segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O SUJEITO OCULTO


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Suspeita-se, quase se tem certeza da sua existência. Às vezes a sua sombra é vislumbrada, a sua presença é intuída, deduzida. Mas apenas isso. Ele permanece oculto. Quem investiga não acha; quem procura não encontra.

     Afirmam que é um sonho, uma ilusão, no máximo uma possibilidade muito distante, uma ilação de cérebros desocupados. Os mais radicais dizem que é uma invenção que não deve nem ser considerada. Outros - uma pequena minoria de seres quase incógnitos - preferem não falar no assunto. Quando são abordados a respeito, sacodem a cabeça e atravessam a rua. Ou escondem-se em subterrâneos inacessíveis aos inquiridores.

     Muitas teses foram escritas sobre ele. Temos inúmeros mestres, doutores e pós-doutores que alcançaram as suas graduações ao provar a probabilidade da sua existência.

     Teses cheias de circunlóquios, com verborrágicas introduções sobre o Ser e o Não Ser; o Ente e as particularidades ínfimas do pensamento humano, escritas por pensadores iluminados, mesmo que esquálidos devido às inúmeras noites em claro dedicadas às pesquisas de campo.

     Quando de suas dissertações, limitam-se a explicitar as pontuações existentes em seus trabalhos, com inúmeras pausas significativas entre uma simples vírgula e um ponto final que determina uma oração absoluta. Ou quase. Sempre fica a indagação. Perene, embora equívoca: filosófica. São aplaudidos entusiasticamente, ao final. Embora permaneça a dúvida, a natural dúvida inerente às abstrações perfeitas.

     É claro, há os céticos, que negam totalmente a sua existência e somente acreditam na realidade dos cinco sentidos. Simplesmente negam. Os ainda mais céticos nem negam, riem-se quando alguém lhes fala a respeito. Olham fixamente para o interlocutor, perguntam as horas e depois se afastam, lentamente, certos de suas verdades quietas e perfeitas.

     Não se ocupam em interrogações íntimas. As suas preocupações têm como base o que entendem como algo concreto, iniludível. Detestam interjeições, não se perdem em sofismas e descartam tudo o que for volátil e impreciso. Não escrevem versos nem lêem Nietzsche. Abominam as sombras dos fins de tarde. Escondem de si mesmos as prováveis angústias, se auto-definem como seres sérios e realistas, caminham firme, dirigem corretamente, falam de maneira clara e incontestável, tem a sua vida agendada em horários fixos e pré-determinados, fazem amor por dever físico e moral – jamais pelo simples prazer da sensação -, participam de clubes literários, onde apresentam sonetos alexandrinos escritos em momentos de quase meditação. Quando morrem é de maneira contida, passiva e sóbria.

     Mas também existem os românticos. São aqueles que afirmam sem saber e aceitam sem pesquisar. São propensos à crença quase dionisíaca, devido ao seu temperamento orgíaco e exaltado. Geralmente procuram o apoio dos que preferem a vida claustral e meditativa e não são dados a saltos de imaginação, mas buscam as inatas ideias que os levam a crer sem paixão.

     Estes são os organizadores, os que fazem da crença um culto e do culto uma verdade. Para eles, não há qualquer dúvida a respeito da existência do Sujeito Oculto, mas dedicam-se a prová-la, mesmo assim. Certos da verdade que defendem, arregimentam prosélitos através de palestras e conferências onde provam a inexistência do Nada e, portanto, a mais que provável certeza daquele que não ousam citar o nome.

     Sacralizam-no e orgulham-se disso, porque o tem como seu e acreditam na perfeição daquilo ou daquele que julgam possuir. São como amantes devotados, que tornam o ser amado objeto de adoração.

     Com o passar do tempo, um grupo dentre eles evoluiu em suas pesquisas. Aqueles que, mesmo crendo, desejaram a confirmação da sua crença através da lógica, do raciocínio implacável.

     Isso provocou uma divisão que persiste até hoje.

     De um lado, os crentes, que afirmam que não é necessário mais que a fé no que passaram a chamar de intangível e absoluto. De outro lado, os que se autodenominaram amantes da sabedoria e que consideram o absoluto não tão absoluto assim, mas indeterminado e passível de ser descoberto através de suas diversas virtudes ou características próprias.

