Uma coisa com qualidades transcendentais: O dinheiro como relação social no capitalismo
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Uma introdução ao conceito de dinheiro de Marx
O que é
dinheiro? Essa questão dificilmente tem qualquer significação no
cotidiano dos mercados. O que importa é que ele exista em quantidade
suficiente. As teorias econômicas burguesas reduzem o dinheiro às suas
funções econômicas. A onipresença do dinheiro é crucial e pressupõe
certas condições. Ademais, a crítica dos mercados financeiros fica
incompleta quando se suprime as relações sociais fundamentais que se
encontram reificadas no dinheiro.
“O dinheiro
faz o mundo girar.” Essa afirmação é confirmada em todos os níveis da
vida cotidiana na sociedade capitalista: se a questão em vista for
comprar pães para o café-da-manhã, investir em grandes negócios, aplicar
em fundos de pensão, o problema relevante vem a ser sempre se há
dinheiro suficiente, senão como obter mais dele. O que é surpreendente,
porém, é que dificilmente o dinheiro tem qualquer papel na teoria
neoclássica, a qual detém plena dominância nas universidades e entre os
assessores econômicos governamentais.
Para a
escola neoclássica, que provê os fundamentos teóricos das políticas
neoliberais, o dinheiro é simplesmente um meio de circulação, um recurso
prático que simplifica as trocas e é usado como unidade de medida. A
escola neoclássica nega ao dinheiro qualquer relevância intrínseca:
somente as quantidades “reais”, as quantidades de bens e serviços que
são produzidos e trocados, investidos e consumidos, são decisivos para
ela. A esfera monetária é vista pela escola neoclássica como um véu que
encobre a esfera “real” dos produtos físicos. Este véu pode produzir
dificuldades de curto prazo como resultado de má administração (por
exemplo, quando o banco central emite dinheiro demais, inflacionando a
economia), mas no longo prazo, as relações “reais” subjacentes se
acertam por si mesmas. Quando se permite que os mercados operem sem
restrições – assim reza a lição da escola neoclássica dominante – um
“ótimo” social (máximo produto ao mínimo preço) deve surgir.
Para o keynesianismo, ao qual atualmente se atribui um papel menor na teoria
econômica
acadêmica, o dinheiro é muito mais importante do que para a escola
neoclássica. Ele não é reduzido à sua função de meio de circulação; ao
invés, destaca-se a sua capacidade de funcionar como um meio de
preservação do valor para, assim, ligá-lo as condições fundamentais de
insegurança na economia de mercado: o dinheiro funciona como um porto
seguro principalmente contra um futuro incerto. Se a insegurança é
crescente, de acordo com o argumento keynesiano, mais dinheiro é mantido
“líquido”, isto é, famílias e empresas gastam menos e menos estão
inclinadas a fazerem investimentos de longo prazo; preferem não perder
acesso ao dinheiro no curto prazo. Isto leva ao crescimento da taxa de
juros e à redução do investimento, o que produz queda da renda e
crescimento do desemprego. O keynesianismo não reconhece a existência de
um processo automático capaz de remediar a crise, daí que defenda a
necessidade da intervenção estatal.
A apreensão
do dinheiro por parte das correntes keynesianas é mais diferenciada do
que aquela da escola neoclássica; comum a ambas, porém, é a ampla
tendência para reduzir o dinheiro a uma simples função essencial. Para
ambas essas teorias, o dinheiro é acima de tudo uma ajuda ao
funcionamento econômico – pouco importante segundo a escola neoclássica,
mas bem importante conforme o keynesianismo. A questão de saber o que é
o dinheiro, e como ele está ligado a um modo específico de socialização
inerente à sociedade produtora de mercadoria, nunca é mesmo posta.
Dinheiro – meramente um instrumento privilegiado?
