Por Celso Lungaretti do blog Náufrago da Utopia
*acessar link para ver o vídeo: http://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2015/10/vida-inteligente-no-cinema-ela-existia.html
quarta-feira, 7 de outubro de 2015
VIDA INTELIGENTE NO CINEMA? ELA EXISTIA DURANTE A NOUVELLE VAGUE
Trazendo para o blogue alguns trabalhos marcantes de minha trajetória jornalística, recapitulo Nouvelle vague: 30 anos qualquer noite,
que escrevi em junho/1989, quando trabalhava na Agência
Estado, para venda avulsa aos veículos clientes, tendo
sido publicada por jornais e revistas de todo o Brasil.
Os entrevistados, Jairo e Carlão, já faleceram.
Jean Seberg e Jean-Paul Belmondo: Acossado |
Não houve estouros de bilheteria, mas o impacto entre a crítica, os
cinéfilos e o pessoal do meio cinematográfico foi total, em 1959 e nos
anos seguintes, daí o fenômeno receber da mídia uma designação charmosa,
tomada da empréstimo de um artigo sobre a juventude francesa que L'Express publicara ano e meio atrás: nouvelle vague.
Mas, quando nasceu e quem realmente fazia parte da nova onda?
As interpretações são múltiplas, já que nunca houve um movimento
propriamente dito, mas sim um estilo, um certo jeito de fazer cinema,
com pontos de contato e de diferenciação entre os vários cineastas.
Do núcleo de críticos dos Cahiers faziam parte também Eric Rohmer e Jacques Rivette.
Truffaut e seu pungente Os Incompreendidos |
Então, há quem situe o início da nouvelle vague em 1956, quando Vadim e
Brigitte Bardot sacudiram décadas de puritanismo nas telas com o
deslumbrante ...E Deus criou a mulher (Et Dieu Crea la Femme).
E por que não 1958, ano do escândalo mundial de Os Amantes (Les Amants)?
Foi neste filme que Louis Malle teve a ousadia de sugerir -- nada é
realmente visto -- a prática de felação, causando comoção talvez maior
do que a provocada em 1972 pela sodomia soft de O Último Tango em Paris.
Mas 1959 tem a maioria das preferências, não só por ser o ano do début do trio central da nouvelle vague, mas também porque houve duas participações importantes dessa estética emergente no Festival de Cannes, em maio: Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima Mon Amour), de Resnais, e Os Incompreendidos, que valeu Truffaut o prêmio de direção.
Nas Garras do Vício: um rebelde com causa. |
E o efeito se completou com a estréia de Acossado,
colocando em primeiro plano o talento ousado e polêmico de Godard e
entronizando no cinema moderno a figura do anti-herói, que seria
presença dominante na década de desencanto e contestação subsequente (os
anos 60). Até o western italiano beberia nessa fonte.
POBRES, MAS CRIATIVOS
Além do quem e quando, outra pergunta difícil, no caso da nouvelle vague, é o que.
Para não enveredarmos por discussões tortuosas, fiquemos com os poucos pontos de consenso.
Primeiro, trata-se de um cinema pobre, feito com equipamento leve e
cenários reais. Os filmes iniciais foram financiados por heranças,
empréstimos e até dotes de casamento, com a precariedade de recursos
acabando por ser revertida em riqueza criativa. Assim, os diretores
desenvolveram novos truques de edição, como os cortes-saltos.
A cena final de Acossado, filmada na rua. |
Também foi resgatada do cinema silencioso a Íris, recurso através do qual se isola um detalhe da imagem numa tela completamente negra.
Dois avanços tecnológicos foram importantes para respaldar a nova
proposta estética: a Cameflex, câmera leve que proporcionava a mesma
rigides de imagem da câmera pesada; e a Tri-X, película bem mais rápida
que as anteriores, facilitando as filmagens à noite, com luz natural.
A Cameflex permitiu efetuar tomadas perfeitas de quaisquer ângulos e até
com a câmera em movimento, dando origem à célebre frase do Godard: "uma
idéia na cabeça e uma câmera na mão".
Um travelling marcante de Acossado, p. ex., foi feito com uma Cameflex sobre uma cadeira de rodas, improvisação impossível com equipamento pesado.
Quanto à Tri-X, a ela se deve o estranho efeito de a naturalidade das sequências noturnas de Alphaville, com sua iluminação meticulosa, parecer extremamente artificial.
Outra característica fundamental da nouvelle vague foi contrapor ao star-system dos EUA a concentração de todas as funções criativas nas mãos do diretor. Assim, além de dominar a encenação, ele passa a escrever o roteiro, fazer a montagem, interferir em cada detalhe de fotografia, trilha musical, etc., tornando-se o autor indiscutível da obra.
Nos próprios créditos esta marca se evidenciava, já que passou a ser usado o registro de "um filme de...", ao invés de "dirigido por...". Esta postura foi antecipada teoricamente por Alexandre Astruc, ao recomendar que o cineasta utilizasse sua câmera da mesma forma que o escritor usa sua caneta (a fórmula da camera-stylo).
O espectador tinha a impressão de que o principal acontecia atrás das câmeras e não à sua frente. Desde o Cidadão Kane, de Orson Welles, ninguém deixava tão à mostra seu ego exuberante.
