sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Uma coisa com qualidades transcendentais: O dinheiro como relação social no capitalismo


Uma coisa com qualidades transcendentais: O dinheiro como relação social no capitalismo


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Uma introdução ao conceito de dinheiro de Marx

O que é dinheiro? Essa questão dificilmente tem qualquer significação no cotidiano dos mercados. O que importa é que ele exista em quantidade suficiente. As teorias econômicas burguesas reduzem o dinheiro às suas funções econômicas. A onipresença do dinheiro é crucial e pressupõe certas condições. Ademais, a crítica dos mercados financeiros fica incompleta quando se suprime as relações sociais fundamentais que se encontram reificadas no dinheiro.
“O dinheiro faz o mundo girar.” Essa afirmação é confirmada em todos os níveis da vida cotidiana na sociedade capitalista: se a questão em vista for comprar pães para o café-da-manhã, investir em grandes negócios, aplicar em fundos de pensão, o problema relevante vem a ser sempre se há dinheiro suficiente, senão como obter mais dele. O que é surpreendente, porém, é que dificilmente o dinheiro tem qualquer papel na teoria neoclássica, a qual detém plena dominância nas universidades e entre os assessores econômicos governamentais.
Para a escola neoclássica, que provê os fundamentos teóricos das políticas neoliberais, o dinheiro é simplesmente um meio de circulação, um recurso prático que simplifica as trocas e é usado como unidade de medida. A escola neoclássica nega ao dinheiro qualquer relevância intrínseca: somente as quantidades “reais”, as quantidades de bens e serviços que são produzidos e trocados, investidos e consumidos, são decisivos para ela. A esfera monetária é vista pela escola neoclássica como um véu que encobre a esfera “real” dos produtos físicos. Este véu pode produzir dificuldades de curto prazo como resultado de má administração (por exemplo, quando o banco central emite dinheiro demais, inflacionando a economia), mas no longo prazo, as relações “reais” subjacentes se acertam por si mesmas. Quando se permite que os mercados operem sem restrições – assim reza a lição da escola neoclássica dominante – um “ótimo” social (máximo produto ao mínimo preço) deve surgir.

 Para o keynesianismo, ao qual atualmente se atribui um papel menor na teoria
 econômica acadêmica, o dinheiro é muito mais importante do que para a escola neoclássica. Ele não é reduzido à sua função de meio de circulação; ao invés, destaca-se a sua capacidade de funcionar como um meio de preservação do valor para, assim, ligá-lo as condições fundamentais de insegurança na economia de mercado: o dinheiro funciona como um porto seguro principalmente contra um futuro incerto. Se a insegurança é crescente, de acordo com o argumento keynesiano, mais dinheiro é mantido “líquido”, isto é, famílias e empresas gastam menos e menos estão inclinadas a fazerem investimentos de longo prazo; preferem não perder acesso ao dinheiro no curto prazo. Isto leva ao crescimento da taxa de juros e à redução do investimento, o que produz queda da renda e crescimento do desemprego. O keynesianismo não reconhece a existência de um processo automático capaz de remediar a crise, daí que defenda a necessidade da intervenção estatal.
A apreensão do dinheiro por parte das correntes keynesianas é mais diferenciada do que aquela da escola neoclássica; comum a ambas, porém, é a ampla tendência para reduzir o dinheiro a uma simples função essencial. Para ambas essas teorias, o dinheiro é acima de tudo uma ajuda ao funcionamento econômico – pouco importante segundo a escola neoclássica, mas bem importante conforme o keynesianismo. A questão de saber o que é o dinheiro, e como ele está ligado a um modo específico de socialização inerente à sociedade produtora de mercadoria, nunca é mesmo posta.


Dinheiro – meramente um instrumento privilegiado?