     Os primeiros formaram igrejas, onde recebem todos aqueles que apenas aceitam a não existência do Nada - o que consideram como obviedade da quieta presença do S.O. Entendem que essa presença pode operar milagres, mesmo sendo quieta, e alguns afirmam que tem a certeza disso: vidas foram transformadas, pessoas se declararam curadas de males que se eternizavam, lares foram recompostos – apenas pela fé nos poderes do S. O. Passaram a receber dízimos dos acólitos, a realizar liturgias onde o ponto máximo é o sibilar conjunto das duas letras sagradas.

     Os outros, formados pelos lógicos, que pesquisam a razão de ser do Ser que poderá ou não ser S. O ou S. I, ao se afastarem dos românticos ou simplesmente crentes se agregaram em sociedades muito discretas – ou ilegalmente secretas, como preferem dizer os seus detratores – que somente podem ser frequentadas por membros escolhidos que prestam juramentos recíprocos de total silêncio sobre os mistérios que descobriram a respeito do Oculto ou Indeterminado. Silêncio que não poderá ser quebrado sob pena de morte em vida.

     Organizaram-se em graus, que correspondem à sua evolução no conhecimento secreto, sendo que os graus mais altos, segundo se afirma entre os apenas neófitos, são aqueles em que a sabedoria do S. I. (ou S. O.) é aspergida sobre a alma e o intelecto dos Ascensionados (pois assim são chamados os Mestres acima dos Mestres), dando-lhes incríveis poderes sobre a vida e a morte e lhes revelando mistérios que não podem sequer ser murmurados.

     Certa noite, eu estava, descuidadamente, pensando nessas veleidades humanas e na arrogância daqueles que desejam ser mais que os outros e no fanatismo daqueles que se dizem donos de extremada fé... Pouco antes de dormir, pouco antes de ler alguma coisa antes de dormir, pouco antes de comer um docinho antes de dormir – porque a vida também é feita de docinhos, beijinhos e cafunés e eventuais outros prazeres tão simples – quando percebi a cortina do meu quarto se mexer. Pensei que fosse o meu gato, que adora subir nas cortinas somente para que eu o tire de lá. Mas não era. Era um roçagar leve das cortinas (roçagar é ótimo, não?) que interrompeu o meu pensamento.

     Olhei melhor e percebi um quase vulto. Quando ia me levantar, assustado, uma voz disse: “Não vos assusteis!”. Uma voz entre lúgubre e adocicada. Com a minha surpresa, o vulto tornou-se mais claro, destacando-se das cortinas e repetiu: “Não vos assusteis, porque estou aqui para dirimir as vossas dúvidas!”

- E quem é você? - perguntei.

- Eu sou aquele que é! – disse, enfaticamente, a voz.

- Mas eu já li essa frase em Alexandre Dumas, acho que em “Memórias de Um Médico” – retruquei.

- Alexandre Dumas mal sabia o que escrevia!

- Não vem que não tem!, seja você quem for! Eu gosto muito de Alexandre Dumas, Michel Zevaco e todo o tipo de folhetim antigo. Mesmo você sendo aquele que é não precisa ofender!

- Acalmai-vos!

- Está bem. Estou quase calmo, mas um pouco nervoso, porque não é toda noite que eu recebo o Ser dos Seres, assim, de repente... E que dúvidas você veio dirimir?

- As suas. Perguntai e eu responderei.

- Você está me parecendo mais uma espécie de Gênio da Lâmpada...

- Não sejais sarcástico! Estou apenas lhe fazendo um favor!

- Um favor? Não estou entendendo...

- Você estava me incomodando. Eu emanava vibrações em minha perpétua eternidade – ou eternidade perpétua, se preferirdes – quando os seus pensamentos de fim de noite começaram a interferir no meu contato com outros seres iluminados, embora inferiores. Por isso, resolvi acalmá-lo com a revelação de pequenas verdades para o seu pequeno e inquieto cérebro.

- Ah!, bom... Então eu vou perguntar: o que é a Verdade?

- Isso eu não posso responder e você não se chama Pôncio Pilatos!

- Mas cara...

- Por favor, chame-me apenas de Aquele Que É.

- Está bem, Aquele Que É, se você não pode responder o que é a Verdade porque está aqui?

