segunda-feira, 24 de maio de 2010

A Resistência contra a Destruição do PNDH-3


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Alinhar ao centro



A Resistência contra a Destruição do PNDH-3
Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA) – 2152711
Apesar da humildade do autor para avaliar sua produção, penso que o artigo de Celso Lungaretti (v) captura de maneira rigorosa, embora muito sintética, a encruzilhada a que chegou o Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, e salienta a única possibilidade: continuar a luta. Programar essa luta nos detalhes pode ser complicado, mas o esquema geral é simples: propaganda através da mídia alternativa, esclarecimento de boca em boca, resistência pacífica, agitação da opinião pública, colaboração com os setores progressistas da política, solidariedade com os movimentos sociais, e denúncia internacional.
Se quisermos delinear uma estratégia de defesa contra este retrocesso, torna-se necessário analisar as motivações do esquisito ciclo deste programa: ele foi rapidamente editado e, de maneira muito mais célere, começou a ser mutilado. Um estudo profundo vai além meus conhecimentos, mas quero apenas observar alguns aspectos gerais.
O PNDH e a Política Internacional
A contradição mais gritante no Brasil é a que existe entre o caráter avançado de algumas leis, incluída a Constituição Federal, e o enorme atraso da vida social, que, para mais da metade da população, oscila entre o escravismo e a subsistência forçada. A realidade brasileira é a que melhor realiza o oposto aos objetivos da ciência social do século 19: integrar a teoria e a prática. Pelo contrário, as instituições brasileiras se destacam pela dissociação entre ambas.
O que aqui se chama de “democracia” é uma permanente negociação entre os lobbies das elites por privilégios de grupo. Enquanto isso, a enorme maioria da sociedade permanece invisível, alijada da possibilidade de expressar-se pela mídia, de ser tratada humanamente pelo judiciário, de receber educação de qualidade, de votar conscientemente, sem ter o cérebro “lavado”, e de quase qualquer outro direito. Se Engels tivesse vivido no Brasil em 1965 e não na Inglaterra de 1845, teria escrito: A Situação da Classe Excluída no Brasil, em vez do famoso “Die Lage”.
O Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos encaixa nesse esquema de “teoria sem prática”, de maneira análoga à Constituição Federal. Na teoria, esta declara a prevalência dos DH e da autodeterminação dos povos, salienta a função social da propriedade privada, hasteia o direito de asilo, objetiva um imposto às grandes fortunas, etc.. Na prática cotidiana da sociedade brasileira, aplica-se tortura de maneira sistemática, pratica-se a superexploração, beneficia-se a acumulação predatória de capital, tolera-se a sonegação gigantesca de impostos das empresas, e o país ocupa um recatado 134º lugar entre os países que oferecem asilo.
No que se refere a seu respeito pela autodeterminação dos povos, chantageia-se os países menores, como a Bolívia e o Equador, quando pretendem livrar-se da ocupação econômica brasileira, e colabora-se em missões de paz tão “pacíficas” (valha o pleonasmo) como a MINUSTAH, que não apenas cobrou dúzias de mortes e estupros como também produziu o suicídio de um de seus chefes, um fato inédito na história do país.
Isto não significa que o PNDH-3 tenha sido produto da hipocrisia, como tampouco o foi a Constituição. Nos projetos políticos se misturam interesses e sentimentos muito diversos e seria injusto descartar que uma parte deles responda a preocupações autênticas. O que mais surpreende não é a proposta do ministro Paulo Vannuchi, cuja sinceridade é óbvia; o que chama a atenção é o carinho com que foi acolhida pelo governo, apesar de ser um dos planos mais avançados já conhecidos em DH. Claro que, logo em seguida, foram suficientes o toc-toc das botas e o atrito das lâminas das rapieras, para que esse carinho se tornasse um sorriso amarelado. “Não é bem assim, companheiros. Isto não é uma caçada de bruxas”.