Essa questão, porém, foi central no exame que Marx fez do dinheiro. Várias correntes nos movimentos trabalhistas ingleses e franceses do século XIX lutaram para reformar o capitalismo mudando o sistema monetário: assim, para eles, a produção privada de mercadoria seria mantida, mas o dinheiro seria substituído por cupons que denotavam horas trabalhadas ou por certificados que davam direitos a bens (a semelhança das entradas de teatro). Em contraste com esses esforços reformistas, Marx tentou mostrar que o modo de produção burguês necessita de um meio de troca particular, o dinheiro, o qual por sua própria natureza não é uma coisa inócua como uma entrada de teatro.
Os produtores privados e individuais de mercadoria estão ligados entre si por meio da divisão societária de trabalho, mas os seus produtos adquirem o caráter social somente retrospectivamente, a saber, quando eles realizam os seus valores no mercado. Numa sociedade baseada na troca, o caráter social dos bens
produzidos não consiste somente em sua capacidade de satisfazer as necessidades das pessoas; os produtos devem manter uns com os outros uma relação quantitativa de troca, devem possuir “valor” em adição ao seu valor de uso.
Na sociedade burguesa, a riqueza se torna uma quantidade abstrata: não consiste de uma multiplicidade de valores de uso e de amenidades, mas, ao invés, consiste de “valor”. Mas o “valor” não pode ser apreendido por meio da consideração de uma única mercadoria, pois ele existe somente na relação entre as mercadorias. Ademais, o “valor” tem apenas uma expressão limitada e local por meio da relação particular de uma mercadoria com outra. O valor da mercadoria apenas pode obter uma expressão universal e socialmente válida quando aparece incorporado numa forma independente de “valor” – isto é, quando ele se representa numa coisa que, na relação com todas as outras mercadorias, não figura simplesmente como mais uma mercadoria, mas como uma expressão de “valor” por excelência. [1] Somente nessa situação pode uma simples mercadoria afirmar o seu caráter de “valor” independentemente do seu caráter concreto como valor de uso. A riqueza abstrata necessita de uma forma material particular de existência – e o dinheiro é exatamente essa forma. Numa sociedade baseada na troca de mercadorias, o dinheiro não é meramente um instrumento mais ou menos importante; é necessariamente um meio de socialização econômica.
Os produtores individuais de mercadoria não estabelecem as suas relações sociais uns com os outros enquanto pessoas. Precisamente, porque os indivíduos isolados desaparecem atrás de seus produtos, a sua coesão social – num sentido bem literal – se torna reificada (em alemão: verdinglicht), ou seja, é aprisionada numa coisa, ou seja, no dinheiro. O dinheiro não é simplesmente – como a escola neoclássica mantém – uma simplificação do processo de troca, a qual em princípio pode ser dispensada. Ao invés, o dinheiro é um meio por meio do qual os produtores individuais e isolados de mercadorias se relacionam e, assim, se conservam uns em relação aos outros.
Enquanto dinheiro, a coisa adquire propriedade social e poder social. Marx
apresenta essa qualidade “transcendental” da coisa como fetichismo. E esse fetichismo não é meramente uma ilusão, uma espécie de “falsa consciência”. Em verdade, na sociedade burguesa, o dinheiro possui o maior poder. Porém, ele só possui esse poder devido às relações sociais específicas que lhe estão subjacentes: os possuidores atomizados de mercadoria estabelecem as suas relações sociais uns com os outros por meio dessa “coisa”, do dinheiro. O dinheiro tem poder porque todos os atores sociais se relacionam com o dinheiro como dinheiro, isto é, como uma representação independente de “valor”. Assim que os indivíduos começam a agir como possuidores de mercadorias, que trocam produtos, eles não têm outra possibilidade senão manter contato com o dinheiro. Posto isso, note-se que o fetichismo contém de fato um aspecto ilusório, pois o dinheiro parece ter um poder social que lhe é inerente. Mas, de fato, esse poder é resultado de um processo social automático que escapa à cognição usual das pessoas no dia-a-dia. O processo se consuma em seu próprio resultado.
A produção de mercadoria é impossível sem a correlação entre as mercadorias e o dinheiro. Por essa razão, há um importante limite para todo projeto utópico; se alguém deseja a abolição do dinheiro, deve almejar também a abolição do conjunto das relações societárias que o requerem. Não se pode ter uma sem a outra.