- Eu posso dizer o que é a Verdade, mas não para você, que é apenas um mero humano.

- Mas se eu sou apenas um mero humano, porque se abalou a vir até aqui para “dirimir as minhas dúvidas”, conforme você disse?

- Eu não vim até aqui. Estou em todos os lugares.

- Isso é bem cômodo.

- Natural para a minha natureza. Agora faça mais uma pergunta.

- Quantas perguntas eu ainda posso fazer?

- Três perguntas. E você ainda tem mais duas.

- Eu disse que você me parecia o Gênio da Lâmpada! Sempre três perguntas...

- A história do Gênio da Lâmpada é uma metáfora sobre mim. Aladim era parecido com você. Vivia duvidando da minha existência e eu apareci para ele, na forma de gênio, para provar as virtudes metafísicas do meu poder genial. Tudo é três no Universo: criação, conservação e dissolução. Por isto, você tem direito a somente três perguntas. Faça a segunda.

- Está bem, Aquele Que É. Você parece ser um bom filósofo. Diga-me: por que você se autodenomina “Eu Sou Aquele Que É”?

- Isso eu também não posso responder. É um mistério arcano arcaníssimo, que somente os muito sábios poderão vislumbrar!

- Mas me parece óbvia a resposta, Aquele Que é. Você é Aquele Que É porque não poderia ser outra coisa senão aquele que é. Da mesma forma que eu sou o que sou porque não poderia ser outro, além do que sou.

- Deixe de sofismas, mero mortal! Faça a terceira e última pergunta, porque já está ficando tarde.

- Eu pensava que para você não houvesse tempo...

- Já está ficando tarde no seu tempo. E não tente me confundir!

- Oquêi! Não precisa ficar bravo... Relaxa... Aí vai: você é o Sujeito Oculto ou o Sujeito Indeterminado?

- Isso eu também não posso responder. Essa verdade está reservada apenas àqueles que buscam persistentemente a Verdade. O que importa é que Eu Sou O Que Sou, ou, se preferir, Eu Sou Aquele Que É. Alguns me chamam apenas de “Eu Sou” – um termo incompleto que eu relevo, porque eles me amam sem indagações, apenas pelo que eu sou... Err... Perdão pela redundância.

- Não se preocupe com as palavras, Aquele Que É, porque às vezes elas só atrapalham.

- Você o disse! Isto é, você disse porque eu pensei através do seu pensamento.

- Um momento, Aquele Que É, e o livre-arbítrio?

- O que mais me incomoda é esse livre-arbítrio. Desde a época de Adão...

- Mas você o castigou feio, não foi? Isso de colocar um querubim guardando a Árvore da Vida, depois que ele comeu do fruto da Árvore do Bem e do Mal, me pareceu um ato muito egoísta. Por que só você quer ser imortal?

- Não posso responder mais nenhuma pergunta, mortal irritante. Sinto muito.

- Meu caro Aquele Que É, você tem toda a razão, já está ficando tarde no meu tempo e é hora de dormir. Acredite, você conseguiu dirimir todas as minhas dúvidas. Não se preocupe mais com isso.

- Como assim? Você está me despedindo?!

- Em absoluto, Aquele Que É. Como poderia despedi-lo se você está em toda a parte? Fique e acomode-se, se quiser. Mas agora é o meu momento de ler um pouco antes de dormir. Você não se incomoda com isso, não é?

- Bem...

     Naquele momento, a sua voz parecia mais lenta e desarticulada. Ele começou a sumir ou a desfazer-se ou, simplesmente, a deixar de estar ali na aparência – embora eu o percebesse menos oculto e sim implícito, desinencial.

     Mas tinha conseguido acabar com as minhas dúvidas. Agora eu sabia que Aquele Que é realmente É. Que grande honra a sua visita! E isso que eu não pertenço nem à Igreja que reverencia o S. O. nem à ultra secreta sociedade que busca as verdades eternas do S.I.

     Era hora de dormir. Apaguei a luz, mas estava sem sono. Acendi a luz, de novo, e peguei um folhetim do Michel Zevaco. Agora eu poderia divagar pelos universos da imaginação. Pena que o Aquele Que É não soubesse disso. Ou saberia?

Fausto Brignol.

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