Por um lado, influiu a força de certos setores da Comunidade de Direitos Humanos (CDH), que, apesar de suas dimensões insuficientes para o tamanho dos problemas brasileiros e suas divisões internas, possui vanguardas altamente esclarecidas. Exemplos proeminentes são o Grupo Tortura Nunca Mais, no coletivo de Juízes para a Democracia, e vários movimentos de gênero, de igualdade racial, e ativas minorias de partidos políticos. Entretanto, talvez o poder de ação da CDH não seria suficiente sem a existência de certa preocupação internacional nas comunidades fraternas dos países democráticos, especialmente da Europa.
O velho objetivo das elites brasileiras de elevar o país a potência mundial, mantido atualmente com grande energia, exige mostrar uma imagem de sociedade civilizada. É verdade que a China, recordista em violações dos DH, é membro permanente do CS da ONU, o grande sonho de consumo de Itamaraty. Mas seu poder foi sendo desenvolvido desde a Guerra Fria, e contou com o apóio de Washington durante a era Kissinger, para promover o colapso da URSS. Além disso, dois fatores fundamentais foram a enorme população e, sobretudo, a possessão de um arsenal nuclear. [É por isso que o cômico (ou trágico?) empresário de sweatshops que atua como doublé de vice-presidente propõe a construção da bomba atômica brasileira (sic), como entusiastamente o divulgou o Exército. Mas isto rende para vários outros artigos. Vide.]
Ainda que deva-se reconhecer o pragmatismo e a falta de escrúpulos que permeia as relações internacionais (mesmo entre países realmente democráticos) não deve esquecer-se que, por baixo do cinismo dos governos, há milhões de habitantes que, nas regiões cultural e socialmente mais desenvolvidas do mundo, possuem um enorme poder de pressão. Isto pode ser comprovado cabalmente por vários fenômenos, como o pacifismo, a defesa da ecologia, e a luta pelos DH em sentido estrito.
Quanto ao pacifismo, vale o exemplo dos boicotes europeus quando a coalizão liderada pelos Estados Unidos atacou o Iraque em 2003. Na Alemanha, a popular Coca-Cola sofreu grandes perdas e alguns locais do McDonald’s deveram fechar. A defesa da ecologia está muito bem representada pela bravura de organizações como Greenpeace, que enfrentam os barcos baleeiros pilotando suas frágeis lanchas. Por sinal, um assunto sobre o qual penso faz tempo, e que será motivo de uma análise detalhada dentro de alguns meses, é a necessidade de que os grupos de DH possuam comandos de ação como têm os pacifistas e os defensores da ecologia.
Mas, a influência da CDH a escala mundial pode perceber-se em alguns tratados que foram assinados pela quase totalidade da comunidade mundial e, embora menos de um quinto dela os cumpram, o fato de ter assinado já é um toque a atenção para a consciência mundial e uma reserva de ação para o futuro. Vejamos dois exemplos:
A Convenção pelos Direitos das Crianças (CDC) foi aceita por todos os países (exceto dois) das Nações Unidas (Vide). [Os dois que não aderiram são a Somália, por sua rara condição de estado sem governo, e os Estados Unidos, por pressão dos lobbies religiosos. Com efeito, a CDC protege às crianças contra os abusos de seus pais, e todo monoteísmo defende radicalmente à família, uma vez que é a instituição mais adequada para transmitir valores opressivos e obscurantistas à crianças. Além disso, a Convenção defende o direito de escolher suas próprias crenças.]
É evidente que para muitos desses países a adesão é pura ficção. Ninguém imagina que estados onde se condenam crianças a morte, como o Irão, ou os numerosos países onde existe trabalho infantil tenham qualquer interesse na CDC. Justamente por isso, a aprovação da Convenção mostra a força que possuem os ativistas de DH.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres de 18/09/1979 (CEDAW) foi assinada por 187 países, incluído o Brasil. Ambos os exemplos e muitos outros mostram que, mesmo os estados que não respeitam direitos, sentem-se “coagidos” a assinar as convenções e protocolos para preservar sua imagem frente à parte mais avançada de sua população e da comunidade internacional.
Portanto, o funcionamento do PNDH-3 parece depender de três fatores.
