Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA) – 2152711
O triunfo eleitoral da candidata Dilma Rousseff, membro do que fora o mais desenvolvidomovimento da esquerda latino-americana nos anos 80, e ex-prisioneira política, deve servir para refletir sobre um fato dramático. Após 25 anos de democracia e de 8 anos de governo popular, o Brasil voltou a ter um preso político, que já permaneceu privado de sua liberdade por mais tempo do que cumpriram vários presos políticos da ditadura.
O escritor italiano Cesare Battisti está em território brasileiro (um país autônomo e soberano, cuja constituição defende a autodeterminação dos povos, a prevalência dos direitos humanos e o direito asilo) desde há quase 43 meses. Durante todo esse tempo foi refém das mais reacionárias gangues de inquisidores, da mesma mídia que envidou os mais mirabolantes esforços para desestabilizar os representantes do povo, e dos subservientes de um estado imperial, parcialmente neofascista, eivado pela corrupção, e governado por sociedades secretas, pelo obscurantismo milenar, e pelo crime organizado. Mas os fatos se desenvolvem no Brasil, um país cioso de sua soberania, de possuir um governo plebiscitado numerosas vezes, e de ter elevado o bem-estar social de boa parte dos excluídos, e que, sobretudo, nada tem a ver com os insanos rancores e a sede de sangue do banditismo da Operação Gladio.
Pragmatismo e Princípios
É frequente a afirmação de que o PT, que surgiu no seio do movimento operário, num momento de alça do espírito combativo, passou do projeto de centro-esquerda mais articulado que houve na América do Sul, após a trágica derrota da Unidade Popular Chilena, a uma posição pragmática. Os ativistas de movimentos humanitários e libertários, sempre têm cuidado de que os direitos humanos não sejam politizados, porque a adesão ao poder é o mais forte inimigo de qualquer projeto solidário, mas nossa organização tem reconhecido muitas vezes a excelência do Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, e o peso positivo (porém, ainda insuficiente) das políticas sociais do governo brasileiro para diminuir a vulnerabilidade dos setores mais agredidos da população.
Talvez não seja bom levantar afirmações muito gerais sobre a ideologia de partidos e líderes, porque estamos focando um problema concreto. O PT migrou claramente a posições mais centristas desde há vários décadas, mas tem mantido entre seus quadros várias pessoas que foram significativas dentro da esquerda, entre elas, a atual presidente eleita, o ministro Tarso Genro, os ministros Paulo Vannuchi e Franklin Martins, e numerosos parlamentares que apoiam o governo desde o Senado e a Câmara.
É verdade sim que no próprio PT se alçaram várias vozes contra o asilo a Cesare Battisti, mas, salvo em alguns momentos, mantiveram bastante discrição, e acabaram acatando as decisões históricas e éticas do governo. Já alguns dos membros da base aliada que propuseram a entrega de Cesare à Itália para poder continuar seus negócios com a península, nunca foram significativos, e não terão, de acordo com a chapa vencedora, nenhum papel no novo governo.
Em contraste com isto, quando o presidente Lula decidiu apoiar a correta decisão do ministro Tarso Genro, as bancadas do PT respaldaram essa atitude de maneira clara. Não é de interesse público saber se algumas dessas adesões foram forçadas ou ocasionais. Vale, sim, salientar, que muitos desses parlamentares tiveram ampla e intensa atividade na proteção de nosso novo prisioneiro político.
O senador Eduardo Suplicy, junto com outros senadores de partidos progressistas, como José Nery, Inácio Arruda, Cristóvão Buarque e outros, foi a figura pública mais ativa na causa de Cesare Battisti, em todos os níveis e em todas as oportunidades. No primeiro contato com Battisti, ainda em 2007, foi fundamental o defensor de presos políticos Luiz Eduardo Greenhalgh, e vários outros deputados, incluindo os presidentes da Comissão de Direitos Humanos e minorias nesse período. Além disso, o PDT, um dos partidos, junto com o PSOL, que mais apoiou o refúgio, foi parte da base do PT, junto com outros partidos ativos no caso Battisti, como o PCdoB.
