 71 páginas à Comissão Nacional da
Verdade. Entre os crimes, estão a invasão do território com a
condescendência de autoridades, empresários e poderes locais e nacionais
(saiba mais).
A legislação só tomou um rumo diferente
em 1988, com a atual Constituição Federal Brasileira. Nossa Constituição
reconheceu e introduziu os direitos permanentes dos índios, abandonando
a ideia de que eles seriam assimilados à nossa sociedade e endossando a
ideia de que os índios são sujeitos presentes e capazes de permanecer
no futuro. Ela reconheceu ainda o direito dos indígenas às suas terras e
à cidadania plena. Esse avanço na legislação indigenista foi uma
conquista do movimento indígena.
O Novo Código Civil Brasileiro (2002),
em seu Art. 4º, diz que “a capacidade dos índios será regulada por
legislação especial”. Como essa tal lei não existe, alguns podem
acreditar que se trata do antigo Estatuto do Índio, e daí se cai em
contradição, já que o referido Estatuto trata o índio como semi-incapaz.
O Estatuto do Índio e suas ideias
retrógradas nunca foram oficialmente revogados, mas muitos especialistas
acreditam que a Constituição Brasileira, como nossa lei máxima, por si
só já o revoga em relação à tutela. Porém, muitos juristas, legisladores
e a população brasileira ainda remetem ao Estatuto do Índio para
embasar decisões e discursos, valendo-se da contradição das leis e
provocando insegurança jurídica para os povos indígenas.
Por isso, no entendimento da Funai e de
diversos especialistas, indígenas são tão cidadãos quanto nós, e podem
sim comprar bebidas alcoólicas fora das Terras Indígenas. Aliás, o
comerciante que não vendesse estaria cometendo um crime ao discriminar o
indígena, além de uma prática abusiva prevista no inciso IX do art. 39
do Código de Defesa do Consumidor.
Algumas instâncias governamentais
encontram amparo legal no Estatuto do Índio para proibir a venda de
bebidas alcoólicas para indígenas. O Artigo 58 desse Estatuto estabelece
que constitui crime “propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e
a disseminação de bebidas alcoólicas, nos grupos tribais ou entre
índios não integrados”.
Em relação à criminalização, o Estatuto
do Índio diz que a pena deve ser atenuada, e “se possível, em regime
especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de
assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado” (Art.
56).
A tutela em nada tem a ver com a
não-responsabilização do indivíduo por um crime que praticou. Tem a ver
com um julgamento diferenciado caso a questão se relacione à sua prática
cultural e à necessidade de um intérprete em seu interrogatório, caso o
indígena não tenha completo domínio da língua portuguesa.
Em relação aos delitos, a lei para os
indígenas é a mesma que a nossa. Índios podem ser e são presos quando
roubam, quando praticam atos de violência, cometem assassinatos e por
todos os motivos que os não-indígenas são presos. São presos também
injustamente, para serem calados e oprimidos, para não serem cumpridos
seus direitos como no caso do Cacique Babau, que luta pelo seu
território e sofre continuamente perseguição das autoridades (saiba mais).
Voltar à lista de mentirasMentira nº 7: Tem muita terra para pouco índio
Em 1978, o Estatuto do Índio ordenou ao
Estado brasileiro a demarcação de todas as terras indígenas até dezembro
de 1978. Depois de dez anos, a Constituição Brasileira reconheceu aos
índios os “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos
os seus bens” (Art. 231), e estabeleceu o prazo de cinco anos para a
demarcação de todas as Terras Indígenas.
Quando a Constituição traz o termo
“direitos originários”, ela revela que este direito vem desde sempre,
antecedendo à própria Constituição. As demarcações são apenas
reconhecimento desse direito pré-existente. A noção de território não
constitui apenas uma relação de ocupação ou exploração, mas o fundamento
da existência do povo, pois somente em seu território é possível a
prática plena de sua cultura.
No entanto, até hoje o Estado se recusa a
cumprir sua obrigação e a cada dia crescem mais os interesses
econômicos sobre estas terras tradicionais. Não bastasse isso, muitas
Terras Indígenas são cada vez mais diretamente ou indiretamente afetadas
por grandes empreendimentos, monoculturas com uso abusivo de
agrotóxicos, mineradoras etc.
