quarta-feira, 29 de abril de 2009

A figura do herdeiro na civilização do café – problema literário desde José de Alencar

Por Regina M. A. Machado*


Os romances do século XIX têm freqüentemente em comum uma grande empatia com as preocupações básicas de um público nacional que se constrói enquanto público leitor e como cidadão de nações que se modernizam, paralelamente ao desenvolvimento do gênero literário. Por outro lado, são considerados leitura nociva, veículos de idéias subversivas, gênero vulgar e indigno de verdadeiros artistas, ao mesmo tempo que vão aparecendo as obras-primas que dão a forma mais adequada a essa que é a reflexão literária por excelência sobre a modernidade burguesa. Em seguida, no século seguinte, várias vezes tentou-se acabar com o romance, decretando sua morte natural, seu desaparecimento puro e simples, seu caráter supérfluo. Mas ele tem resistido, como é fácil constatar, certamente mudando e se adaptando a novas formas e a novas responsabilidades do escritor. Raramente, diga-se de passagem, obtendo o mesmo efeito de comunhão com um largo público, como lembra Orhan Pamuk.

A ascensão do romance como forma de arte coincidiu com a ascensão do Estado-nação. Quando os grandes romances do século 19 estavam sendo escritos, a arte do romance era uma arte nacional. Balzac, Dickens, Dostoiévski e Tolstói escreviam à classe média emergente em seus países, capaz de reconhecer nos livros cada cidade, rua, casa, sala e cadeira; os leitores compartilhavam nos livros de seus mesmos gostos e discutiam as mesmas idéias.

No século 19, os romances eram publicados nos cadernos de cultura dos jornais, porque seus autores falavam a uma nação. No fim do século 19, ler e escrever romances era participar de discussão nacional, fechada aos que estavam de fora.[1]

Sem necessariamente aderir à idéia de restrição de difusão da obra a um espaço nacional, podemos encontrar esse sentimento de responsabilidade para com seu próprio público tanto em escritores brasileiros como europeus ou outros, cada um na sua língua e na sua época criando obras que abriam um largo espaço para que os leitores participassem da discussão nacional que lhes incumbia.

Alguns temas e construções comuns percorrem esses romances desde a Europa até o Brasil, onde o que vai nos interessar aqui é a figura do herdeiro da família aristocrática. Para começar, evocaremos o modelo europeu, tal como é visto pelo personagem inculto que dá nome ao romance de Henry James, O Americano. Este faz amizade com o jovem conde de Bellegarde, que explica ao amigo ignorante das regras de vida da aristocracia européia que qualquer trabalho o faria derrogar às tradições familiares. Como se diz na França, Valentin era um gentilhomme de pura cepa e sua regra de vida, por pouco explícita que fosse, consistia em cumprir o papel de um gentilhomme (JAMES, 1994: cap. 7).[2] Esse rapaz cujos horizontes não ultrapassam os limites de um bairro parisiense e que vive preso a valores do passado, morre em duelo por uma questão de honra que o amigo americano vê como absurda, mas que é perfeitamente aceita e legitimada pela família e pelo padre que o assiste. A única pessoa a lamentar a perda dessa vida cheia de promessas de um indivíduo jovem é o perplexo americano que questiona, com sua incompreensão, os valores da nobreza européia.

Também em José de Alencar, ora o personagem do herdeiro se expõe em diálogos com um interlocutor, ora é simplesmente descrito pelo narrador, que tampouco o julga, apenas alinha suas características sociais. Os exemplos escolhidos aqui são geralmente oriundos das fortunas então recentes do café, em romances onde a função literária do herdeiro é esmiuçada e questionada por Alencar. Em A viuvinha, o narrador apresenta o jovem rico de curta nobreza em toda sua futilidade, sem a rígida formação dada pelo sistema de valores do nobre europeu, mas chegando ao mesmo tipo de desocupação:

Chegando à maioridade, Jorge tomou conta de seu avultado patrimônio e começou a viver essa vida dos nossos moços ricos, os quais pensam que gastar o dinheiro que seus pais ganharam é uma profissão suficiente para que se dispensem de abraçar qualquer outra (ALENCAR, 1959: 232, cap. I).

