quinta-feira, 13 de maio de 2010

Primeiro conto do livro O Rabino e o Psicanalista

O RABINO E O PSICANALISTA

Indignação foi a emoção do Grão-Rabino Elias ao acordar no meio da madrugada com um pesadelo absurdo. Sonhou que era ele próprio o Messias enviado à terra por Jeová e que seu tempo para salvar a humanidade do extermínio total não passaria de poucas horas, no máximo 16 horas e 50 minutos. O que poderia ele fazer em 16 horas? — pensou , no auge da aflição.

Era a madrugada de sábado, dia sagrado para os judeus, dia que o Pai escolheu para o descanso.

Decidiu telefonar para seu amigo Dr. Salomão, emérito psicanalista, conhecido pela sua seriedade e ortodoxia. Estudante, pretendente a Rabino, foi seu colega nos tempos da juventude. E contou para ele o seu sonho. Jeová sentado numa grande poltrona lhe dizia: “não se ajoelhe perante a mim, nem perante a ninguém, não fique deitado. Reuna a sabedoria e tente fazer alguma coisa, não conte comigo. Eu decidi há milhares de anos. O mundo acaba neste dia de Sabbat. Mas a humanidade te criou, a ilusão da salvação. Tudo esperam de ti, de mim nada. Mas eu sou imortal.”

Elias relatou para o psicanalista sua indignação. Que contradição, que absurdo o que me disse Jeová! Ajude-me, Salomão, estarei louco? Responda rapidamente, já, porque são só 16 horas e 50 minutos que terei para agir! Nisto já se passaram 15 minutos…

— Salomão respondeu: “Elias, tome um comprimido e durma. Amanhã pensaremos juntos. Nada mais posso te dizer agora”.

Elias saiu de sua calma e compostura habitual, próprias de um grão-Rabino e disse: “Você será o primeiro a morrer, será que não entende?”

— Sim, entendo bem, você deseja que eu seja o primeiro a morrer.

Começa a trovejar incessantemente. Salomão se assusta e pensa: “O que posso fazer? O que me dirão os escritos de Freud?” Desligou o telefone e foi para a biblioteca. Folheia alguns artigos de psicanálise sem conseguir se concentrar na leitura. Sente uma forte pontada no estômago, veste-se e vai à casa de Elias. São 7 horas da manhã. O sol já ilumina a cidade.

Toca a campainha. A esposa do Rabino abre a porta em desespero: “Que bom que você chegou! Elias reza sem parar e já avisou à família que hoje é o dia do grande final.”

“Deus meu, o grão-Rabino enlouqueceu de vez” — pensou.

— Venha conversar com seu amigo.

Elias porém, se recusa e diz que Jeová lhe disse: “Não se deite.” Concluo que estar contigo é se deitar, deitar no divã. Não posso ser seu cliente, assim como não posso me ajoelhar. Será que posso andar? — levanta-se e cai. Estou paralisado, minhas pernas doem. Tenho de salvar o mundo! Sou Messias e nem sequer consigo andar! Salomão, me segure, estou impotente. Deus me deu uma mensagem, foi só isto. A humanidade é que disse que eu tenho que salvá-la.

— Engana-se, Elias. A humanidade escolheu a mim. Só eu posso salvá-la. Por isso tornei-me psicanalista. Messias sou eu.

O grão-Rabino se levantou sem ajuda e disse aliviado:
— Estou melhor, já não tenho dor. Posso andar e fazer o que quiser. O problema é teu. Deixe-me agora; hoje é meu dia de descanso, mas será meu dia de festa, vá embora. Salomão não se mexe, fica em pé, estático. Nervoso, pega um charuto e pede um café.

— Não, não Salomão! Vá-se, vá-se embora — e o empurra porta afora.

O psicanalista é enxotado e não aceita isto.
— Dane-se você e a religião! São loucos!

O Rabino sorri: “O problema é seu, meu caro, eu já estou bem.”

Dr.Salomão sai muito nervoso. Olha o relógio, são 9 horas. Já deveria estar no consultório. Apesar de judeu, trabalha aos sábados. Engole um calmante e, atrasado entra em sua sala. A cliente, a histérica da primeira sessão — uma bela mulher de 30 anos — já o espera há meia hora. Está histérica, claro. Enfurecida diz:
— Acordo cedo aos sábados para minha sessão, chego aqui e o senhor não está! Estou cheia, perco meu tempo aqui, o mundo vai acabar e nem mesmo meu psicanalista me atende!

— Entre, Margot. Acalme-se, deite no divã e fale. Hoje você me diz que o mundo vai acabar; ontem terminou a sessão falando sobre o ódio que sente, por seu pai ter se casado com sua mãe e o desejo que tem de matá-lo.

— Acontece, Dr. Salomão, que meu pai teve um enfarte esta noite e agora, além de não poder mais me casar com ele, tenho de guardar o segredo que ele me confessou antes de morrer. Óbvio que nunca falarei para ninguém que ele me disse: “Minha filha, sou o Messias.” Agora vou embora porque tenho pressa. Os jornalistas do Jornal do Estado, aguardam as declarações que darei sobre a morte de meu pai — o Messias.

O senhor não tem mais nada para interpretar. Não me fale sobre castração, édipo ou superioridade do falus e nem mesmo me fale de onipotência. Não acredito em mais nada. Ele morreu dizendo que era Messias. Ele, um homem muito religioso e cristão, não pecaria assim. Meu pai não mentia. Morreu Messias. O mundo vai acabar e temos poucas horas. Vou pagar e ir embora.

Engana-se. — diz o psicanalista — O mundo não vai acabar. Acabou para ele e, você identificada com ele, acha que morre junto.