Do dinheiro ao capital

Se a totalidade do processo social de reprodução é mediada pela mercadoria e pelo dinheiro, isto é, se a produção de mercadoria não está restrita a existir em um nicho no interior de outro modo de produção (como foi o caso, inicialmente, no período feudal da Europa Ocidental), então o dinheiro adquire nova qualidade como capital. A incorporação autônoma de “valor”, por meio da qual a socialização econômica da produção de mercadoria é realizada, ela mesma se torna o fim principal da atividade econômica. Precisamente porque o dinheiro é a encarnação da riqueza abstrata, a qual não está sujeita a limites imanentes, ninguém nunca terá “suficiente” dele a sua disposição.
O comércio e a produção devem não apenas gerar dinheiro, mas sim, eles devem gerar continuamente novas somas de dinheiro. A generalização da produção de mercadorias é somente possível quando a própria produção é transformada em produção capitalista, quando a multiplicação e o aumento da riqueza abstrata se torna o fim direto da produção e todas as outras relações sociais ficam subsumidas a esse fim. O “poder destrutivo do dinheiro”, o qual foi objeto de muita crítica nos modos de produção pré-capitalistas (por muitos autores da Grécia Antiga, por exemplo) está enraizada precisamente nesse processo de capitalização da sociedade como resultado da generalização da relação de dinheiro. As concepções de socialismo de  mercado que almejam abolir a produção capitalista, mantendo, entretanto, o mercado, a produção mercantil e o dinheiro (por causa de sua “eficiência” na produção e na inovação) enfrentam esse problema fundamental: como impedir a recapitalizacão da sociedade sem inibir a “eficiência” do mercado.
A produção capitalista e os mercados financeiros
Como a coesão social numa sociedade de troca mercantil é estabelecida primariamente pelo dinheiro, este tem o poder de corromper essa coesão: a “possibilidade da crise” – como Marx já notara no terceiro capítulo de O capital – surge com o dinheiro. Não apenas o dinheiro faz a mediação das trocas no circuito mercadoria-dinheiro-mercadoria (alguém vende sua própria mercadoria a fim de adquirir subsequentemente outra mercadoria), mas ele permite a interrupção dessa mediação: uma venda sem o acompanhamento de uma compra (isto é, o dinheiro obtido pela venda não é utilizado em nova compra) produz uma ruptura na cadeia de reprodução. Assim que isso acontece, as mercadorias produzidas não podem mais ser vendidas; a produção torna-se limitada, entrando em estagnação. A consequência disso é, de um lado, capital ocioso e, de outro, desemprego da força de trabalho. Uma série de circunstâncias adicionais é necessária para que a mera possibilidade de crise se desenvolva e se transforme numa crise real.
No marxismo tradicional, essas circunstâncias são observadas primariamente nas próprias condições capitalistas de produção, por meio da “lei tendencial da queda da taxa de lucro”. Em contraste, o dinheiro e o crédito tem um papel secundário como “mero fenômeno de circulação”. Como resultado dessa abordagem unilateral voltada para as condições da produção, perde-se de vista o fato de que é impossível a produção de mercadoria sem dinheiro; a produção capitalista não pode existir sem o crédito (assim como sem as formas evoluídas tais como o dinheiro de crédito, a ações, os títulos etc.). O caráter flexível da produção capitalista se deve precisamente ao fato de que a acumulação não encontra limites nos lucros realizados nos períodos prévios de produção, mas pode ser expandido muito além por meio do crédito; ora, isto implica a possibilidade da superprodução.
