PREFÁCIO DE RUBEM ALVES AO LIVRO DE EDUARDO CHAVES (Uma Nova Educação
para uma Nova Era)
Quero, preliminarmente, esclarecer o leitor sobre a minha maneira de ler
pois é ela que determina minha maneira de escrever. Eu leio
antropofagicamente: devoro os livros que amo. Depois de devorá-los eles
entram no meu sangue. Circulando no meu sangue deixam de pertencer ao
autor; passam a ser parte de mim. Assim, ao escrever sobre um livro,
escrevo sobre ele tal como foi por mim digerido amorosamente. Tolo seria
um homem apaixonado que, ao escrever sobre o jantar que sua amada lhe
preparou, transcrevesse as receitas dos pratos que foram servidos...
Assim, não vou transcrever e nem resumir. Vou falar sobre aquilo que
esse livro fez comigo depois de digerido...
o O o
Digo primeiro que a leitura desse livro me fez ficar alegre. E isso
porque, ao lê-lo, dei-me conta de que o Eduardo e eu estamos fazendo um
dueto, tocando a mesma música...
Vou explicar. Eu e o Eduardo temos sido amigos por muitos anos. Nossa
amizade se iniciou na juventude, porque andávamos pelo mesmo caminho.
Naqueles tempos escolhemos o caminho que, acreditávamos, nos levaria aos
deuses. Estudamos no mesmo lugar, lemos os mesmos livros de teologia e
brincamos com as mesmas idéias.
Mas o tempo passou e nós mudamos. Talvez por razões diferentes
abandonamos o caminho dos deuses com as suas certezas e resolvemos
caminhar por caminhos mais modestos e mais humanos. Seguimos o conselho
do poeta alemão Heine: deixamos os céus aos anjos e aos pardais... Mas
não seguimos juntos. Apareceu uma bifurcação e aí nos separamos: eu fui
por um lado e o Eduardo foi por outro. E assim vivemos por vários anos,
caminhando por caminhos diferentes. Mas nunca deixamos de ser amigos.
Até ríamos das nossas diferenças. Rafael pintou uma tela em que
aparecem, caminhando lado a lado, os filósofos Platão e Aristóteles.
Conversam enquanto caminham. Mas a tela deixa claro que eles não estavam
de acordo. Platão aponta para cima enquanto a mão de Aristóleles sugere
os caminhos de baixo... Platão quer as alturas; quer ser ave.
Aristóteles, talvez se lembrando do destino trágico de Ícaro, indica os
caminhos da terra, mais seguros para criaturas desprovidas de asas.
Assim éramos nós... Eduardo e eu chegamos mesmo a imaginar um jogo de
palavras. Se eu dissesse Platão ele responderia com Aristóteles. Se eu
falasse Santo Agostinho ele invocaria Santo Tomas de Aquino. Ao meu
Pascal ele retrucaria com Descartes. E se ele dissesse Kant eu diria
Nietzsche e Kierkegaard...
Eu segui o caminho da literatura e da poesia, onde só se fala por meio
da imprecisa e ambígua linguagem das imagens e das metáforas. O Eduardo,
ao contrário, preferiu o rigoroso e paciente caminho da lógica e da
razão, das idéias claras e distintas, e não foi por acidente que ele
escolheu como tema da sua dissertação de doutorado o pensamento do
filósofo Hume.
Mas estes não são caminhos contraditórios. Tanto a emoção quanto a
razão são manifestações da vida. A vida, só com a razão, é monótona e
triste. E a emoção sozinha, sem a razão, é frágil e efêmera. É do seu
encontro amoroso que universos são gerados.
Há pessoas que conseguem de forma maravilhosa brincar com as duas ao
mesmo tempo. Tal é o caso de Gaston Bachelard que, por um lado,
escreveu livros filosóficos clássicos sobre epistemologia e filosofia da
ciência e, ao mesmo tempo, obras de rara beleza e sensibilidade poética,
tais como "A Chama de uma Vela" e "A Poética do Espaço". Havia o
Bachelard diurno e o Bachelard noturno...
Os dons não são escolhas nossas. Não escolhemos a nossa maneira de
pensar e de escrever. Milan Kundera, no seu livro Os testamentos
traídos, observa que os pensamentos de um filósofo não são produtos
deliberados de uma decisão consciente. Os pensamentos, ele acrescenta
citando Nietzsche, vêm "de fora, do alto ou de baixo... Um pensamento
vem quando "ele" quer..." ( Os testamentos traídos, p. 135 ). Assim
aconteceu conosco. Eu não escolhi o meu jeito de pensar e escrever. E o
Eduardo não escolheu o seu. Os pensamentos nos escolheram, cada um a seu
modo. E a minha alegria está precisamente nisso: que havendo caminhado
por caminhos diferentes por tanto tempo, agora nossos caminhos se
encontram e começamos a tocar a mesma música...