Enquanto os agentes destes grandes
poderes econômicos tentam barrar todos os processos de demarcações,
também dizem que é preciso modificar o procedimento de demarcação. O Decreto 1.775/1996
detalha todo o procedimento, havendo um grupo técnico especializado,
coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos
complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica,
cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à
delimitação. Após passar por autorização da Funai, é aberto um prazo
para contestações e somente depois é feita a demarcação.
Os ocupantes não-indígenas são
indenizados tanto pelas benfeitorias quanto pelos títulos de propriedade
de boa fé. Além disso, os ocupantes não-índios que atendem ao perfil da
reforma agrária são reassentados, a cargo do Incra.
As Terras Indígenas são inalienáveis e
indisponíveis, ou seja, os indígenas não podem efetuar nenhum negócio
jurídico que acarrete a transferência da titularidade de direitos sobre
estas terras, e nem mesmo permitir o beneficiamento de não-indígenas com
a exploração dos recursos naturais, pois o usufruto é exclusivos dos
indígenas.
O discurso anti-indígena tem como
principal argumento que as Terras Indígenas ocupam 13% do território
nacional. Mas os brasileiros não se dão conta da imensa área que os
latifúndios ocupam. O Brasil tem uma área de mais de 851 milhões de
hectares. Destes, mais de 318 milhões são ocupados por grandes
propriedades, totalizando 37% do território nacional.
A tabela abaixo mostra a quantidade de
propriedades, a soma da área que estas propriedades ocupam e a
porcentagem que esta área representa sobre o território nacional. Para
compreender melhor, consideramos que “minifúndio” é o imóvel de área
inferior a um módulo fiscal (Decreto nº 84.685/1980), “pequena
propriedade” é o imóvel rural com área entre 1 e 4 módulos fiscais (Lei
nº 8.629/1993) e “média propriedade” é o imóvel rural com área superior a
4 módulos fiscais e até 15 módulos fiscais (Lei nº 8.629/1993).
Não há definição legal para “grande
propriedade”, a qual, no entanto, passou a ser tida na prática das
políticas agrárias como o imóvel rural com área superior a 15 módulos
fiscais.
Módulo fiscal é uma unidade de medida
corresponde à área mínima necessária a uma propriedade rural para que
sua exploração seja economicamente viável (Lei nº 6.746/1979). A
depender do município, um módulo fiscal varia de 5 a 110 hectares.
Classificação | Número de propriedades | Área (ha) | Peso sobre área total |
Minifúndio e pequena propriedade | 4.656.377 | 135.474.462 | 16% |
Média propriedade | 380.584 | 113.879.540 | 13% |
Grande propriedade | 130.515 | 318.904.739 | 37% |
Terra Indígena | 505 | 106.739.926 | 13% |
Outros (cidades, Unidades de Conservação, etc.) | - – – | 176.578.038 | 21% |
Total – Brasil | - – – | 851.576.705 | 100,00% |
Fonte:
Cadastro do Incra – Classificação segundo dados declarados pelo
proprietário – e de acordo com a Lei Agrária/93 e IBGE, Censo 2010
Proponho agora um exercício de
imaginação. Consideremos que estes 130 mil proprietários vivam em suas
grandes terras com suas famílias, e imaginemos que cada lar tenha em
média 3,3 moradores, a mesma média dos lares brasileiros de acordo com o
Censo Demográfico 2010.
Vamos desconsiderar que, ainda segundo o
Incra, 69 mil das grandes propriedades, que equivalem a mais de 228
milhões hectares (40% da área das grandes propriedades) são
improdutivas. A maior parte destas pessoas possuem outras fontes de
renda, não produzem seus alimentos e não possuem laços ancestrais com a
terra. Muitas vezes os proprietários não são pessoas, e sim empresas.
Mas, por hora, deixemos estas questões de lado e nos voltemos aos
números, tratando igualmente a área indígena e a de grandes
proprietários.