Porém, o crédito é somente expandido (ou novas ações, dependendo da situação, são emitidas) naqueles setores em que altos níveis de lucro futuros são esperados. Nesse sentido, um forte elemento especulativo é inerente ao sistema financeiro como um todo. Esse elemento especulativo é reforçado adicionalmente por meio de instrumentos financeiros tais como as opções (direitos de adquirir participações específicas a um preço pré-determinado). Contudo, o elemento especulativo é inerente a todos os aspectos da produção capitalista: um empreendedor nunca pode saber com plena certeza se os seus produtos serão vendidos e a que preços, ou se os investimentos que faz trarão o nível esperado de lucros no futuro. Assim, o crédito e a especulação não são de modo algum condições externas que vem atrapalhar uma produção capitalista que não vem a ser inerentemente especulativa. Sem um setor financeiro especulativo, a produção capitalista é impossível.
Não se trata somente de observar que essa correlação deveria ser mais fortemente levada em consideração no campo da teoria da crise do que o fora no campo do marxismo tradicional. Trata-se, ademais, de tema importante para a crítica da globalização contemporânea. É comum que a critica se dirija contra um capitalismo “sem freios” cujo poder destrutivo parece estar associado a um sistema financeiro especulativo. Ora, o fato de o sistema financeiro estabelecer padrões de lucratividade e de eficácia de custos para as empresas individuais, dizer sobre como elas devem obter crédito e emitir ações, não é de modo algum um fenômeno recente. Tradicionalmente, o sistema financeiro tem exercido essa “função de controle”. O fato novo das últimas décadas é a emergência de um sistema financeiro largamente internacionalizado, o qual passou crescentemente a ditar os padrões internacionais de valorização do capital.
Se o aumento da especulação é visto como a causa principal das doenças do capitalismo, passa-se a recomendar mais regulação; e, assim, a relação necessária entre o sistema financeiro e a produção capitalista é velada. Desse modo – ao menos tendencialmente – passa-se a contrastar um sistema capitalista “bom” com um “mau”, sendo este último um capitalismo financeiro especulativo. Não está pré-determinado, de modo algum, a quantidade e a qualidade da regulação necessária para controlar “efetivamente” os fluxos de capital. Nesse sentido, as demandas dos críticos da globalização por mais regulação não são necessariamente pouco realistas ou impossíveis de serem introduzidas. Porém, pode-se duvidar de que essa regulação venha a suprimir os piores aspectos do capitalismo. Mesmo num capitalismo altamente regulado, a satisfação das necessidades e dos desejos, a eliminação das desigualdades sociais, ou mesmo uma boa vida, não são objetivos próprios da atividade econômica. Esta visa – isto sim – a valorização, a acumulação de riqueza abstrata – um fim para o qual os seres humanos e a natureza são apenas meios – meios estes, aliás, que estão sendo constantemente administrados para aquela finalidade seja atingida.
* Publicado originalmente em alemão em iz3w (Freiburg, jan-fev, 2002)
e posteriormente em inglês em MrZine (março, 2006).
Notas
[1] Isto é mostrado na seção “Forma do valor ou o valor de troca” no primeiro capítulo de O capital.
[2] Em O capital, Marx mencionou que o mero produto é uma “coisa sensível”, mas que ele se torna, enquanto mercadoria, uma “coisa sensível suprassensível”.
Michael Heinrich_boletim
Michael Heinrich está no Brasil para participar do IV Seminário Margem Esquerda: Marx e O capital, que integra a programação do projeto Marx: a criação destruidora. Nessa sexta-feira, dia 22/3, ele apresenta a conferência Os manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels, às 20h no Sesc Pinheiros.
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Michael Heinrich é cientista político e matemático. Foi professor convidado de ciência política na Universidade de Viena e na Universidade Livre de Berlim. Atualmente é professor de economia na Universidade de Ciências Aplicadas de Berlim. Editor da PROKLA (Jornal da ciência social crítica) e do site Oekonomiekritik, participa do projeto MEGA 2, um monumental esforço internacional visando à publicação das obras completas de Marx e Engels. É autor, entre outros, de Crítica da economia política: uma introdução, Como ler O capital de Marx e Uma introdução aos três volumes d’O capital de Marx.

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