(1) A vocação humanitária de alguns políticos, embora não deva confundir-se isto com a pertinência às Comissões Parlamentares de DH, ou a organismos executivos instalados pelos governos para levantar cortinas de fumaça.
(Para o poder legislativo, a Comissão dos DH é mais um órgão qualquer. Só para dar uma ideia: a atual comissão de DH do senado com 19 membros têm apenas 4 ativistas de DH. Os outros membros passam por todo o espectro da política: pessoas indiferentes, alguns burocratas bem intencionados, e manipuladores, que usam os DH como propaganda. Aliás, algo como um 25% está formado por verdadeiros inimigos dos DH, como os membros do lobby evangélico e ruralistas, cuja presença na Comissão serve para brecar as iniciativas de outros membros.)
(2) A pressão da CDH.
(3) A necessidade de preservar a imagem internacional.
Com uma visão destes três componentes, devemos calcular o esquema de uma luta contra o despudorado esquartejamento do PNDH-3 para agradar senhores feudais, imperadores da mídia, clero e milícia (perdão..., quis dizer “forças armadas”).
Para fixar idéias, vejamos ainda como atuam os inimigos dos DH no Brasil, e como funciona sua logística de combate.
O Combate contra os Direitos Humanos
A crítica do sistema prisional e repressivo, e a cumplicidade jurídica que o torna possível, é um tópico sobre o qual o presidente Lula se manifestou várias vezes, por exemplo:
1. Quando era oposição, na primeira campanha eleitoral, na crítica à sede de sangue da polícia e da direita paulista.
2. Depois de eleito, na denúncia da “caixa preta” do judiciário.
3. A posição contrária à penalização da pobreza e dos menores, em novembro de 2003, quando, durante uma passeata de corte neofascista, um líder de uma comunidade religiosa defendeu a pena de morte. Esta atitude do presidente, porém, foi ofuscada pela subserviência do MJ com os pais de uma das vítimas, enquanto dúzias de jovens pobres assassinados não mereciam nenhuma atenção. Entretanto, valeu a intenção do chefe do estado.
4. Durante o massacre de membros do PCC, em março de 2006, organizado pela secretaria de segurança de São Paulo, pela franqueza de mostrar que a violência marginal não existiria se os jovens infratores tivessem tido mais educação e menos repressão.
Essa manifestação foi corajosa, porque implicava colocar-se na mira da classe média branca estadual, europeizada e pró-fascista, e do grupo de psicopatas terminais que secundavam o truculento secretário de segurança.
5. Recentemente, pelo respaldo dado a Tarso Genro no caso Battisti e a séria resposta ao esclerótico ex-stalinista que atua como decorativo presidente da Itália.
Parece assim que, intimamente, o presidente tivesse simpatia pelos PNDH, apesar de seu pragmatismo e sua política “de resultados”. Algumas reflexões espontâneas deixaram entrever que não dissentia pessoalmente do espírito geral do plano, embora decidisse subordiná-lo ao mercado de influências que caracteriza nossa “democracia”. Com esta observação, não pretendo justificar o fato notório de que o presidente procura acalmar a ira das casernas, em vez de fazer sentir a autoridade política que, se estivéssemos realmente num país democrático, teria.
Ora, o 1% da população que decide a seu prazer sobre os destinos do país, e o 5% que colabora com ela (não me refiro a um 40% que a vota por falta de esclarecimento) se juramentou numa santa cruzada contra o PNDH-3. O estilo deste pogrom não é menos paranoico que o daqueles que viam o fantasma do comunismo na Europa de 1848. Afinal, essas corporações formam, em seu conjunto, o que o economista Paul Samuelson (1915-2009) batizou como fascismo de mercado.
Essa política (que difere do fascismo tradicional em sua renúncia ao populismo e na substituição dos caudilhos, Duci ou Führen pelos lobbies) não se contenta com satisfazer seu principal objetivo: a obtenção de todo o máximo lucro. Ela vai além, e pretende vencer onde até o Terceiro Reich fracassou: na instalação de uma uniformidade totalitária, onde nem o pensamento nem a vida privada escapem do controle.