Os indígenas, por sua vez, ocupam uma área de 106 milhões de hectares, sendo mais de 567 mil pessoas, conforme a tabela abaixo:
Classificação | Área (ha) | População | Área disponível por pessoa (ha) |
Grande Propriedade | 318.904.739 | 430.699 (estimativa) | 740 |
Terra Indígena | 106.739.926 | 567.583 | 20 |
Ou seja, os indígenas estão em um
território quase 3 vezes menor que o território das grandes
propriedades, apesar de ser quase 4 vezes mais populoso. E repare que
não estão sendo contados aqui os indígenas que vivem nas cidades,
somente os que vivem em Terras Indígenas. Seria preciso multiplicar em
37 vezes o número de proprietários no latifúndio para ele se equivaler à
área por pessoa em Terra Indígena. Portanto, nota-se: temos no Brasil
muita terra para poucos proprietários.
A
maior parte das terras indígenas está na Amazônia Legal, onde vive
cerca de 55% da população indígena no Brasil. Nas demais regiões do
país, principalmente nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, além do estado
do Mato Grosso do Sul, os povos indígenas conseguiram manter a posse em
áreas geralmente diminutas e esparsas, espremidos entre cidades e
fazendas, sem as condições mínimas necessárias para manter seu modo de
vida. É justamente nessas regiões que se verifica atualmente a maior
ocorrência de conflitos fundiários e disputas pela terra.
O que está em jogo não é aquele pé de
fruta que o avô plantou e onde ele amarra sua rede. Não importa que ali
estejam enterrados os seus antepassados, que ali seja a morada de seus
espíritos e do mundo sagrado. O “desenvolvimento” vem como um trator
atropelando tudo com suas hidrelétricas, mineradoras, gados, sojas e
milhos transgênicos. Os índios amam o seu território. E muitos morrem
porque os não-índios amam o dinheiro.
Voltar à lista de mentirasMentira nº 8: Os índios são preguiçosos e não gostam de trabalhar
Cá entre nós, poucas pessoas
verdadeiramente gostam muito de trabalhar. A maioria trabalha porque
precisa do dinheiro para pagar as contas, para comprar comida, para
comprar o celular e para comprar sempre e cada vez mais tudo que possa
surgir. Essa é a lógica das sociedades capitalistas: ter cada vez mais,
acumular e nunca estar satisfeito com o que tem.
A lógica indígena, tradicionalmente, não
se interessa em acumular, e sim em desfrutar. Portanto, se antes do sol
chegar ao alto do céu, o homem já pescou peixe para a família toda se
alimentar naquele dia, ele pode voltar para casa e descansar, pois sua
obrigação já foi cumprida.
Mas espera aí… caçar, pescar, plantar,
colher, manejar, construir sua casa, fazer seu barco e fazer tudo mais
que uma vida auto-subsistente necessita não parece nada fácil. Imagine
então que para realizar cada uma destas tarefas é preciso muitas outras.
Para fazer o barco, por exemplo, é preciso entrar no mato, encontrar
uma árvore de uma espécie específica que esteja num bom tamanho e
formato, derrubar a árvore, tirar da floresta, cortar e moldar a
madeira, queimar de um modo específico com uma lenha específica, moldar
novamente como o avô ensinou, queimar de novo, e pronto, finalmente ele
tem o barco para pescar, resumidamente. Quem se habilita?
Durante séculos os indígenas estiveram
domesticando diversas espécies de plantas que hoje consumimos, como o
milho, um dos grãos mais produzidos no mundo, e a mandioca, que os
brasileiros tanto gostam. Estas plantas e tantas outras, como feijões,
abóboras, carás e tomates, não eram encontradas na natureza como hoje as
conhecemos. São o resultado de muito trabalho indígena.
Superando esse preconceito, vamos
considerar que os indígenas também têm o direito de querer comprar
coisas que compramos, e, portanto, precisam de dinheiro. Algumas etnias
estão buscando meios de vida que integrem sua cultura a essa nova
necessidade.
É o caso do povo Paumari, que vive no
sudoeste do Amazonas e está sendo pioneiro no manejo de pirarucu. Há 5
anos eles fazem o manejo de 23 lagos, e no final de setembro de 2014
realizaram a pesca de 3.523 kg de pirarucu legalizados pelo Ibama. A
iniciativa é apoiada pelo projeto Raízes do Purus, realizado pela OPAN –
Operação Amazônia Nativa com o patrocínio da Petrobras (saiba mais).