Em O tronco do ipê, a heroína caricatura os filhos de um fazendeiro vizinho, fazendo notar que o herdeiro enviado à Europa para se educar corre o risco de voltar sem nada ter aprendido, feito um boneco de cheiro, como aqueles dois bobos, que lá estão na corte deitando fora a herança do pai... (ALENCAR, 1977: 272, cap. VII, 2ª. parte). [3].

O herdeiro das fortunas da época imperial segundo Bernardo Guimarães também acaba indo buscar um aperfeiçoamento social fora do país, pois está convencido de que só na Europa poderia desenvolver dignamente a sua inteligência, e saciar a sua sede de saber em puros e abundantes mananciais. Assim escreveu ao pai, que deu-lhe crédito e o enviou a Paris, donde esperava vê-lo voltar feito um novo Humboldt (GUIMARÃES, 1976: 33, cap. II). As probabilidades do trajeto presumido do herdeiro de um rico comendador do império vêm magistralmente resumidas em A escrava Isaura. Esse roteiro modelar é objeto de uma narração sarcástica, que aproveita para denunciar paralelamente o prestígio social de que gozavam sem contestação os traficantes de escravos. O comércio de importação e exportação de gêneros, mesmo em larga escala, o próprio tráfego de africanos, lhe pareciam especulações degradantes e impróprias de sua alta posição e esmerada educação. A atividade comercial nesse romance é vista com o mesmo desprezo que os mascates do Recife mereciam dos aristocratas de Olinda (ALENCAR, 1958), cujos nobres herdeiros são moldados pelo mesmo modelo descrito acima: Álvaro Cavalcanti, o filho do capitão-mor, um desbragado que levava a vida a pautear, não cuidando senão de jogo, mulheres e comezainas. Na peça O crédito, a especulação que se banaliza na sociedade imperial é satirizada nos mesmos termos explicitados por Guimarães: O negócio de balcão e retalho, esse inspirava-lhe asco e compaixão. Só lhe convinham as altas especulações cambiais, as operações bancárias, e transações, em que jogasse com avultados capitais (GUIMARÃES, 1976: 34). Este personagem da Escrava Isaura é ironicamente construído em oposição ao protagonista, um jovem remanescente dos engenhos do Nordeste açucareiro, este idealizado tanto física como moralmente: Tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista (Id., 88, cap. XI).

Até aqui, o herdeiro é visto com simpatia ou tem seu contraponto num duplo que supre suas deficiências. Porém esses traços vão se acentuar, tornando-se mais nítidos e, poder-se-ia dizer, grotescos em Machado de Assis, através de seu amoral narrador póstumo das próprias falcatruas, Brás Cubas, ele próprio ascendente direto de um herdeiro contemporâneo nosso, um Bom paulista quatrocentão, fruto decadente de família tradicional, bisneto de um cara que ajudou a fundar São Carlos[4].

Mesmo se o nosso centro de interesse é a produção literária anterior ao Modernismo de 22, fica atualizada acima, no conto de Cícero Sandroni, esta linhagem ainda produtiva, certamente representativa de uma problemática literária instigante, mas que suscita também questões sobre nossa organização social e a degradação acelerada de uma certa elite retratada no provérbio nacional Pai rico, filho nobre, neto pobre. No vale do Paraíba encontramos uma versão local interessante que retrata perfeitamente as etapas históricas das primeiras grandes fortunas do café nessa região, Pai mineiro, filho cavaleiro, neto sapateiro. Esta última geração empobrecida, no entanto, raramente terá tido competência para se estabelecer com um ofício manual – o sapateiro do provérbio –, tendo muito mais freqüentemente dado com os costados na função pública e burocrática, como já denunciava Joaquim Nabuco: … os descendentes dos antigos morgados e senhores territoriais acham-se hoje reduzidos à mais precária condição imaginável, (…) obrigados a recolher-se ao grande asilo das fortunas desbaratadas da escravidão, que é o funcionalismo público (NABUCO, 2000: 106). Retornando ao Tronco do ipê, de 1871, é bom lembrar que o pai do herói é sumariamente suprimido da intriga ao ser surpreendido no cabo da enxada, num capítulo sugestivamente intitulado “Desastre”, o que pode atestar da imprudência social e literária de se trabalhar com as próprias mãos numa sociedade escravista. Um ano depois do O tronco do ipê, o próprio Alencar retoma e acentua a visão do trabalho nessa sociedade, através do personagem Jão Fera, em Til.

