Adalberto Paranhos (UFU)
Relações de gênero; música popular; “Estado Novo”.
ST 55: Música popular brasileira & relações de gênero
Observador atento da cena social carioca dos anos 30 – e, em especial, das relações de
gênero que se desenrolavam diante de seus olhos –, Noel Rosa registra em Três apitos umas tantas
mudanças cujos contornos iam, mais e mais, se definindo. Inconformado por ver a fábrica roubarlhe
o precioso tempo de convívio com a amada, ele desabafa: “você que atende ao apito/ de uma
chaminé de barro/ por que não atende ao grito tão aflito/ da buzina do meu carro?”. Numa outra
composição, Você vai se quiser, Noel descarrega o seu protesto contra o novo mundo que se abre ao
trabalho feminino. Enxergando-o com lentes de aumento, ele se queixa: “todo cargo masculino/
desde o grande ao pequenino/ hoje em dia é pra mulher/ e por causa dos palhaços/ ela esquece que
tem braços/ nem cozinhar ela quer”.
Os papéis sociais assumidos no espaço urbano por um número crescente de mulheres –
num momento em que a industrialização ganhava impulso em certas áreas do Brasil – embaralhava
o jogo de cartas marcadas representado pela tradicional divisão sexual do trabalho. Ainda em 1941,
Wilson Batista e Haroldo Lobo compõem Emília, um elogio rasgado à mulher de mil e uma
utilidades domésticas. Nela choram, pela boca de Vassourinha, a ausência da personagem-título,
cuja memória era evocada: “quero uma mulher/ que saiba lavar e cozinhar/ que de manhã cedo/ me
acorde na hora de trabalhar/ só existe uma/ e sem ela eu não vivo em paz/ Emília, Emília, Emília/ eu
não posso mais”.
Que não se pense, contudo, que o presente sepultara de vez o passado. Este se atualizava
sob diversos aspectos e se insinuava em muitos discursos, práticas e normas legais. Afinal, não se
cortam de uma hora para outra os laços que nos prendem à tradição e a traços culturais marcantes
partilhados por diferentes grupos e classes sociais.
Ao tomar como objeto de estudo a Inglaterra na virada dos séculos XIX e XX, Hobsbawm
já explicou o que levava, por exemplo, a classe e o movimento operários a não verem com bons
olhos o trabalho da mulher fora de casa. Independentemente disso, o que se tem de concreto é que
“a industrialização do século XIX (em oposição à industrialização do século XX) tendeu a fazer do
casamento e da família a carreira principal da mulher da classe trabalhadora que não fosse forçada
pela total pobreza a assumir outra atividade”1. No Brasil, estigmas sexistas semelhantes virão à
superfície ao longo da história do movimento operário. Sob uma estrutura familiar patriarcal, as
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mulheres – como mostram, entre outras, Maria Valéria Junho Pena e Margareth Rago2 – estavam
condenadas a arcar, de forma prioritária, com o trabalho doméstico e reprodutivo, por maior que
fosse sua participação na composição da força de trabalho assalariada na Primeira República.
À época do “Estado Novo”, concepções tradicionalistas teimavam em expressar-se, como
se observou, entre o final dos anos 30 e início dos 40, durante o debate que se instalou e estalou nos
próprios meios governamentais a propósito do Estatuto da Família3. Na contracorrente das novas
realidades que vinham se estabelecendo, Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde,
chegou a bancar um projeto que, em prol da grandeza do país, salientava a necessidade de promover
o aumento da população e de oferecer proteção estatal à família monogâmica e ao casamento
indissolúvel. Para tanto, propunha, entre outras coisas, a “progressiva restrição da admissão das
mulheres nos empregos públicos e privados”4. Tratava-se de reforçar o direcionamento das energias
femininas para funções julgadas compatíveis com sua “natureza”, o que significava reafirmar seu
enraizamento na vida doméstica.
Virando o lado da moeda, no caso do homem era exaltado o dever a cumprir como chefe
de família, trabalhador/provedor5, que, nas palavras de Gustavo Capanema, “deve ser preparado
com têmpera de teor militar para os negócios e as lutas”6. Enquanto os homens estariam respaldados
pela retaguarda doméstica que lhes proporcionariam as mulheres, estas encarnariam a autoridade
que simbolizaria o poder do Estado, num contexto em que, como frisa Sueann Caulfield, a família
brasileira era a “metáfora central da ordem social”.7
LEIA NA ÍNTEGRA EM : http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST55/Adalberto_Paranhos_55.pdf
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