Antigos líderes de PT, atualmente fora da atividade política, também se manifestaram decididamente a favor de Cesare e desenvolveram intensas campanhas pela Internet.
O próprio presidente Lula, apesar de seu estilo discreto e de certo mutismo durante o desenvolvimento do caso, deu a Tarso um apoio eficiente. Tanto ao responder a injuriosa carta do antigo stalinista Giorgio Napolitano, como na manifestação de desconforto face as provocações quase hebdomadárias do presidente do STF (ao ameaçar repetidamente Lula sobre sua suposta obrigação de extraditar Cesare), mostrou de que maneira lhe incomodava essa combinação binacional de linchadores.
A atual presidente eleita, na época chefe da Casa Civil, declarou também que o problema de asilo a Cesare Battisti era uma questão de soberania brasileira. De fato, Dilma Rousseff é mais próxima do projeto inicial da esquerda brasileira que a maior parte dos membros do governo atual. Se analisarmos os membros do governo que se pronunciaram contra ou se omitiram em relação com o direito de asilo, podemos ver que nenhum deles pertence ao projeto inicial do PT e os aliados. Além disso, os partidos de esquerda como o PDT, onde Dilma esteve antes, tem, tanto como o PSOL, uma posição coerente em torno do problema de Battisti.
O atual vice-presidente eleito, Michel Temer, a despeito de ser considerado medianamente conservador, se pronunciou constrangidamente quando o STF autorizou a extradição de Cesare, e qualificou essa medida desta maneira:
“Eu acho que embora o STF tenha feito um indicação, foi uma indicação muito forte, mas insisto que esta questão tem que ser decidida pelo presidente da República” (veja o link)
Desta maneira sutil, Temer reconhece o direito do STF a dar uma indicação (o que está previsto na Constituição), mas também sua maneira “forte” (ou que significa que o deputado entende a atitude do STF como uma imposição prepotente). Além disso, Temer reconheceu o direito do presidente a decidir.
Ou seja, os principais quadros do novo governo eleito, e a principal parte do apóio à presidente eleita, são claramente favoráveis ao refúgio. Isto permite fazer um nítido divisor de águas: (a) De um lado, estão os defensores de Cesare, que coincidem com os apoiadores da democracia e de um governo popular. (b) De outro lado, estão os linchadores de Battisti, que coincidem com os fracassados artesãos do golpe branco e mestres da desestabilização institucional. Há algumas excepções em ambos os lados, mas são poucas. Fernando Gabeira, deputado com um ilibado passado de esquerda, continuou mantendo seu respeito ao direito de asilo, apesar de apoiar nas eleições recentes o candidato da direita. A solidariedade com as causas humanistas se sobrepôs ao “espírito” do partido ao qual apoia. Já o caso inverso, membros do governo que estão contra o refúgio, são casos de oportunismo desprovido de qualquer valor ideológico ou ético, e não pesam no balanço final.
Um caso especial é a candidata Marina Silva, pois, apesar de estar na oposição ao governo atualmente, mantém seu espírito de membro do PT por 30 anos, e se manifestou, de maneira espontânea e corajosa, em categórica defesa do direito de asilo de Battisti.
É importante ter em conta que no singelo discurso da presidente eleita, logo após apuração dos votos, ela fez uma menção a seu passado como lutadora pela democracia e como pessoa que foi vitimada por suas ideias democráticas. Também é importante que tenha dedicado um pensamento aos colegas desaparecidos que foram vítimas do terrorismo de estado.
Inimigos Comuns
Então, a maioria do governo popular e a base de esquerda do governo têm os mesmos inimigos que Cesare Battisti, ou, pelo menos, que a parte mais importante deles.