Outro exemplo de geração de renda aliado
à sustentabilidade e à cultura vem da etnia Kisêdjê, que habita a Terra
Indígena Wawi, anexa ao Parque Indígena do Xingu. Desde 2011 a
comunidade participa de um projeto para produção e comercialização de
óleo de pequi. Em 2013 foram produzidos 170 litros do óleo na mini usina
contruída na aldeia Ngohwêrê. O projeto conta com o apoio técnico do
ISA – Instituto Socioambiental e financeiro e organizacional do
Instituto Bacuri e do Grupo Rezek (saiba mais).
Voltar à lista de mentirasMentira nº 9: Nossa sociedade é mais avançada, não temos nada para aprender com os índios
Todo mundo sabe que a cultura brasileira
tem influência indígena. Com eles aprendemos diversas palavras, o
respeito à natureza e o hábito de tomar banho todos os dias, certo? No
entanto, para cada elogio existe um contraponto: “índio que fala
português não é mais índio”, “antes índio era inocente, agora índio só
pensa em dinheiro” e a pior frase de todas: “índio fede”.
Essa mentira é muito comum: “índio
fede”. Não, o que fede é o preconceito. Índio tem cheiro de óleo de
tucum, de urucum e jenipapo, tem cheiro de fogo feito em casa, de peixe
assado, de suor de quem trabalha, de banho de rio, de sabonete e de
perfume comprado em shopping.
Enchemos o peito para dizer que o Brasil
é um país lindo, rico em minérios, com uma biodiversidade
impressionante e com muita fartura de água. Mas seguimos exaurindo os
nossos recursos naturais perseguindo um desejo de crescimento que parece
nunca ter fim, como se os recursos naturais fossem infinitos. Mas
saibam, recursos naturais chegam ao fim.
Estamos sacrificando nossa diversidade
biológica e cultural para enriquecer ainda mais quem já é rico. E os
índios, que são o símbolo maior de uma vida sustentável, que são os
grandes conhecedores da biodiversidade brasileira, tão pouco conhecida
pelos cientistas, estão sendo desprezados.
Enquanto se desmata incessantemente a
Amazônia e o Cerrado, desaparecem espécies de plantas que poderiam ser
utilizadas para tratar inúmeras doenças, conhecidas ou não. Enquanto se
pratica o genocídio e se mantém os indígenas como reféns do “progresso”,
infinitas possibilidades de conhecimento vão desaparecendo e os
brasileiros não se dão conta.
Mas fora do Brasil, há quem esteja bem
atento às nossas riquezas. Em 2013, quatro coreanos foram presos em
Canarana (MT) por biopirataria no Parque Indígena do Xingu. Eles fizeram
um acordo com os Kamaiurá, do Alto Xingu, e pagaram para obter 10
quilos de raízes e plantas usadas pelos índios para fins cosméticos. Os
coreanos viviam nos Estados Unidos e um deles trabalhava para uma
empresa de cosméticos. O acesso aos recursos genéticos e conhecimentos
tradicionais, sua proteção e a repartição de benefícios associados é
regido pela Medida Provisória nº 2186/16, de 23 de agosto 2001 (saiba mais).
E não se trata apenas de conhecimentos
da natureza, mas até mesmo de uma nova estrutura econômica e social, de
um novo jeito de fazer política, de tomar decisões, de olhar para nós
mesmos, para nossos semelhantes e para aqueles que são diferentes.
Ninguém quer ouvir as contribuições que o pensamento indígena pode
trazer.
O racismo é uma voz que sussurra ao
ouvido dizendo que os índios são mais “atrasados” que a gente. Como se o
“desenvolvimento” fosse uma linha única para toda a humanidade, como se
nossa sociedade fosse um exemplo a ser seguido. Já que nós gostamos
tanto de olhar para nosso umbigo, vejamos também o que o nosso
“desenvolvimento” tem gerado: produção de lixo, contaminação e
esgotamento de água, desigualdade social, violência e por aí vai…
Voltar à lista de mentirasMentira nº 10: Os índios atrasam o desenvolvimento do País
Mesmo que no mundo todo cada vez mais
aumente a preocupação ambiental, o Brasil continua com a mesma ideologia
que balança no centro de nossa bandeira, nossa palavra de ordem é o
progresso.
