quinta-feira, 16 de abril de 2009

A conspiração era palaciana. Tiradentes, não (por Celso Lungaretti)

"...cada conjurado ficou sozinho: longe do povo
que não desejava, longe do poder que pretendia
derrubar. (...) Menos Tiradentes: este queria
estar junto - mas escolheu mal com quem."
(Boal/Guarnieri, "Arena Conta Tiradentes")

Leitores me escrevem discordando da homenagem prestada a Tiradentes. No entanto, contestam mais a Inconfidência Mineira do que o herói em si, alegando que não foi uma revolta popular, mas sim uma conspiração palaciana.

Se conhecessem a peça Arena Conta Tiradentes, que perpassa todo meu texto, saberiam que estão chovendo no molhado.

Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal haviam utilizado a saga dos quilombos como parábola sobre o golpe de 1964, em Arena Conta Zumbi (1965). Desde a introdução, esse propósito ficava claro, pois a proposta era contar uma "história da gente negra, da luta pela razão/ que se parece ao presente pela verdade em questão/ pois se trata de uma luta muito linda, na verdade/ é luta que vence os tempos, luta pela liberdade".

Ou seja, impossibilitado pelas restrições da época de fazer uma peça declaradamente sobre a quartelada, o Arena utilizou o artifício de comparar, o tempo todo, o episódio passado com o presente.

P. ex., ao assumir a condução da campanha contra Palmares, D. Aires faz um discurso recheado de colocações dos golpistas de 1964, tipo "a independência é necessária na teoria, na prática vigora a interdependência", alusão às fronteiras ideológicas (formação de um compacto bloco anticomunista) que os EUA pregavam, em substituição às fronteiras físicas.

E, como a censura era muito estúpida, não percebeu sequer a quem o Arena se referia, ao colocar na boca de D. Aires esta fala: "Já não precisamos de Exército. Precisamos de uma força repressiva, policial. Unamo-nos todos a serviço do rei de fora, contra o inimigo de dentro!".

Como a usurpação do poder ainda era muito recente, a peça serviu como catarse, destacando a grandeza dos combatentes pela liberdade e a sordidez dos repressores. Era a mensagem adequada a um momento de perplexidade e medo.

Em 1967, entretanto, o foco era outro: a esquerda já se recompusera do susto, passando a discutir de quem, afinal, havia sido a culpa por fracasso tão retumbante.

A responsabilidade do Partido Comunista Brasileiro pela derrota saltava aos olhos: ao invés de organizar as massas para resistirem às previsíveis investidas reacionárias, acreditara que as Forças Armadas cumpririam fielmente seu papel constitucional, de defensoras da democracia.

O Governo João Goulart chegara ao cúmulo de não interferir quando a oficialidade promovia expurgos nas fileiras militares, enfraquecendo a rede de sargentos e cabos que evitara a tentativa anterior de golpe, em 1961.

Então, a esquerda estava numa temporada de críticas, autocríticas e rachas, tentando reencontrar seu norte, após o colapso de sua força quase hegemônica, o PCB.

Arena Conta Tiradentes refletiu este momento, ao retratar a Inconfidência Mineira como uma conspiração palaciana, que é desarticulada com facilidade exatamente por não ter o respaldo das massas.

O coringa (narrador), ao explicar o fracasso dos inconfidentes, é taxativo: a maioria deles, pertencente à elite mineira, "estava em cima do muro, pronta pra pular pra qualquer lado, conforme o balanço". E conclui:
- E, se é verdade que muitas revoluções burguesas foram feitas pelo povo, também é verdade que, nesta, o povo estava ausente; e, mais do que ausente, foi afastado. Por isso, cada conjurado ficou sozinho: longe do povo que não desejava, longe do poder que pretendia derrubar. Sozinho, cada um pensava na sua prosperidade individual; sozinho, cada um pensou depois na sua salvação. Menos Tiradentes: este queria estar junto - mas escolheu mal com quem.

O alferes era, na verdade, o único vínculo entre os conspiradores palacianos e o povo. E eu não encontro motivos para discordar da avaliação de Boal e Guarnieri:
- Quando pensamos em escrever a história de Tiradentes, tínhamos a impressão de que Silvério não era tão safado como todo mundo dizia, nem o alferes tão herói como constava. Depois, estudando, chegamos à conclusão de que Tiradentes foi mais herói ainda do que se diz e Silvério tão safado quanto consta.

Silvério, vale dizer, não foi o único safado: outros também delataram a Inconfidência, mas só ele carrega o estigma histórico, sabe-se lá por quê.

Quanto a Tiradentes, teve comportamento idealista na conspiração e digno no cárcere. Foi, como Lamarca e Marighella, um militar que recusou o papel de cão de guarda do arbítrio e das injustiças, abraçando a causa do povo.

Merece ser reconhecido como o herói maior deste país tão carente de heróis e tão pouco grato aos poucos que produz.

Um comentário:

  1. OI CELSO, estes teus textos são vitais pra qualquer estudante e pra todos nós!! que maravilha você relembrar esta parte da história de nosso teatro!! quem dera poder ter assiostido estas peças com o saudoso Guarnieri!!... e Boal!
    como nossas artes e nossa cultura desceram!! temos muito trabalho pela frente pra fazer tudo isto entrar num ritmo digno como daquela época!! que grande catástrofe uma ditadura pode causar!! que grande atraso!! abração e agradeço muito! Nadia

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