O retrocesso do PNDH-3 nos itens relativos a audiências públicas no caso de repressão contra movimentos sociais é uma clara exigência dos latifundiários, mas, estes têm interesses financeiros muito concretos que colocam, obviamente, muito acima da vida humana. É claro que até nos países capitalistas onde domina completamente a direita, como nos Estados Unidos e no México, o latifúndio se tornou anacrônico há décadas. Ou seja, os ruralistas brasileiros constituem um resíduo de um mundo escravocrata. Mas, ainda assim, pode “justificar-se” a eliminação das audiências públicas porque, por trás das chacinas de camponeses, há interesses monetários muito concretos.
Entretanto, qual é o proveito que as corporações e máfias tiram de estragar gratuitamente a vida privada dos setores mais carentes, mesmo daqueles que não interferem em absoluto na política social?
Estou fazendo referência a um combate dos DH totalmente gratuito, que consiste apenas em produzir a desgraça alheia sem tirar nenhum proveito próprio. De fato, o PNDH-3 está sendo deturpado também para impedir decisões individuais que não afetam o patrimônio alheio, nem o poder real das elites: nesse caso, o único objetivo é castigar as vítimas por se manifestar contra crenças que seus defensores (os membros do trevoso mundo corporativo/eclesial/militar) consideram sagradas. Os pontos eliminados do plano ilustram bem esta crueldade exacerbada e desnecessária.
Ninguém se beneficia com a morte de milhares de mulheres por abortos clandestinos, que devem ser realizados por amadores, “curiosas” e falsos médicos, por causa de que o estado, vassalo de mitos e crendices, se recusa a tratar o problema como questão de saúde pública. Pretende-se, pelas formas mais cruéis de omissão, que as jovens se condenem à castidade, ou que criem filhos na miséria e a desgraça para louvor da divindade e para oferecer carne de canhão nas futuras invasões que se realizam para “procurar a paz”. Muitas mulheres carentes podem ser envolvidas em superstições (como toda a sociedade marginada que é presa fácil de padres e pastores), mas, mesmo assim, e embora obedeçam aos rituais que lhes impõe a tradição, não sempre estão dispostas a provocar a desgraça própria e a dos seus potencias filhos.
As violações dos DH pode ser uma questão de lucro, quando se trata de negócios que aumentam a riqueza dos violadores: plantação de produtos modificados, fabricação e venda de armas (legais ou não), expulsão de populações completas, etc. Mas a prática da tortura, a perseguição racial ou a discriminação contra gays, não estão guiadas pelo lucro. Nestes casos, o combate aos DH está norteado pelo sadismo, que faz parte essencial da psicologia social das elites. Este tema não foi tratado especificamente pelo marxismo original, mas encontrou ampla acolhida no humanismo marxista do século 20.
Outro ponto vinculado à loucura persecutória das corporações é a pretensão de apagar da história os crimes cometidos contra a resistência democrática contra a ditadura. Para sermos justos, parece existir uma divisão dentro da Igreja quanto ao esquecimento dos crimes da ditadura, embora todos os setores dela coincidam com os militares na exposição dos símbolos que mostram o poder de cada corporação. Com efeito, assim com a Igreja rejeita que o grande exibicionismo de crucifixos seja temperado com um pouco de modéstia cristã, os militares não querem que os nomes de seus tristes próceres do genocídio e a tortura percam sua visibilidade, nem que se indiquem os locais públicos em que a ditadura praticava seus crimes.
Por sinal, até onde eu sei, Brasil é o único país que se diz democrático, onde criminosos genocidas dão seu nome a monumentos, edifícios, logradouros e até bairros completos. Isto aconteceu também na Argentina e até de maneira mais agressiva, durante 20 anos de democracias colaboracionistas que tinham medo dos militares, más já há quase uma década que a situação foi mudada. Sejamos sinceros:
Você acharia natural se, passeando por Berlim, encontrasse uma rua chamada Ernst Kaltenbrunner, com uma placa que diga: “Grande cidadão: 16/10/1903-04/10/1945”? Ou, se você prefere a Itália, sua visão do Circo Máximo fosse interceptada por uma estátua equestre de Benito Mussolini, levando Ante Pavelic na garupa? Ou ainda defrontar-se, em pleno Centre Pompidou, com um grande memorial destinado ao Marechal Petain?