Digerido, o livro me fez pensar. A propósito do livro best-seller
Inteligência emocional , o Eduardo observa que a questão não é fazer com
que a inteligência se torne emocional. (Na verdade, eu pessoalmente não
acredito nem que isso seja possível e nem que seja desejável). E
acrescenta: " Não é a inteligência (razão) que deve se tornar emocional:
é a emoção que deve se tornar inteligente". (Anexo II). Isso sim é
desejável, possível e necessário. Na ordem da vida a emoção é a origem
de todas as coisas. É nela que se encontra a força propulsora da ação.
Os sonhos são o rosto visível das emoções. Deus sonhou primeiro e agiu
depois. Sonhou com um paraíso e foi desse sonho que surgiu o verbo
criador. No princípio era o sonho... Mas o sonho sozinho com suas
emoções é impotente. Sem o sonho a inteligência permanece flácida,
impotente e inútil... O sonho precisa de um aliado que o torne forte.
Parafraseando o poeta William Blake: " O sonho engravida. A inteligência
faz parir." Nietzsche, que seguia o caminho da emoção, tinha clara
consciência disto. Dizia que o corpo, lugar das emoções e dos sonhos, é
o início de todas as coisas e o chamava de Grande Razão. E é essa Grande
Razão, bela e impotente, que cria a inteligência, a "pequena razão",
como uma ferramenta e um brinquedo para os seus sonhos. Para que? Para
que os sonhos não permaneçam sonhos. Para que os sonhos se transformem
em realidade. Para que a gravidez se realize em nascimento...
O que é esse livro? Ele é uma exploração meticulosa, exaustiva,
detalhada, clara, dos caminhos a serem seguidos para dar inteligência à
emoção. Minha alegria está nisso: que o Eduardo fez aquilo que eu mesmo
não fiz.
Dar inteligência à emoção... Isso nos permite dizer o que uma escola
deveria e poderia ser. Uma escola é um tempo-espaço onde as crianças têm
liberdade para sonhar e compartilhar seus sonhos. Mas mais do que isso:
é um tempo-espaço onde elas, no exercício da inteligência, criam as
competências necessárias para que seus sonhos se realizem.
Uma boa metáfora ilumina mais que uma dúzia de conceitos. O Eduardo se
vale da metáfora da construção de uma casa para explicar a maneira como
se aprende. Trata-se de uma metáfora fácil de ser entendida porque,
afinal de contas, temos estado repetindo que aprendizagem é
construção...
Onde se inicia a construção de uma casa? Na compra do terreno? No
financiamento? Na casa dos materiais de construção? Na planta do
engenheiro? Não. Uma casa não começa nesses lugares sólidos. Ela começa
num lugar frágil, que nem mesmo existe. Uma casa começa num Desejo,
naquele momento em que uma pessoa diz: "Como seria bom seu eu pudesse
construir uma casa!" O Desejo é como um feto: a princípio não se percebe
nele qualquer forma definida. Mas à medida em que cresce ele ganha um
rosto. Torna-se visível como Sonho. É o que disse Fernando Pessoa: "O
meu desejo porque é forte entra na substância do mundo."
"No princípio era o sonho..." O que vale para uma casa vale também para
todas as criações, das mais simples às mais complexas: vale para um
jardim e uma catedral, para um carrinho de lata de sardinha e uma nave
espacial, para um assobio e uma sinfonia. "Deus quer, o homem sonha, a
obra nasce..." (Fernando Pessoa). Polya, matemático da Universidade de
Princeton, escreveu um enorme livrinho sobre a arte de resolver
problemas. O seu primeiro conselho é "comece do fim". Não é assim que
procedemos ao planejar as férias? Primeiro sonhamos o lugar para onde
queremos ir. A seguir o Sonho pergunta à Inteligência: "Qual é o caminho
para se chegar lá?" E é assim também que acontece com a vida, que é o
maior projeto de construção que qualquer pessoa possa ter, porque o que
está em jogo é o Sonho do que queremos ser. A escola é precisamente o
lugar onde os sonhos das crianças põem suas inteligências a trabalhar
para que elas possam ser o que desejam ser.
Sim, as escolas estão construindo as crianças. Mas é preciso perguntar:
De quem são os sonhos? De quem é o projeto? Quem tomou as decisões?