O trabalho, ele o tinha como vergonha, pois o poria ao nível do escravo. Prejuízo este, que desde tempos remotos dominava a caipiragem de São Paulo, e se apurava nesse homem, cujo espírito de sobranceira independência havia robustecido a luta que travara contra a sociedade.

Era a enxada para ele um instrumento vil: o machado e a fouce ainda concebia que os pudesse empunhar a mão do homem livre; mas em seu próprio serviço, para abater o esteio da choça ou abrir caminho através da floresta (ALENCAR, 1973: 70, cap.XIV, 2ª parte).

É de se notar que Jão Fera, homem livre e pobre, é um personagem mais prudente e avisado que o aristocrata decadente do romance anterior, retratado como um idealista que se marginaliza de sua própria classe ao incidir no trabalho braçal. O narrador pouco confiável, que induz suspeitas sem dar garantias ao leitor, já aponta nesses romances da maturidade de José de Alencar, antes de sua concretização fulgurante em Machado de Assis.

Este escritor, que não deixou passar nada do que seus predecessores já haviam notado e que lia com atenção o mundo que o rodeava, conforme sua própria exigência, adapta a linhagem dos Cubas a essa necessária negação de qualquer relação com o mundo do trabalho. Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu pai, bisneto de Damião, que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha que praticou, arrebatando trezentas cubas aos mouros. Meu pai era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um ca1embour (ASSIS, 1994: cap. III).

Nossa crônica do herdeiro literário teria muito mais a dizer, mas corre o risco de encompridar demais e, assim, termina sem final feliz, evocando a narração que faz na primeira pessoa um produto contemporâneo da riqueza gerada pela epopéia paulista do café, uma a mais na repetitiva seqüência dos ciclos sucessivos de monoculturas que salvam o país, sem muito abalar velhas distribuições de glebas herdadas das capitanias hereditárias. A literatura brasileira parece tomar a si a figura do herdeiro como um problema não resolvido e, assim, merecendo ainda e sempre novas e sucessivas recriações ficcionais.

Recebi minha parte da herança de um avô fazendeiro e, sem o menor arrependimento ou sentimento de culpa, gastei tudo nas bocas do luxo e depois nas bocas do lixo de São Paulo. Só me restou o apartamento do Alto das Perdizes. Aos 42 anos, depois de trinta dissipados numa boa vida, sou hoje o que os bem-pensantes, os bem sucedidos, os que venceram, chamam de fracassado.[5]

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Bibliografia

ALENCAR José de. A guerra dos mascates. Obra completa, Vol. III. Rio de Janeiro, Editora José Aguilar Ltda., 1958.

__________. A viuvinha. Obra completa, Vol. I. Rio de Janeiro, Editora José Aguilar Ltda., 1959.

__________. O tronco do ipê. Rio de Janeiro, José Olympio/ Brasília, INL, 1977.

__________. Til- Romance brasileiro (9a. edição – Reprodução fiel do texto da edição de 1872). São Paulo, Edições Melhoramentos, 1973.

ASSIS Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994. Vol. I.

GUIMARÃES Bernardo. A escrava Isaura. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1976.

JAMES Henry. L’Américain. Paris, Liana Levi, 1994.

NABUCO Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira/São Paulo, Publifolha, 2000.

SANDRONI Cícero, O suicida. In http://www.releituras.com/releituras.asp, editado por Arnaldo Nogueira Jr.

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[1] In Literatura Política & Sociedade, http://antoniozai.blogspot.com/ ,sábado, 10/5/2008.

[2] Numerosas expressões são mantidas em francês no texto original inglês.

[3] No capitulo seguinte, intitulado “A merenda”, os convivas do barão debatem sobre a educação dos jovens herdeiros na Europa.

[4] SANDRONI Cícero, O suicida. Publicado em http://www.releituras.com/releituras.asp, organizado por Arnaldo Nogueira Jr.

[5] SANDRONI Cícero, op. cit.



REGINA M. A. MACHADO

Tradutora e Doutora pela Universidade Paris III/La Sorbonne Nouvelle, com tese defendida em fevereiro 2007 sobre Ficção e café no vale do Paraíba –Três romances da fazenda escravagista.


FONTE : http://www.espacoacademico.com.br/094/94machado.htm

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