Exceto o Ministério de Relações Exteriores, que por seu corporativismo pode ser considerado uma espécie de poder independente, os contrários a Battisti foram também contrários ao governo. Itamaraty é um caso especial, porém, mesmo tentando prejudicar o refugiado, manteve uma atitude moderada e acabou acatando (aparentemente a contragosto) a decisão de Genro.
A atitude do então chefe do CONARE e atual ministro de justiça, Luis Paulo Barreto, é confusa, e não pode ser qualificada sem melhores informações. Ele votou contra o refúgio de Cesare, o que era um direito seu, mas significava um erro técnico muito grave num alto funcionário de um organismo de refugiados: o fato de não saber reconhecer quando um refúgio é justo ou não. De qualquer maneira, sua protesta pela intromissão do STF ao serviço da Itália, permite perceber que suas intenções não eram negativas em geral.
Fora desses casos complexos, os que estiveram contra Battisti foram os mesmos que estão militantemente contra o governo e o PT, salvo no caso de um semanário político que parece estar possuído por um ódio visceral contra o escritor.
Os inimigos de Cesare foram: a grande mídia; o lobby militar coordenado pelo ministro de defesa; a cúpula do TSF; os partidos da ultradireita, em particular o chamado “DEM” que votou uma posição interna unânime contra o refúgio; um deputado que representa policiais e torturadores; um deputado notoriamente afetado de psicopatia terminal, que há mais de uma década propôs fuzilar o presidente Fernando Henrique, etc. No PSDB não houve um movimento conjunto contra Cesare, mas o candidato a presidência, uma figura notoriamente confessional e ultrapassada, se pronunciou individualmente contra o refúgio e a favor da extradição. Também, o líder de um esquema de corrupção no partido, autor de um projeto de censura na Internet, chegou aos extremos mais ridículos, como propor a intervenção do Senado nos casos de refúgio.
Finalmente, embora uma parte dos católicos apoiasse Cesare, aqueles que realmente representam a Igreja como instituição no Brasil, se declararam contra. O chefe de Cáritas, o padre Ubaldo, foi um dos votos mortais contra o asilado.
Agora, observemos, todos eles estiveram também contra o PT, contra Lula e/ou contra Dilma. A demonstração é simples:
A grande mídia provocou, atacou, denegriu e caluniou o governo desde o primeiro dia, ridicularizando seus dignitários, e transformando assuntos de corrupção que mereciam uma crítica ponderada, em espetaculares circos romanos. O mesmo fez com a candidata Dilma, criando todo tipo de situações forjadas, falsas e até absurdas, para tentar diminuir seu caudal eleitoral. A baixaria mais inconcebível foi a de tentar assustar a opinião pública com o passado político da candidata, sendo que esta é explícita sobre seu papel de resistente contra a ditadura militar. Um senador do DEM de patética personalidade chegou a perguntar-lhe se não achava errado ter mentido... aos torturadores!!
O lobby militar se manteve quieto durante as eleições, mas duas ou três vezes nos últimos anos diversos oficiais ameaçaram diretamente o presidente com rebeliões, como no caso da demarcação de terras indígenas. O STM, no entanto, não colaborou com a mídia que pretendia prejudicar a candidata Dilma.
Os legisladores da direita obviamente atacaram o governo durante os 8 anos, e esgrimiram todos os tipos de argumentos degradados durante a campanha eleitoral de Dilma.
Sobre o judiciário é desnecessário falar. Eles provocaram Lula desde o primeiro dia de seu governo e, no caso de Cesare Battisti, o presidente e outros ministros chegaram a fazer ameaças concretas e impossíveis, como julgar Lula por crime de responsabilidade.
A Igreja, fiel a sua história, tentou erodir o caudal eleitoral de Dilma Rousseff pronunciando-se contra os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres e da população em geral. Suas intrigas parecem ter tido sucesso, segundo alguns observadores, em empurrar a disputa para o segundo turno.
Em fim, se o governo e Battisti têm os mesmos inimigos, não é apenas porque o governo tenha protegido Cesare. Todos estes elementos já eram inimigos do governo e tentaram o desestabilizar várias vezes, muito antes que Battisti chegasse ao Brasil.
