Terça-feira, 31/10/2006
Por Marília Almeida
"A menos que surja, de tamanha gravidade, um acontecimento que, frente a ele, a minha arte literária seja imbecil e que me seja preciso para domar essa nova infelicidade uma nova linguagem, este livro é o último. Estou à espera de que o céu despenque na minha cuca".
É assim que Jean Genet se sentiu diante de Diário de um Ladrão (Nova Fronteira, 2005, 224 págs.). Não é por menos, já que o livro é uma autobiografia com traços de ficção no qual faz desabafos sobre a vida pobre, mas repleta de amores e roubos de sua juventude. Este sentimento se concretizou, pois a obra, recentemente reeditada pela editora Nova Fronteira com prefácio de Ruth Escobar, é o último de seus cinco romances. Além de Nossa Senhora das Flores (1944), The Miracle of the rose (46), Querelle de Brest (47) e Funeral Rites (49), o escritor francês ainda produziu peças teatrais e diversos poemas.
Genet deixa claro que escreve para construir sua lenda, mas ela é uma idéia audaciosa, não apenas decorativa, de sua vida futura e, Diário de um Ladrão, uma obra incompleta, pois um grande número de seus capítulos se perdeu e os conservados não seguem qualquer ordem. A linguagem sem rodeios, pontuada por pensamentos da ocasião em que o relato está sendo feito, dão tom confessional à narrativa. Ela é guiada pelo fluxo do pensamento, que a torna fiel ao título de diário.
Morto em Paris em 1986, vítima de câncer na garganta, Jean Genet não apresentaria sua obra ao mundo não fosse Jean Cocteau, Jean-Paul Sartre e Pablo Picasso, intelectuais renomados que o livraram da ameaça da pena de morte dada pelo governo francês após dez condenações. Filho de uma jovem prostituta, após um ano de vida foi adotado e tirava boas notas na escola. Mesmo assim, praticava pequenos roubos, o que o fez ser preso ainda jovem e se tornar um delinqüente a partir de então.
Escrito em 1949, o livro tem como ponto inicial sua entrada no exército após a passagem pela prisão para jovens. Expulso do serviço militar por ser pego em flagrante praticando atos homossexuais, Genet passa um grande período viajando pela Europa como vagabundo, levando uma vida de crimes e paixões. De maneira intensa, ele descreve experiências por vezes grotescas e imorais, sempre com um tom irônico e cético de um bom observador do submundo de sua época.
O que em alguns trechos é uma leitura que perde por sua fragmentaridade, em outros ganha por momentos de puro lirismo, nos quais o autor expressa pensamentos amadurecidos que refletem sobre aquele período de sua vida e consegue expressá-los em belas palavras e imagens próprias de sua poesia. Ele os resume bem no seguinte trecho:
"A traição, o roubo e a homossexualidade são os assuntos essenciais deste livro. Uma relação existe entre eles, se não sempre aparente, pelo menos penso reconhecer uma espécie de troca vascular entre o meu gosto pela traição, o roubo e meus amores".
A pobreza
"Os pobres são grotescos. O que eles faziam não passava de um reflexo deformado de aventuras sublimes que prosseguiam talvez em ricas mansões, com seres dignos de serem vistos e ouvidos (...) A sua linguagem conservava a contenção dos clássicos. Sabendo-se sombras ou reflexos, deformados e infelizes, eles trabalhavam devotadamente para possuir a discrição infeliz dos gestos e dos sentimentos".
Brigas, convivência forçada e relacionamentos precários em um mundo de miséria são pouco a pouco descortinados por Genet. A cena em que descreve o que lhe provoca a imagem de turistas tirando fotos de seu grupo de mendigos choca. O distanciamento que tem deste mundo pode parecer o de alguém que agora está em outro patamar social, mas este comportamento, complementado por idéias de grandeza, é o de alguém que freqüentou escolas e não teve uma infância miserável. Genet é ambicioso, apesar de por vezes desesperançado. E foi exatamente essa personalidade que permitiu com que pudesse descrever tão bem o que viu com outros olhos.
Os amores
"Cada um dos meus amantes suscita um romance negro. São a elaboração, pois, de um cerimonial erótico, de uma cópula às vezes muito longa, essas aventuras noturnas e perigosas onde me deixo arrastar por sombrios heróis".
Espinha dorsal da literatura de Genet, os relacionamentos amorosos são intensos e repletos de traições, possuindo o corpo como tema central. Para melhor expressá-los, descreve relações sexuais sórdidas e prostituição com prazer. O autor pode amar perdidamente malandros e, ao mesmo tempo, repeli-los. Genet se sente traído de diversas formas, é ora submisso e ora dominante e tem atração pela polícia, criando imagens inusitadas entre dois seres, por natureza, opostos.
O roubo
"A atividade do ladrão é uma sucessão de gestos acanhados mas ardentes. Vindo de um interior calcinado, cada gesto é doloroso, lamentável. É só após o roubo, e graças à literatura, que o ladrão conta o seu gesto. O seu êxito canta em seu corpo um hino que a boca repetirá. O seu fracasso encanta a sua angústia".
Genet encara o roubo como mais um de seus vícios. Para ele, roubar seus Clientes ao se prostituir não é imoral, mas até justo, pois são seres humanos sujos. Essa imoralidade apenas reflete a crise de um continente na década de 30, com o avanço do nazismo e a grande depressão. Alguns amigos ladrões que Genet encontra servem até mesmo de espiões entre países. Um clima de tensão envolve a desesperança retratada.
Literatura marginal?
Para alguns, a literatura de Genet pode ser considerada marginal e resvalar em retratos pitorescos do submundo. Mas o fato é que ela comove mundialmente não somente excluídos, mas sua poesia o tornou um dos mais renomados escritores franceses contemporâneos, ainda que esse título esteja envolto em polêmica. Talvez as chaves para entendê-la, além de sua própria obra, estão na biografia feita pelo escritor americano Edmund White, Genet - Uma biografia , e no ensaio de Jean-Paul Sartre, Saint Génet: ator e mártir, que fez com que Genet não escrevesse por cinco anos.
FONTE: http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2087
Simplesmente genial. Assim como os grandes pensadores de fins do século 19 francês, Genet não era hipócrita, descrevia o mundo real que muitos insistem ainda em pôr debaixo do tapete. Prof. Edson Estevam - Moreno, PE
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