Um progresso desesperado, que não pode
dar o tempo para fazer o estudo de impacto ambiental, que não pode
analisar as possibilidades de redução de danos, um progresso que chega
custe o que custar, e que agora, mais do que nunca, quer explorar os
recursos das Terras Indígenas.
O principal aspecto a ser considerado é
que os grandes donos do poder econômico (os setores bancário,
armamentista, minerário, farmacêutico, da construção civil, do
agronegócio etc.) possuem interesse em divulgar uma imagem negativa dos
indígenas. As grandes corporações tomaram conta da arena política e
querem a qualquer custo convencer a nação de que “é preciso crescer e os
índios atrasam o desenvolvimento do País”. Na lógica deles é mais
importante plantar soja para a China do que preservar as nascentes
brasileiras.
O cenário que se apresenta hoje aos
povos indígenas é pior do que o do índio que avistou Cabral em 1500. A
partir de 2015, teremos o Congresso mais conservador desde 1964, e
especialmente, mais anti-indígena. Foram eleitos 273 deputados federais e
senadores considerados ruralistas, o que representa um aumento de 33%
em relação à legislatura atual, que conta com 205 ruralistas. Várias
investidas avarentas da bancada ruralista ganharão força, como a
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, a PEC 237, o Projeto
de Lei (PL) 1.610, o PL 227/2012 e a Portaria 303, de iniciativa da
Advocacia Geral da União (AGU).
Estas iniciativas tratam de temas como
demarcação de Terras Indígenas, posse indireta de Terras Indígenas a
produtores rurais na forma de concessão e exploração e aproveitamento de
recursos naturais em Terras Indígenas (minérios, recursos hídricos,
florestais, etc.), independe de consulta às comunidades afetadas. Além
de irem contra a legislação vigente e preceitos universais, elas são
cruelmente orquestradas para que se perpetue no país o ódio aos
indígenas (saiba mais).
Mas se engana quem pensa que os indígenas assistem a isso calados. Os últimos anos foram anos de luta. Em maio de 2014, povos indígenas de todo o país reuniram-se em Brasília para a Mobilização Nacional Indígena, com atos e manifestações contra os ataques aos seus direitos garantidos pela Constituição Federal (saiba mais). E seguem lutando diariamente.
Mas se engana quem pensa que os indígenas assistem a isso calados. Os últimos anos foram anos de luta. Em maio de 2014, povos indígenas de todo o país reuniram-se em Brasília para a Mobilização Nacional Indígena, com atos e manifestações contra os ataques aos seus direitos garantidos pela Constituição Federal (saiba mais). E seguem lutando diariamente.
Os indígenas têm o direito de viverem em
seus territórios. Já temos no país muitas terras para a criação de gado
e o plantio de monoculturas, concentrada nas mãos de poucas pessoas.
Desenvolvimento é bom, mas de qualquer jeito, não. Não podemos admitir
um desenvolvimento que desrespeite leis, culturas e provoque mais
desigualdade social.
Os indígenas devem poder escolher se
desejam se beneficiar do desenvolvimento e de que forma, ou se preferem
nem se envolver. Mas eles não podem continuar sendo desrespeitados em
nome do interesse econômico.
Não precisamos de um crescimento
desrespeitoso, realizado sem estudos de impacto ambiental, social e
cultural. Tampouco necessitamos da malícia de políticos e da mídia.
Precisamos sim tirar a venda dos olhos e enxergar o índio realmente,
pois são mentiras e preconceitos que atrasam a evolução humana.
O desenvolvimento deve ser bom para
todos. A paz entre os povos, já prevista em nossa Constituição Federal,
deve ir além da diplomacia e incluir os que vivem em solo pátrio.
Tenhamos amor!
Voltar à lista de mentiras*Lilian Brandt é antropóloga e colaboradora da AXA.
INÍCIO
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