Essa
questão, porém, foi central no exame que Marx fez do dinheiro. Várias
correntes nos movimentos trabalhistas ingleses e franceses do século XIX
lutaram para reformar o capitalismo mudando o sistema monetário: assim,
para eles, a produção privada de mercadoria seria mantida, mas o
dinheiro seria substituído por cupons que denotavam horas trabalhadas ou
por certificados que davam direitos a bens (a semelhança das entradas
de teatro). Em contraste com esses esforços reformistas, Marx tentou
mostrar que o modo de produção burguês necessita de um meio de troca
particular, o dinheiro, o qual por sua própria natureza não é uma coisa
inócua como uma entrada de teatro.
Os
produtores privados e individuais de mercadoria estão ligados entre si
por meio da divisão societária de trabalho, mas os seus produtos
adquirem o caráter social somente retrospectivamente, a saber, quando
eles realizam os seus valores no mercado. Numa sociedade baseada na
troca, o caráter social dos bens
produzidos
não consiste somente em sua capacidade de satisfazer as necessidades das
pessoas; os produtos devem manter uns com os outros uma relação
quantitativa de troca, devem possuir “valor” em adição ao seu valor de
uso.
Na sociedade
burguesa, a riqueza se torna uma quantidade abstrata: não consiste de
uma multiplicidade de valores de uso e de amenidades, mas, ao invés,
consiste de “valor”. Mas o “valor” não pode ser apreendido por meio da
consideração de uma única mercadoria, pois ele existe somente na relação
entre as mercadorias. Ademais, o “valor” tem apenas uma expressão
limitada e local por meio da relação particular de uma mercadoria com
outra. O valor da mercadoria apenas pode obter uma expressão universal e
socialmente válida quando aparece incorporado numa forma independente
de “valor” – isto é, quando ele se representa numa coisa que, na relação
com todas as outras mercadorias, não figura simplesmente como mais uma
mercadoria, mas como uma expressão de “valor” por excelência. [1]
Somente nessa situação pode uma simples mercadoria afirmar o seu
caráter de “valor” independentemente do seu caráter concreto como valor
de uso. A riqueza abstrata necessita de uma forma material particular de
existência – e o dinheiro é exatamente essa forma. Numa sociedade
baseada na troca de mercadorias, o dinheiro não é meramente um
instrumento mais ou menos importante; é necessariamente um meio de
socialização econômica.
Os
produtores individuais de mercadoria não estabelecem as suas relações
sociais uns com os outros enquanto pessoas. Precisamente, porque os
indivíduos isolados desaparecem atrás de seus produtos, a sua coesão
social – num sentido bem literal – se torna reificada (em alemão: verdinglicht),
ou seja, é aprisionada numa coisa, ou seja, no dinheiro. O dinheiro não
é simplesmente – como a escola neoclássica mantém – uma simplificação
do processo de troca, a qual em princípio pode ser dispensada. Ao invés,
o dinheiro é um meio por meio do qual os produtores individuais e isolados de mercadorias se relacionam e, assim, se conservam uns em relação aos outros.
Enquanto dinheiro, a coisa adquire propriedade social e poder social. Marx
apresenta
essa qualidade “transcendental” da coisa como fetichismo. E esse
fetichismo não é meramente uma ilusão, uma espécie de “falsa
consciência”. Em verdade, na sociedade burguesa, o dinheiro possui o
maior poder. Porém, ele só possui esse poder devido às relações sociais
específicas que lhe estão subjacentes: os possuidores atomizados de
mercadoria estabelecem as suas relações sociais uns com os outros por
meio dessa “coisa”, do dinheiro. O dinheiro tem poder porque todos os
atores sociais se relacionam com o dinheiro como dinheiro, isto é, como
uma representação independente de “valor”. Assim que os indivíduos
começam a agir como possuidores de mercadorias, que trocam produtos,
eles não têm outra possibilidade senão manter contato com o dinheiro.
Posto isso, note-se que o fetichismo contém de fato um aspecto ilusório,
pois o dinheiro parece ter um poder social que lhe é inerente. Mas, de
fato, esse poder é resultado de um processo social automático que escapa
à cognição usual das pessoas no dia-a-dia. O processo se consuma em seu
próprio resultado.
A produção
de mercadoria é impossível sem a correlação entre as mercadorias e o
dinheiro. Por essa razão, há um importante limite para todo projeto
utópico; se alguém deseja a abolição do dinheiro, deve almejar também a
abolição do conjunto das relações societárias que o requerem. Não se
pode ter uma sem a outra.