Até na Espanha, o governo socialista, que governa com muita dificuldade sobre uma sociedade com quase 30% de fascistas, derrubou a última estátua do criminoso Francisco Franco há alguns anos.
Repressão Total e Violência Defensiva
Em qualquer lugar do mundo, a violação dos DH prepara o clima para a revolta social e o caos geral, pois nenhuma crendice patriótica ou mística pode conseguir que as pessoas renunciem a esses direitos. Embora os DH estejam condicionados socialmente (por exemplo, ninguém exigia o direito de receber vacinas no século 16), eles têm uma base psíquica e biológica que não depende do lugar e do tempo. Às vezes, parece que grandes massas se unem para a violação dos DH, como a Croácia da Segunda Guerra Mundial, ou a Sérvia, que semeou o terror em Kosovo. Mas, sempre são os direitos dos outros. Ninguém gosta que sejam violados os próprios.
Nem a nacionalidade, nem a fé, nem qualquer outro traço social tornam um ser vivo insensível à tortura, salvo em casos patológicos como o masoquismo, e só nos quadros doentios mais extremos e para torturas “moderadas”. Portanto, não é possível esperar que uma sociedade esteja disposta a aceitar que seus DH sejam violados. A única possibilidade dos que comandam uma sociedade brutalizada é aplicar uma repressão tal que os cidadãos prefiram não exigir seus direitos antes de ser vítimas da polícia ou do exército. Mas até a repressão possui limitações.
A forma legítima e produtiva de confrontar a violação dos DH é a ação organizada, ativa, que pode passar por vários registros. Não quero entrar fundo neste assunto, algo polêmico, mas existe grande discussão sobre se a violência é ou não um método legítimo para defender os DH. Salvo no caso de pacifismo radical, o consenso dominante é a aceitação de violência defensiva, desde que:
1. Seja imprescindível, e não exista nenhum outro caminho, nem mesmo a abdicação de soberania, que permite evitar a violação desses direitos.
2. Seja a mínima possível para a meta prevista.
3. Não seja ela também violadora dos DH alheios (incluídos os dos próprios carrascos).
4. Não produza nenhuma vítima inocente.
Este último ponto é fundamental. Para um exército, a morte de inocentes é apenas uma trivialidade, como a perda de algumas poucas armas ou vitualhas. Essa banalidade da morte de inocentes tem, porém, três grados de perversidade, em ordem decrescente:
a. Máxima. Faz parte de um projeto deliberado, para assustar o inimigo, produzir terror, ou como satisfação sádica. Embora isto possa parecer exageradamente perverso, é muito frequente em tropas de ocupação.
Exemplos: A maioria dos exércitos da América Latina e da África; as Forças Armadas dos países islâmicos, Estados Unidos, China e algumas outras da Ásia, etc.; também, a totalidade das forças terroristas, embora estas não constituam exércitos no sentido tradicional.
b. Média. É produto da negligência e do desinteresse por preservar essas vidas. Exemplos: As coalizões invasoras em Iraque e Afeganistão, as forças de MINUSTAH, etc.
c. “Pequena”, para os padrões militaristas. É resultado da decisão de algumas forças armadas de “arriscar-se” a matar algum inocente, porém tomando todas as precauções para minimizar o dano. Exemplos: exércitos de países muito avançados socialmente, ou seja, uma minoria cujos membros se contam com os dedos.
A violência defensiva dos DH não pode aceitar nem mesmo as vítimas inocentes do caso (c), que na gíria militar se chamam “danos colaterais”, considerados como se fossem perdas materiais, porém menos valiosas que combustível e munição.
Para um grupo que utilize violência defensiva, se uma ação possui a mínima probabilidade de produzir dano (mesmo não letal) a um inocente, deve ser descartada, ainda que a segurança dos defensores fique em risco.