Para a educação tradicional a resposta é muito clara. "A educação é algo
que os adultos ('as gerações mais velhas') fazem com as crianças ('as
gerações mais jovens'). Desta forma, ela atribui "aos adultos (pais ,
professores, etc.) o papel de atores principais no processo
educacional." Às crianças "cabe apenas assimilar o que os adultos
desejam que elas aprendam." "Aprender é um processo essencialmente
passivo, que têm lugar principalmente quando elas ouvem e lêem". Paulo
Freire deu o nome de "educação bancária" a esse tipo de procedimento
escolar: as crianças e os alunos são cofres vazios onde os adultos vão
depositando os saberes que os programas determinam. Essa imagem bancária
da educação é muito verdadeira porque foram as próprias escolas que a
adotaram ao empregar a palavra "crédito" para se referir aos cursos que
um aluno cursou.
Aos alunos cabe o silêncio... Na verdade pressupomos que as crianças são
estúpidas e nada sabem. Não podem, portanto, opinar e decidir sobre os
seus rumos nas escolas. A educação tradicional, assim, ignorando que as
crianças têm sonhos e têm o direito de sonhar, impõe sobre elas desejos
que não são delas, desejos dos adultos, para que elas deixem de ser elas
mesmas e se tornem outras. Haverá forma mais cruel de alienação? Pois
alienação não é precisamente isso, esquecer os próprios sonhos e passar
a sonhar os sonhos de um estranho? O que me faz lembrar um doloroso
verso de Álvaro de Campos: "Não existo. Sou o intervalo entre o meu
desejo e o que os desejos dos outros fizeram de mim..." Por causa disto
Alberto Caeiro se entregou à tarefa de desaprender tudo o que lhe
haviam ensinado, para que pudesse voltar ser ele mesmo...
Na escola tradicional o professor vai seguro para a sala. Sua aula está
preparada. Ele segue o programa. Não haverá surpresas. Ele sabe o que
vai falar. É ele quem vai dar o tema. Se uma criança fizer uma pergunta
enviezada ele dirá que num outro lugar do programa ela será respondida.
Às crianças compete escutar. O ato de avaliação, que freqüentemente
decide o destino de uma criança, tem o preciso objetivo de verificar se
as crianças ouviram bem o que lhes foi falado, se elas internalizaram os
saberes determinados por outros, outros que não estão lá...
O que está pressuposto por detrás dessa prática é que as crianças são
tolas. Nada sabem. O que têm a dizer não é para ser levado a sério. Se
as escutamos é por um mero ato de delicadeza. Não é um escutar de
verdade, para aprender delas. É um escutar de "faz de contas"...
Mas não são poucos aqueles que perceberam o contrário. Bernardo Soares
se refere á "diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a
estupidez dos adultos." Ricardo Reis, num poema sapiencial, diz que é
preciso viver "tendo as crianças por nossas mestras e os olhos cheios de
natureza". Nietzsche, que os doutos professores universitários dos seus
dias nunca entenderam, refugiava-se nas crianças e dizia que o máximo de
maturidade que um adulto pode atingir é quando ele tem a seriedade que
as crianças têm ao brincar. Novalis contemplava as crianças e se
encantava: "O primeiro homem é o primeiro visionário de espíritos. O que
são as crianças, senão primeiros homens? O fresco olhar da criança é
mais transcendente que o pressentimento do mais resolutos dos
visionários." E Janusz Korczak, o educador polonês judeu que morreu
numa câmara de gás nazista com suas crianças, escrevendo aos
professores, disse: "Vocês dizem: 'Cansa-nos ter de conviver com as
crianças'. Têm razão. Vocês dizem ainda: 'Cansa-nos porque precisamos
descer ao seu nível de compreensão'. Descer. Rebaixar-se, inclinar-se,
ficar curvado. Estão equivocados. Não é isso o que nos cansa, e sim o
fato de termos de elevar-nos até alcançar o nível de sentimentos das
crianças. Elevar-nos, subir, ficar nas pontas dos pés, estender a mão.
Para não machucá-las."
O fato é que as crianças são inteligentes. Suas inteligências ainda não
foram petrificadas pelo hábito. Seus olhos se espantam com todas as
coisas. Querem saber. São curiosas. Investigam. O dedinho da criança
procurando buracos onde enfiá-lo é um maravilhoso símbolo da sua
curiosidade. "Ninguém precisa ensinar uma criança pequena a aprender",
diz o Eduardo citando Peter M. Senge. "Na verdade, ninguém precisa
ensinar nada a uma criança pequena. Elas são infinitamente inquisitivas,
aprendentes competentes que aprendem a andar, a falar e a basicamente
mandar em suas casas, tudo sozinhas."
