domingo, 15 de março de 2009

A literatura contra o efêmero - UMBERTO ECO (a importância de ler os clássicos nesta época de hipertextos)



Umberto Eco
(foto)

Os grandes livros contribuíram para formar o mundo. A "Divina Comédia", de Dante, por exemplo, foi fundamental para a criação da língua e da nação italianas. Certos personagens e situações literárias oferecem liberdade na interpretação dos textos, outros se mostram imutáveis e nos ensinam a aceitar o destino.

Reza a lenda, e "se non è vera, è ben trovata", que certa vez Stálin perguntou quantas divisões tinha o papa. O que ocorreu nas décadas seguintes provou que, sem dúvida, as divisões são importantes em determinadas situações, mas não são tudo. Existem poderes imateriais cujo peso não se pode medir, mas que ainda assim pesam.

Estamos rodeados de poderes imateriais, que não se restringem aos chamados valores espirituais, como os das doutrinas religiosas. Também é um poder imaterial o das raízes quadradas, cuja rígida lei resiste aos séculos e aos decretos, não só de Stálin, mas do próprio papa. E entre esses poderes eu incluiria também o da tradição literária, isto é, do complexo de textos que a humanidade produziu e produz, não com fins práticos, mas "gratia sui", por amor a si mesma, e que são lidos por prazer, elevação espiritual ou para ampliar os conhecimentos.

É verdade que os objetos literários são imateriais em parte, pois geralmente encarnam em veículos de papel. Mas houve um tempo em que eles encarnavam na voz de quem recordava uma tradição oral, ou entalhados em pedra, e hoje estamos discutindo o futuro dos e-books.

Mas para que serve esse bem imaterial, a literatura? Eu poderia responder, como já fiz noutras vezes, dizendo que ela é um bem que se consuma "gratia sui" e que portanto não serve para nada. Mas uma visão tão crua do prazer literário corre o risco de igualar a literatura ao jogging ou às palavras cruzadas, que, além do mais, também servem para alguma coisa, seja manter o corpo saudável, seja enriquecer o léxico. Do que estou tentando falar é, portanto, da série de funções que a literatura tem na nossa vida individual e social. A literatura mantém a língua em exercício e, sobretudo, a mantém como patrimônio coletivo. A língua, por definição, vai para onde ela quer, nenhum decreto superior, nem político nem acadêmico, pode interromper seu caminho nem desviá-lo para situações que se pretendem ótimas. (...)

Umberto Eco é escritor e semiólogo italiano, autor de, entre outros, "A Ilha do Dia Anterior" e "O Pêndulo de Foucault", ambos da Record. O texto acima é uma versão de um discurso do autor sobre as funções da literatura.

Tradução de Sergio Molina.

Publicado pela Folha de S.Paulo, Caderno "Mais", de 18/2/2001.

FONTE : leia mais em : http://www.geocities.com/Athens/Olympus/3583/eco.htm

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