Aliás, quando a morte inocente se produz a despeito das precauções adotadas, uma força defensiva deve retirar-se da luta, sem direito a argumentar “engano”. Grupos coerentes com os Direitos Humanos não podem assimilar-se a seus carrascos, nem mesmo em seus comportamentos menos cruéis. A assimilação entre forças armadas regulares e seus inimigos é uma degradação que conduz à perda de prestígio da esquerda, o que aconteceu inclusive com figuras famosas.
Entretanto, há alguns exemplos magistrais de grande respeito aos DH em setores insurgentes da sociedade. Uma amostra desta ética foi dada pelo grupo revolucionário ERP da Argentina. [Não confundir com o mais conhecido, Montoneros, que se formou sob princípios análogos aos dos militares, e até chegou a ter alianças com o que eles chamavam “militares democráticos”.]
Em agosto de 1974, o ERP executou um chefe de tortura e genocídio numa província do Noroeste argentino, numa tentativa, talvez afobada, de diminuir a intensidade do extermínio e tormentos aplicados a camponeses. Por causa da mesma precipitação, o comando acabou matando, não apenas o genocida, mas também sua acompanhante civil. O ERP não usou o pretexto dos “danos colaterais”. Seus dirigentes locais se sumiram na maior depressão e deixaram de atuar na região. Um dos participantes no ato cometeu suicídio apenas um dia após, deixando uma nota onde se penitenciava pela morte da pessoa inocente.
Defesa Pacífica
Entretanto, algumas ONGs de DH, mesmo compreendendo a necessidade desta defesa, concedem uma proteção mais intensa aos ativistas perseguidos pelo sistema, que não usaram violência no passado nem advogaram por sua utilização. Estas vítimas são chamadas prisioneiros de consciência, às quais algumas organizações adotam como protegidos definitivos, e defendem até conseguir sua liberdade. Isso não impede que essas ONGs defendam ativistas que usaram violência justificada; estes são considerados prisioneiros políticos, mas não de consciência.
Quando não é possível reclamar os DH pela via jurídica, ou quando, como no atual caso do Brasil, o judiciário é capaz de tornar-se cúmplice dos violadores, o caminho mais legítimo é a resistência pacífica com desobediência civil, agitação da opinião pública, apelos à classe política e denúncias internacionais. Quando isto não é possível porque o sistema responde com repressão, alguns grupos começam a executar ações armadas contra o poder repressivo.
É importante esgotar todas as medidas para que isto não aconteça. A violência não é uma opção “natural”, mesmo que não seja utilizada como “esporte” ou “lazer”, como fazem os profissionais da guerra. Ainda quando é utilizada como último método para não ser preso, torturado ou assassinado, ou proteger outras pessoas que podem sofrer esses abusos, seu resultado nunca é equivalente a uma ação pacífica. Sempre deixará feridas abertas. Portanto, o recurso à violência defensiva deve ser entendido como o último possível.
Esta avaliação da violência é importante em qualquer política de DH, e estabelece uma divisão totalmente nítida entre as tradições da esquerda (o que não inclui atuais grupos nacionalistas ou anti-imperialistas que se consideram “de esquerda”), e qualquer forma de militarismo tradicional, mesmo que se refira a exércitos democráticos, progressistas, etc. O gosto pela violência ou seu uso para “impor a paz” é uma contradição, cuja melhor evidência é a psicologia individual dos que o praticam. Há vários estudos a escala internacional (muitos deles fortemente censurados) sobre as patologias comuns entre militares e jagunços.
A aceitação da violência defensiva é uma tendência de vários grupos e ONGs de ativistas, mas não de todas. Também há uma posição mais principista que entende que entre o uso de violência, mesmo defensiva, e o risco de destruição, a comunidade deve se arriscar a ser destruída. Este foi o ponto de vista universalmente difundido pelo ativista indiano Mahatma Gandhi. Pessoalmente, acho este ponto do mais alto nível ético, embora nem sempre possa ser usado. (Por exemplo, os resistentes antinazistas do mundo todo discordaram com Gandhi no sentido de que o método pacífico usado contra o imperialismo inglês pudesse ser usado contra o fascismo.)