Do dinheiro ao capital
Se a
totalidade do processo social de reprodução é mediada pela mercadoria e
pelo dinheiro, isto é, se a produção de mercadoria não está restrita a
existir em um nicho no interior de outro modo de produção (como foi o
caso, inicialmente, no período feudal da Europa Ocidental), então o
dinheiro adquire nova qualidade como capital. A incorporação autônoma de
“valor”, por meio da qual a socialização econômica da produção de
mercadoria é realizada, ela mesma se torna o fim principal da atividade
econômica. Precisamente porque o dinheiro é a encarnação da riqueza
abstrata, a qual não está sujeita a limites imanentes, ninguém nunca
terá “suficiente” dele a sua disposição.
O comércio e
a produção devem não apenas gerar dinheiro, mas sim, eles devem gerar
continuamente novas somas de dinheiro. A generalização da produção de
mercadorias é somente possível quando a própria produção é transformada
em produção capitalista, quando a multiplicação e o aumento da riqueza
abstrata se torna o fim direto da produção e todas as outras relações
sociais ficam subsumidas a esse fim. O “poder destrutivo do dinheiro”, o
qual foi objeto de muita crítica nos modos de produção pré-capitalistas
(por muitos autores da Grécia Antiga, por exemplo) está enraizada
precisamente nesse processo de capitalização da sociedade como resultado
da generalização da relação de dinheiro. As concepções de socialismo de
mercado que almejam abolir a produção capitalista, mantendo,
entretanto, o mercado, a produção mercantil e o dinheiro (por causa de
sua “eficiência” na produção e na inovação) enfrentam esse problema
fundamental: como impedir a recapitalizacão da sociedade sem inibir a
“eficiência” do mercado.
A produção capitalista e os mercados financeiros
Como a
coesão social numa sociedade de troca mercantil é estabelecida
primariamente pelo dinheiro, este tem o poder de corromper essa coesão: a
“possibilidade da crise” – como Marx já notara no terceiro capítulo de O capital –
surge com o dinheiro. Não apenas o dinheiro faz a mediação das trocas
no circuito mercadoria-dinheiro-mercadoria (alguém vende sua própria
mercadoria a fim de adquirir subsequentemente outra mercadoria), mas ele
permite a interrupção dessa mediação: uma venda sem o acompanhamento de
uma compra (isto é, o dinheiro obtido pela venda não é utilizado em
nova compra) produz uma ruptura na cadeia de reprodução. Assim que isso
acontece, as mercadorias produzidas não podem mais ser vendidas; a
produção torna-se limitada, entrando em estagnação. A consequência disso
é, de um lado, capital ocioso e, de outro, desemprego da força de
trabalho. Uma série de circunstâncias adicionais é necessária para que a
mera possibilidade de crise se desenvolva e se transforme numa crise
real.
No marxismo
tradicional, essas circunstâncias são observadas primariamente nas
próprias condições capitalistas de produção, por meio da “lei tendencial
da queda da taxa de lucro”. Em contraste, o dinheiro e o crédito tem um
papel secundário como “mero fenômeno de circulação”. Como resultado
dessa abordagem unilateral voltada para as condições da produção,
perde-se de vista o fato de que é impossível a produção de mercadoria
sem dinheiro; a produção capitalista não pode existir sem o crédito
(assim como sem as formas evoluídas tais como o dinheiro de crédito, a
ações, os títulos etc.). O caráter flexível da produção capitalista se
deve precisamente ao fato de que a acumulação não encontra limites nos
lucros realizados nos períodos prévios de produção, mas pode ser
expandido muito além por meio do crédito; ora, isto implica a
possibilidade da superprodução.