Portanto, embora a defesa do refúgio político mereça por si só, todos os esforços do governo, deve reconhecer-se que, mesmo se Cesare não corresse nenhum risco na Itália, mesmo se sua detenção não fosse uma infâmia maiúscula dos Inquisidores, sua libertação teria também outro valor: ela enfraquece a já baixíssima moral dos inimigos da democracia.
Por que Foi Necessário Esperar??
Segundo as informações mais qualificadas, a libertação de Cesare deverá ocorrer brevemente, mas é necessário que não se demore nem um segundo além do que seja estritamente necessário. O presidente Lula esteve 31 dias preso, e não parece ter boas lembranças disso ou, pelo menos, não recomendaria a outras pessoas. Cesare Battisti tem mais de 3 anos ½ preso, e ele não cometeu nenhum delito no Brasil, pois usar passaporte falso é o que faz qualquer refugiado. Ou acaso alguém pode ir a uma delegacia e dizer: “quero ser refugiado e vou fugir do país; tem um passaporte para mim?”
Sabemos que o presidente já foi muito pressionado, mas o que está em jogo é fundamental: uma vida humana, a instituição do direito de asilo (tomada por assalto), e a credibilidade internacional do Brasil.
Supomos que se Battisti tivesse sido liberado em abril de 2010, quando foi publicado o acórdão, a oposição teria tecido uma história rocambolesca sobre o terrorismo europeu e sua penetração no Brasil. Pensemos que o candidato da oposição e seu vice, acusaram o governo de cumplicidade com as FARC e de fazer Tráfico de Drogas, acusações tão sem sentido que os próprios chefes da direita duvidaram se usar essas mentiras mirabolantes não seria contraproducente.
Com Battisti solto, eles teriam aproveitado dizendo ao povo brasileiro que Battisti, apesar de ser uma pessoa sozinha, podia por em risco a vida e segurança de 190 milhões de brasileiros. Segundo uma estatística da ONU apenas 200.000 adultos brasileiros sabem o que significa “refúgio político”. É possível, então, vender a imagem de que Battisti é a cabeça de uma enorme organização que opera em todo o país.
Mais ainda: a campanha eleitoral mostrou uma miséria moral tão incrível (embora não violenta, foi além, em termos de baixaria, da campanha do Partido Nacional Socialista Alemão, nas eleições de 1933), que não teria sido difícil que, se Battisti tivesse sido liberado antes das eleições, pudesse sofrer algum problema. Um alto dignitário do governo me disse, em junho desse ano: “Não posso ser mais claro com você, mas nós estamos protegendo Battisti ao manter ele preso”. Algum tempo depois, entendi.
Para as direitas neofascista das Américas, que apoiam chacinas no campo, massacres, tortura e faxina étnica, a morte de umas pessoas mais ou menos não significam nada. Se Cesare estivesse solto, nada poderia impedir que, por exemplo, pessoas que participam do comício de um candidato X, sofram um atentado, e o partido de X atribuísse isso ao governo.
Por sinal, isso foi feito várias vezes pelo fascismo espanhol e italiano, e não esqueçamos que a última etapa do fascismo espanhol (a partir de 1948), foi dominada pelo Opus Dei, uma seita que tem fiéis seguidores entre a direita brasileira. Quanto ao fascismo italiano, foi durante os quase 4 anos de prisão de Battisti, o grande xodó da direita brasileira, e também seu indiscutível amo.
Então, entendemos que esperar até agora teve alguma lógica, embora a prisão de Cesare deva ser denunciada, desde o primeiro dia, como injusta e contrária aos direitos humanos. Mas, o perigo já passou. Pelo menos durante 8 anos e quiçá mais, a direita não poderá utilizar o poder federal para nenhuma massacre.
Então, todos esperamos os próximos dias que o presidente Lula libere Cesare.
Nenhum comentário:
Postar um comentário