As Perspectivas Futuras
O maior aliado dos DH é a educação. É fácil ver a correlação inversa entre índices de atos de tortura, misticismo e assassinatos policiais, com os coeficientes de educação real dos países, incluindo a percepção dos próprios deveres e direitos com a comunidade. Isto é quase uma lei universal. Como sabemos, nos fenômenos sociais atuam muitas variáveis não previsíveis, pelo qual não existem leis absolutamente deterministas como na natureza, mas a relação positiva entre DH e educação está muito próxima de uma lei.
Esta observação pode ainda ser robustecida por alguns exemplos que tornam falsa sua negação. Por exemplo, mesmo nos países ricos com nível baixo ou distorcido de educação, os abusos dos DH são notórios. É claro que a miséria agrava drasticamente a insegurança humanitária, mas a recíproca não é verdadeira. Países ricos, como os Estados Unidos, porém com educação tendenciosa, teocrática e patrioteira, abundam em violações aos DH, incluindo as legalmente aceitas, como a pena de morte. [É claro que, para ver esta incidência da educação nos DH, supomos que os demais fatores (sociais, econômicos, etc.) se consideram constantes.]
Por esse motivo, e não apenas para poupar dinheiro, as elites tentam manter o povo sumido na mais profunda ignorância. Um caso típico é o do Estado de São Paulo, que, apesar de ser o mais rico do país, apareceu nas estatísticas como aquele que tinha uma escola mais deficiente. Embora o governo estadual tentou justificar isso com uma afirmação racista (o nível seria ruim porque o estado tem muitos estudantes nordestinos), ficou claro que o processo de embrutecimento dos educandos é uma ação consciente. Não por acaso esse estado sempre foi dominado pelo chamado “fascismo de mercado”.
A situação não é fácil de reverter, porque não temos uma maneira rápida de educar e conscientizar milhões de pessoas que a grande mídia, o ensino politizado e a moral oficial afundam cada vez mais na intolerância, o racismo e a marginalidade. Tampouco podemos proteger, de maneira imediata, àqueles que são vítimas destas mazelas, porque a mesma sociedade que os margina lhes impede protagonizar sua própria vida.
O exemplo mais típico disto é a aberrante oposição à Lei de Igualdade Racial, embrulhada em sofismas grosseiros, que as dúzias de milhões de pessoas que não dominam a gíria jurídica não conseguem entender. Embora haja interesses econômicos concretos no racismo contra a política de Ação Afirmativa de cotas (como os lucros das escolas e dos cursinhos, a parcialidade nas bolsas públicas, o nepotismo acadêmico, etc.), também há um motivo ideológico: deve evitar-se que grupos agora marginados possam sair da marginação através da educação.
Entretanto, é um consenso absoluto que, nas últimas décadas tem-se experimentado um pequeno progresso na educação popular em vários países, incluído o Brasil, e que isto tende a ter incidência positiva relevante na defesa dos DH. Mas, a velocidade desse progresso deve ser acelerada, porque é irracional esperar que várias gerações sejam sacrificadas até obtermos uma sociedade minimamente humana.
Tratar todos os problemas do PNDH-3 é ainda uma tarefa dificílima. Alguns desses assuntos são especialmente complicados, pois não existe em torno deles um consenso como no caso da tortura, a pena de morte e o belicismo. Embora possa ser difícil de acreditar, mesmo em países ilustrados da Europa e das Américas, muitas pessoas entendem (de boa fé) que o aborto é uma forma de infanticídio, e o consideram um atentado contra a vida.
Outros problemas, como a intolerância religiosa ou a apologia da tortura, são quase consensualmente rejeitados na maior parte de Ocidente. Nesses casos, o recurso básico é a denúncia internacional, e a procura de colaboração das sociedades que já saíram desses esgotos.