Porém, o
crédito é somente expandido (ou novas ações, dependendo da situação, são
emitidas) naqueles setores em que altos níveis de lucro futuros são
esperados. Nesse sentido, um forte elemento especulativo é inerente ao
sistema financeiro como um todo. Esse elemento especulativo é reforçado
adicionalmente por meio de instrumentos financeiros tais como as opções
(direitos de adquirir participações específicas a um preço
pré-determinado). Contudo, o elemento especulativo é inerente a todos os
aspectos da produção capitalista: um empreendedor nunca pode saber com
plena certeza se os seus produtos serão vendidos e a que preços, ou se
os investimentos que faz trarão o nível esperado de lucros no futuro.
Assim, o crédito e a especulação não são de modo algum condições
externas que vem atrapalhar uma produção capitalista que não vem a ser
inerentemente especulativa. Sem um setor financeiro especulativo, a
produção capitalista é impossível.
Não se trata
somente de observar que essa correlação deveria ser mais fortemente
levada em consideração no campo da teoria da crise do que o fora no
campo do marxismo tradicional. Trata-se, ademais, de tema importante
para a crítica da globalização contemporânea. É comum que a critica se
dirija contra um capitalismo “sem freios” cujo poder destrutivo parece
estar associado a um sistema financeiro especulativo. Ora, o fato de o
sistema financeiro estabelecer padrões de lucratividade e de eficácia de
custos para as empresas individuais, dizer sobre como elas devem obter
crédito e emitir ações, não é de modo algum um fenômeno recente.
Tradicionalmente, o sistema financeiro tem exercido essa “função de
controle”. O fato novo das últimas décadas é a emergência de um sistema
financeiro largamente internacionalizado, o qual passou crescentemente a
ditar os padrões internacionais de valorização do capital.
Se o aumento
da especulação é visto como a causa principal das doenças do
capitalismo, passa-se a recomendar mais regulação; e, assim, a relação
necessária entre o sistema financeiro e a produção capitalista é velada.
Desse modo – ao menos tendencialmente – passa-se a contrastar um
sistema capitalista “bom” com um “mau”, sendo este último um capitalismo
financeiro especulativo. Não está pré-determinado, de modo algum, a
quantidade e a qualidade da regulação necessária para controlar
“efetivamente” os fluxos de capital. Nesse sentido, as demandas dos
críticos da globalização por mais regulação não são necessariamente
pouco realistas ou impossíveis de serem introduzidas. Porém, pode-se
duvidar de que essa regulação venha a suprimir os piores aspectos do
capitalismo. Mesmo num capitalismo altamente regulado, a satisfação das
necessidades e dos desejos, a eliminação das desigualdades sociais, ou
mesmo uma boa vida, não são objetivos próprios da atividade econômica.
Esta visa – isto sim – a valorização, a acumulação de riqueza abstrata –
um fim para o qual os seres humanos e a natureza são apenas meios –
meios estes, aliás, que estão sendo constantemente administrados para
aquela finalidade seja atingida.
* Publicado originalmente em alemão em iz3w (Freiburg, jan-fev, 2002)
e posteriormente em inglês em MrZine (março, 2006).
Notase posteriormente em inglês em MrZine (março, 2006).
[1] Isto é mostrado na seção “Forma do valor ou o valor de troca” no primeiro capítulo de O capital.
[2] Em O capital, Marx mencionou que o mero produto é uma “coisa sensível”, mas que ele se torna, enquanto mercadoria, uma “coisa sensível suprassensível”.
Michael Heinrich está no Brasil para participar do IV Seminário Margem Esquerda: Marx e O capital, que integra a programação do projeto Marx: a criação destruidora. Nessa sexta-feira, dia 22/3, ele apresenta a conferência Os manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels, às 20h no Sesc Pinheiros.
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Michael Heinrich
é cientista político e matemático. Foi professor convidado de ciência
política na Universidade de Viena e na Universidade Livre de Berlim.
Atualmente é professor de economia na Universidade de Ciências Aplicadas
de Berlim. Editor da PROKLA (Jornal da ciência social crítica) e do
site Oekonomiekritik,
participa do projeto MEGA 2, um monumental esforço internacional visando
à publicação das obras completas de Marx e Engels. É autor, entre
outros, de Crítica da economia política: uma introdução, Como ler O capital de Marx e Uma introdução aos três volumes d’O capital de Marx.
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