— Não senhor, eu não morro, quem morre é o senhor. Eu vou me mandar porque sei o que está por vir. A culpa é sua, o senhor não salvou meu pai. Eu pedi, implorei durante anos, durante centenas de sessões: não mate meu pai. Mas o matou. Arque com as consequências.

O analista se desespera, não consegue se fazer entender: “Eu não matei o seu pai. Você o matou na fantasia, porém uma infelicidade fez com que a morte real viesse junto. Minha filha, chore, desabafe, mas não abandone o seu tratamento.”

— Como não! O mundo vai acabar mesmo que eu queira continuar vindo! Amanhã não tem mais dia. Acabou. Quero deixar pagas as consultas — tira o dinheiro, entrega ao Dr. Salomão e diz: — “Não se iluda. Amanhã não terá mais dia.”
E vai embora. O psicanalista fica arrasado, liga o rádio para se distrair. Hoje já perderá seu grande amigo, o Rabino, que respeitava. E Margot, cliente querida, porém com um sério Édipo, pobrezinha. Escuta no noticiário: “O Papa alerta a humanidade que o mundo vai acabar hoje.” Fica absorto, não entende o que está acontecendo, quantas coincidências!

Toca a campainha. É José, seu cliente das 12 horas, um adolescente de 16 anos. O garoto entra e diz: “Dr. Salomão, não tem mais jeito. Meu microcomputador prevê, hoje é o dia do final. É o dia da bomba atômica. Será uma apoteose, junto com a bomba virá o grande barato, será como um bacanal de cocaína. Choverá coca em todo o mundo.

— Que coca, garoto, coca-cola?

— Não, cocaína. Usarão a bomba atômica para destruir a cidade de Santa Cruz de la Sierra, o grande reservatório do pó sagrado. O mundo acabará debaixo de chuva branca. Já imaginou que maravilha? Pelo menos, morrer no barato. Foi o que sempre quis!

Deus meu! — pensou Elias — Hoje é o meu dia. Todos que me rodeiam enlouqueceram.

— Chega José, vá embora. Hoje não aguento mais.

O garoto vai embora e Salomão pede um café à secretária. Esta lhe diz: — Que café doutor! Faça alguma coisa, eu tenho confiança no senhor. Hoje é o dia do fim do mundo. Eu o amo, só o senhor pode nos salvar.

— Como é o dia do fim do mundo? Mais uma doida. Será este o meu destino, aturar os doidos? Até o grão-rabino enlouqueceu…

Toca o telefone. É Elias: — Que tal Salomão, tomou alguma providência? O analista desliga o telefone na cara do amigo, o tão respeitado Rabino. Toma mais um calmante. Sai e sem almoçar vai para o sanatório onde trabalha à tarde. Lá sim, podem me dizer à vontade que o mundo vai acabar. São internos diagnosticados como psicóticos por juntas médicas competentes.

Mas, apesar de sua aparente calma, se aborrece no tráfego, pensa no dia, se descontrola e chega lá aos berros. Junta a clientela do sofisticado sanatório, um sanatório muito chic, só para ricos, e absurdamente caro. Aliás, os pacientes quando saem já são pobres, de tão caro que pagam o tratamento pare se curar.

O analista grita: “O mundo vai acabar hoje! Temos mais 3 horas.” Os loucos morrem de rir. O Dr. Salomão está delirante! “Vocês têm de me ajudar. O mundo acaba hoje e só vocês não sabem. São loucos.” E começa a chorar convulsivamente. Todos ficam com pena. Chamam a enfermeira, a enfermeira chama o médico-psiquiatra de plantão, que imediatamente lhe dá uma injeção de Valium e pede para acalmar-se:

— O mundo vai terminar hoje! Eu, as enfermeiras e até o porteiro já sabemos disto. A Rússia quebrou o sigilo e já noticiou que lançará a bomba atômica no mesmo instante em que os EUA. Já sincronizaram as duas para ser concomitante o disparo. Assim, ninguém terá culpa, ninguém será o primeiro. Foi um pacto nuclear bilateral, mas os internos não acreditam, os coitados são alienados, deixe-os em paz. A notícia foi dada no rádio a 10 minutos, marcaram exatamente 1 hora para o fim do mundo.

Salomão sai correndo, aos gritos, como um animal acuado, sofrendo ferida irreversível.

Faltam 50 minutos, faltam 50 minutos, os 50 minutos me perseguem. Bem que o rabino disse: 16 horas e 50 minutos. E eu desperdicei o dia. Falta o tempo de uma sessão de análise, este tempo me persegue. O que vou fazer em 50 minutos!? O que posso fazer neste tempo?

Baixinho, Dr. Henrique chama: — Dr. Salomão…Dr. Salomão…uma sessão de análise.

Não! Não! Que sessão de análise?! Não quero morrer, não posso ficar analisando ninguém nos meus últimos 50 minutos.

Dr. Henrique, ex-professor da Universidade, mestre em Filosofia e Economia Política, interno há 5 anos, diz: — “O senhor, melhor do que ninguém, conhece minha história. Eu já previa tudo, por isso me expulsaram da Universidade onde lecionava e minha família me internou. Temos ainda 50 minutos. Deite-se no sofá do meu quarto e façamos uma sessão de análise. Falemos sobre sua mãe, seu complexo de Édipo, sobre o sentimento de castração, etc. Você será meu paciente. Será a última sessão de análise.

Salomão, impotente, deita-se no sofá e diz: — “Henrique, todos sabiam, menos eu.” Nada mais se escuta! Só os risos dos internos e as gargalhadas de Jeová.

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