Uma Nova Escola tem de se iniciar com uma transformação amorosa na nossa
imagem da criança. Reconhecer que todas as crianças - na verdade, todas
as pessoas - têm sonhos. Mais do que isso: que elas têm direito aos
seus sonhos, porque seus sonhos são a sua alma. E que são os sonhos que
determinam o programa: são eles, os seus sonhos, que dizem os saberes a
serem buscados. Porque todos os saberes só têm uma função: a de
permitir que os sonhos sejam realizados. Quando um sonho se realiza vem
a alegria. Todo o trabalho para a realização dos sonhos é um trabalho
feliz. Mesmo o trabalho penoso. Lembro-me de Oswald de Andrade, no
"Manifesto Antropofágico": "A alegria é a prova dos nove..." O
espaço-tempo da escola, assim, se organiza como uma oficina onde as
crianças são encorajadas a sonhar os seus próprios sonhos. Nenhum sonho
será jamais castigado. É um espaço feliz. E o professor se descobre
então como um provocador e escutador de sonhos...
Isso produz uma perturbação nas rotinas do professor. Na escola
tradicional todas os saberes estão definidos pelo programa. O professor
é o portador desses saberes. Sua missão é fazer com que as crianças
aprendam. Mas agora esse programa fixo deixa de existir. Serão os
desejos e sonhos dos alunos que indicarão quais os saberes que lhes
serão necessários no seu projeto de vida. Crianças nas praias do
nordestes, nas montanhas de Minas, nas florestas da Amazônia, nos
bairros ricos das grandes cidades, nas favelas, nos pequenos vilarejos
pobres - quantos sonhos diferentes! Quantos projetos de vida diferentes!
Seria, por acaso, possível, submetê-las a um programa único? Impossível.
Serão as crianças que dirão os seus sonhos e pedirão ao professor:
"Ajude-nos a realizá-los!" E o professor perceberá que ele não tem
respostas para as perguntas que lhes vêm dos alunos. Ele não sabe! Ele
terá de dizer que não sabe. E isso não será vergonhoso. Ninguém sabe
todas as coisas. Ele não sabe as respostas. Sua função não é ensinar
respostas. Sua função é ajudar os alunos e a si mesmo a procurar as
respostas.
É preciso que nos libertemos da insensatez dos programas pre-fixados e
universais. Eles pressupõem que aqueles são os saberes que as crianças
devem aprender, sem explicar por que. Qual o sentido dos nomes das
enzimas que entram no processo digestivo para um adolescente de
periferia? O que pode ele fazer com aqueles nomes? E pressupõem ainda
que os alunos são todos iguais. E que devem aprender as mesmas coisas.
No mesmo ritmo... Nenhum desses pressupostos se justifica
psicologicamente.
Por vezes o absurdo literário nos ajuda a compreender o absurdo real.
Imaginemos que um homem, decidido a construir uma casa, vá a uma casa de
materiais de construção e se ponha a fazer um estoque de todos os
produtos que ali se encontram. Afinal de contas, ele vai construir uma
casa e aquele é o lugar onde estão estocados os materiais para a
construção de uma casa. Claro que isso é um absurdo. Ninguém procede
assim. Só um louco. O que todo mundo faz, orientado pelo senso comum, é
ir comprando os materiais à medida em que se tornam necessários. Mas
aquela é, precisamente, a filosofia dos programas: os alunos são
obrigados a aprender os saberes que, hipoteticamente, irão usar um dia,
eventualmente... Não seria muito mais racional ir aprendendo os saberes
à medida em que se tornarem necessários à construção do projeto de vida?
Tenho dó dos professores sabedores dos programas. Porque a cada ano eles
são obrigados a andar pelos mesmos caminhos, a repetir as mesmas coisas.
Fazem-me lembrar os guias turísticos que, dia após dia, levam os
turistas aos mesmos monumentos e mecanicamente repetem as mesmas
informações. É uma monotonia sem fim! Não admira que com o transcorrer
dos anos a alegria desapareça dos seus rostos e eles desaprendam a arte
de sonhar! Passam a sonhar com a aposentadoria... Mas, indo ao sabor dos
sonhos das crianças a cada dia eles terão de enfrentar o desafio de
mundos desconhecidos e a surpresa de coisas novas! E ficarão mais
ricos. E mais interessantes. Esse é um projeto de vida que vale a pena!