Ao longo da década de 60, cada cineasta da nouvelle vague foi
desenvolvendo seu estilo individual e se distanciando cada vez mais da
bagagem comum de um grupo que, aliás, desde o início era heterogêneo.
Alain Resnais em ação |
O cinema não acabou em 1968 e, exatamente nas pegadas de Godard,
Chabrol, Truffaut, Resnais e Malle (principalmente) viriam Herzog,
Wenders, Fassbinder, Alain Tanner, Claude Goretta, Harry Kumel, Nagisa
Oshima, os nossos Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, o filipino Lino
Broka, os novos cinemas da Geórgia e de Taiwan...
A imaginação não está no poder, seja na política ou nas telas, mas os
únicos avanços reais da sétima arte têm se dado nas trilhas do cinema do autor.
Quanto ao velho burocrata de direção hollywoodiano, é um erro imaginar
que ele tenha sido reabilitado: o verdadeiro artífice do cinema de
massas, hoje, é o técnico de efeitos especiais...
CARLOS REICHENBACH: PERSONAGENS À DERIVA
"O pessoal da nouvelle vague teve
uma trajetória que começou no cineclubismo, daí passou à crítica e,
afinal, chegou à prática. Foi o cinema feito por quem pensava o cinema. E
nisto eu me identifico com ele."
A afirmação é de Carlos Reichenbach [falecido em 2012], um dos melhores e
mais prolíficos cineastas brasileiros nas últimas décadas.
O Carlão dirigiu 22 filmes em 4 décadas |
Os grandes marcos, no seu entender, são mesmo os três filmes de estréia do pessoal dos Cahiers: Nas Garras do Vício (que ele viu "umas 20 vezes" e considera o mais importante, por introduzir "um rebelde com causa"), Os Incompreendios e Acossado.
Assim ele analisa o trio central de cineastas:
"Godard era eminentemente urbano, político por excelência. Truffaut, o cineasta da intimidade, o mais afetivo, o mais amoroso, talvez porque a vivência dele tenha sido a mais marginal de todas. E Chabrol dissecou o universo da classe média baixa, posição com a qual hoje eu me identifico, acho que os cineastas devam buscar os personagens comuns, não os de exceção".
Reichenbach vê em Louis Malle um diretor que, sem fazer parte do núcleo central da nouvelle vague, teve algumas características semelhantes em termos estilísticos, principalmente em Ascensor Para o Cadafalso e Os Amantes.
Já Alain Resnais, a seu ver, "é nouveau roman, não nouvelle vague,
pois filmava em estúdio, com muito dinheiro, usando escritores como
roteiristas para desenvolver uma dramaturgia literária, clássica".
"O Desprezo é insuperável" |
Embora hoje aprecie mais Chabrol e considere que o único a se manter fiel às característica da nouvelle vague até o fim tenha sido Truffaut, o Carlão reconhece ter sofrido maior influência de Godard:
"Foi com ele que aprendi a fazer um filme comercial subvertendo-o, abrindo para discussões mais profundas. Neste sentido, O Desprezo é insuperável, vi umas 30 vezes. Inclusive, formalmente, tem algumas sequências de grande arte".
JAIRO FERREIRA: FIM DO ACADEMICISMO
"Formalmente, a nouvelle vague tomou as inovações do pioneiro George Meliés e do pessoal da avant-garde,
como Jean Epstein, Lous Delluc, René Clair e Louis Buñuel. Eles usavam
equipamento leve, filmavam em cenários reais e usavam todo tipo de
experiências", avalia o jornalista, crítico e cineasta Jairo Ferreira
[falecido em 2003], autor do livro Cinema de Invenção e dos filmes O Vampiro da Cinemateca e O Ínsigne Ficante.
Jairo foi um dos principais nomes do cinema marginal |
"Ela sacudiu o bolor do cinema europeu. Desacademizou a linguagem cinematográfica, tornando-a muito mais dinâmica, elástica e ágil.Foi um cinema de transgressão, que impõe a qualidade poética da imagem e os diálogos cortantes, sem ranço literário".
Já a geração seguinte, do cinema marginal ou udigrudi,
veio toda nas pegadas de Godard, no entender de Jairo Ferreira. Ele
cita Rogério Sganzerla, Júlio Bressante, Neville D'Almeida, Luís
Rosemberg Filho, Eliseu Visconti Cavaleiro, Andrea Tomacci, Francisco
Luís de Almeida Salles, Carlos Reichenbach e Ivan Cardoso como os
herdeiros brasileiros da nouvelle vague, só deixando de fora Ozualdo Candeia ("remonta mais a Buñuel e Pasolini") e o primitivo José Mojica Marins.
"Às vezes a coisa descambava até para a imitação, como o suicídio do Bandido da Luz Vermelha, evidentemente copiado do Pierrot Le Fou, do Godard."
Para Jairo, 1968 foi o último grande ano de inovação no cinema mundial:
Para Jairo, 1968 foi o último grande ano de inovação no cinema mundial:
"Quando Godard fechou o Festival de Cannes, marcou a reviravolta da nouvelle vague. Depois, aqueles cineastas nunca mais foram os mesmos.
Só o Godard e o Jacques Rivette se mantiveram mais ou menos experimentais. O Truffaut se perdeu, passando a fazer os mesmos filmes que ele combatia quando era crítico.
E a nouvelle vague foi o último grande movimento. Não será a hora de um novo?".
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