Recentemente, o Conselho Europeu dos DH, condenou a Itália pelo exibicionismo de ícones que exaltam a “verdadeira fé”, lembrando as outras seu caráter “bastardo”. Este fato não é trivial, pensando que a Europa passa por um de seus momentos de maior conservadorismo desde o fim da Segunda Guerra. Isso significa que certas propostas sobre DH são suficientemente evidentes como para que mesmo uma direita moderada aceite respeitá-las, e que o atual reacionário Conselho Europeu é sensível a abusos extremos.
Por sinal, o estado italiano não acatou a exigência, mas isso só confirma nossa tese sobre a importância da educação. A Itália é um país quase fechado à dissidência desde a época do Iluminismo peninsular, que produziu figuras tão soberbas como o Marquês de Beccaria, e está afastado do conhecimento empírico desde antes ainda, da época de Evangelista Torricelli.
Outros abusos mais brutais dos DH, como a aplicação de tormentos, merecem um desprezo quase unânime, e apesar da que ainda se pratique em muitos países. Oficialmente, apenas ditaduras teocráticas como as islâmicas, ou estados militaristas como Israel mantêm a arrogância de considerá-la uma necessidade. É expressivo, neste sentido, que a despeito da violência da repressão nos Estados Unidos e na Itália, suas autoridades sintam certo “pudor” para reconhecer que aplicam tortura.
É fácil juntar fatos políticos e sociais destacados, mostrando que, se sobrepondo ás especulações e negociações utilitárias, muitos setores da sociedade e até partes do poder público aderem a certa moralidade por razões de princípios. Um exemplo, mesmo que seja em proporção ínfima, é o seguinte:
Apesar da corrupção na política italiana, a declaração do ministro da defesa italiano Ignazio La Russa de que gostaria torturar Battisti não foi aprovada explicitamente por membros da classe política ou jurídica, e um deputado até pediu desculpas à família de Cesare pelas manifestações de vários parlamentares pedindo a morte do escritor.
Outro caso mais velho (de 1974) mostra movimentos sociais conscientes se opondo à política utilitária dos governos. Nesse ano, o sindicato de transportadores de Linköping (Suécia) se recusou e embarcar uma carga de armas com destino a Argentina, governada na época pelo governo neofascista de Maria M. de Perón (viúva de Juan Perón), sob o argumento de seriam usadas para a repressão popular.
Voltando ao PNDH-3, deve reconhecer-se que o ministro Vannuchi, como também Tarso Genro, Suplicy e alguns outros, são aquelas figuras progressistas que a migração do PT na direção de uma direita moderada (o conservadorismo compassivo, como chamava o governo Bush a sua doutrina) não conseguiu afastar. Mas, o empenho do governo de criar uma aparência de respeitador dos DH prova a necessidade de ter uma boa imagem externa. A CDH nacional, junto com forças políticas progressistas deve aproveitar esta necessidade para evitar a deturpação de Plano de Direitos Humanos.
Todavia, essa aceitação dos DH é especialmente teórica e coloca restrições para que não possa tornar-se prática: se os DH fossem levados muito a sério, o poder de seus violadores colocaria em risco qualquer governo. Não é nenhum mistério que os militares aparelham o estado brasileiro em muitos de seus níveis mais sensíveis, mas isto merece uma pesquisa profunda. [Os leitores que desejem aprofundar encontrarão observações preciosas neste texto de Jorge Zaverucha. Por sinal, toda a obra do autor, em sua maior parte em português, está no topo de pesquisa sobre problemas militares na região.]
A Constituição Federal faz uma grande exibição de sua adesão aos DH, mas fica numa (elogiável) demonstração de boas intenções. Por enquanto, não temos uma política de igualdade racial efetiva, nem uma política de asilo razoável, nem, muitos menos, uma posição sólida sobre tortura e genocídio.
Apesar disso, educação sistemática, ativismo e denúncia internacional, poderão produzir alguns resultados no longo prazo. O problema é o número de vítimas que produzirão a tortura, a violência policial, e a necessidade das mulheres de recorrer a cirurgiões clandestinos.

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