Para que aprender? O corpo aprende para se tornar mais eficiente para
resolver os problemas vitais do dia a dia. "Saber por saber! Isso é
desumano!", dizia Miguel de Unamuno. Tecnologia são todos os artifícios
inventados pela inteligência para aumentar a competência do corpo para
resolver os problemas vitais. Marshal McLuhan observou que todos os
produtos tecnológicos, da cuia ao computador, são extensões dos nossos
membros e da nossa inteligência. Saberes são ferramentas. No mundo há
milhares, milhões de ferramentas. Eu nunca usarei todas. Portanto, não
tenho de aprender todas. Aprenderei as ferramentas que me são
necessárias para viver. É esse "para viver" que dá sentido ao
conhecimento. Assim, aprendemos para nos tornar competentes. O que é
competência? Menino, eu tinha inveja do meu pai. Ele descascava laranjas
como ninguém: cascas inteiras, sem ferir a laranja. Eu queria ser como
ele. Para isso eu teria de aprender várias coisas. A segurar o canivete.
A amolar o canivete. A segurar a laranja. A girar a laranja. A cortar a
casca no ângulo certo. Ninguém me disse que aprendesse. Ninguém me
ensinou. Aprendi sozinho porque queria. Me esforcei até que fiquei
competente. Descasco laranjas como o meu pai. Esse saber não se encontra
em nenhum programa... Competência é ter a capacidade para resolver os
problemas que nos desafiam no dia a dia. Muito cedo, sem que ninguém
saiba como, a criança adquire competência para andar. Com isso ela
resolve o problema de deslocar-se no espaço. E aprende a falar. Com isso
ela se torna competente na comunicação. O menino que roda o pião ficou
competente em rodar pião. A menina que pula corda ficou competente em
pular corda. O jovem que toca violão se tornou competente em tocar
violão. Para isso foi necessário que o seu sonho fosse muito forte. Se
ele não sonhasse forte ele não teria paciência... Sempre que o sonho é
forte a inteligência trabalha com paciência e persistência. Não é
preciso que ninguém lhe dê ordens.
A vida é feita de competências. Corrijo-me. A vida é feita de
competências e sonhos. São os sonhos que buscam as competências. As
competências nos dão os "meios para viver". Os sonhos nos dão as "razões
para viver". As competências existem para que os sonhos se realizem.
É possível que a imprensa tenha sido a tecnologia que mais revolucionou
a educação. Ela foi capaz de colocar o mundo dentro de um livro. E
dentro de uma sala de aulas. Mas, para fazer essa tarefa fantástica ela
teve de se valer de um artifício: transformou o mundo multi-dimensional,
desorganizado, sempre em mutação, numa linha contínua de palavras. Para
que as palavras façam sentido é preciso que os olhos deslizem sobre
elas, da esquerda para a direita, sem saltos. O problema de um escritor
é sempre esse: colocar numa linha aquilo que não existe numa linha... A
escrita determinou nossa maneira de pensar o mundo: pensamos o mundo
através de uma linha reta deslizante. À moda de uma centopéia, sem
pulos.
Vieram então os computadores. E a Internet. Com isso surgiu um outro
jeito de andar: aos pulos, como uma pulga. Podem rir da metáfora. Eu
também a acho engraçada. Mas acho que Nietzsche a aprovaria pois dizia
que aqueles que só sabem andar não seriam capazes de seguí-lo. Seria
preciso que fossem capazes de saltar de pico em pico. E acrescentou: "
Mas para isso é preciso ter pernas longas..." A Internet nos deu pernas
longas. Podemos saltar de pico em pico. Podemos visitar o mundo aos
pulos. Quantas revoluções no pensamento, nos arranjos espaciais e
temporais, nas trocas de informações, acontecem em decorrência da
presença de computadores e da Internet numa escola. Alguns não se dão
conta do que está ocorrendo. Pensam que um computador ligado à Internet
é apenas mais um artefato tecnológico moderno. Não se dão conta de ele
representa uma transformação radical no nosso mundo, nas formas de
conhecer, de comunicar e de ganhar novas competências. Hoje, para se ser
competente, é preciso aprender a pensar com os saltos da pulga. As
linhas retas nos levam por caminhos batidos. Os saltos nos levam a
lugares não pensados.
O que há de fascinante neste livro é que o seu autor nos leva passo a
passo no processo de construção do Projeto de Vida daqueles que estão
aprendendo. Porque isso é a única coisa que importa. Resumindo: é o
Sonho em busca da Inteligência.
O nosso Sonho é que o dueto se transforme em orquestra...
Rubem Alves
Campinas, 6 de março de 2003
FONTE : http://br.groups.yahoo.com/group/4pilares/message/1426
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