Carlos A. Lungarzo (AIUSA- 2152711)
No julgamento da extradição de Cesare Battisti, uma maioria de 5 a 4 anulou a condição de refugiado que o ministro Tarso Genro tinha deferido. O relator justificou a nulidade por causa de que Tarso usou de seu direito de considerar que esses delitos eram políticos. Segundo o juiz, só o STF pode fazer essa qualificação. Assim, o magistrado misturava o Estatuto de Estrangeiros, onde se incumbe ao STF como qualificador para o caso de extradição, com o assunto, exatamente oposto, da qualificação do crime para conceder refúgio. (Vide)
O relator também invocou o item 56 do Manual do Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que diferencia entre vítimas de injustiça e fugitivos da justiça. (v) Mas, “esqueceu” de mencionar o artigo 57, onde se adverte que a diferença é difusa, e que as condenações exageradas são formas de perseguição. Apesar do acúmulo de etapas caóticas dessa primeira sessão, o relator e seus aliados proclamaram um resultado que abria uma nova fase na ordem internacional. (v)
Pela primeira vez desde a Convenção de Genebra de 1951, um tribunal de um país ocidental anulava um refúgio concedido por um governo legítimo do mesmo estado. Até nos Estados Unidos, cujo tratamento do asilo é altamente politizado, um juiz ou corte pode cancelar a remoção de um asilado ordenada por um funcionário federal, mas não pode fazer o inverso (v). Aliás, os juízes e as cortes de imigração norte-americanos têm o status da magistratura, mas, na prática, são reais especialistas em movimentos migratórios.
A situação inversa é frequente. Quando um governo concede um asilo e, num estágio posterior, outra instância o revoga, a justiça pode intervir para confirmar o asilo e anular a revogação. Na Europa há numerosos casos. Na Alemanha, o pleito mais agitado foi em 2005, quando a Corte de Köln anulou a revogação do asilo de dúzias de famílias iranianas, apesar de sua qualificação de “terroristas” pelo governo (v).
No Brasil, desde o começo de 2009, se vislumbrava a intenção do STF de interferir nas atribuições do executivo. Isto foi “anunciado” por um parecer consultivo do jurista Silva Velloso, e por opiniões dadas à mídia pelo magistrado Celso de Mello, onde propunha certos “truques” com a jurisprudência para ferrar Battisti.
Frente ao aberto fraude que se anunciava, funcionários e organizações manifestaram alarma pela criação de um precedente nefasto: refúgios atribuídos em processos legítimos poderiam ser destruídos pelo humor ou pelo interesse dos juízes.
O coordenador do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), Luiz Paulo Barreto, e o representante do ACNUR no Brasil, Javier López Cifuentes, denunciaram a deturpação da instituição do refúgio, e a inaptidão do judiciário para julgar problemas específicos sobre risco e perseguição em diversos lugares do planeta (v). Eles afirmavam que aquela intromissão estimularia a países perseguidores a tentar recapturar os que tinham conseguido salvar-se. Essas predições se confirmaram rapidamente. Em seguida, Irão, Cuba, Colômbia e outros começaram a montar seus lobbies para caçar seus nacionais refugiados.
Mas, nos últimos tempos, um caso assumiu relevância. O Paraguai reclamou a revogação de três refúgios concedidos há mais de seis anos (12/ 2003) a cidadãos sobre cuja atividade legal as autoridades brasileiras nunca tinham levantado objeções.
O Contexto do Novo Caso
Em 2003, pouco antes de se exilar no Brasil, os paraguaios Juan Arrom, Anuncio Martí e Víctor Colmán foram detidos pela polícia paraguaia sob a alegação de que teriam seqüestrado (no 16/11/200) Maria Edith Debernardi, que foi liberada com vida dois meses após. A vigência deste caso, ainda hoje, mostra que o hábito italiano de desenterrar crimes antigos se tornou paradigma, aplicado, porém, com certa modéstia: apenas 8 anos e 7 meses (v).
A polícia também acusou os detentos de pertencer à organização guerrilheira Exército do Povo Paraguaio. Os três foram submetidos a sessões de tortura, uma atividade na qual o aparato de repressão do Paraguai é um dos mais truculentos do continente. Segundo um membro do CONARE que não foi identificado pela mídia, há vídeos que registram a aplicação de tormentos, e não cabe dúvida de que os três exilados são perseguidos (v).
Paraguai é um estado patrimonialista, reduzido à miséria depois do extermínio executado pela Argentina e o Brasil entre 1864 e 1870, que provocou a maior devastação demográfica per capita da história, incluindo a posterior. Durante estes anos, as oligarquias dividiram o poder no estilo das “famílias” de máfia, e se revezaram no poder através de ditaduras fortemente aparelhadas pelos grandes vizinhos. Os esforçados movimentos de resistência popular foram reprimidos com extrema barbárie em todos os níveis, inclusive durante as manifestações pacíficas.
Entretanto, o estado delinquencial, com enorme hipertrofia da estrutura repressiva, estimulou grupos policiais e militares a explorar todo tipo de negócio criminoso e, em vários casos, gangues diversas entraram em conflito por causa do butim. Portanto, em nenhuma ação delitiva no Paraguai pode descartar-se a cumplicidade da polícia. Talvez por isso, no caso do sequestro de Maria Edith, as autoridades concluíram que a guerrilha não tinha envolvimento e que era melhor procurar entre policiais e criminosos comuns. Finalmente, os três suspeitos puderam deslocar-se ao Brasil, onde obtiveram refúgio de acordo com todas as exigências do CONARE. Desde 2003, a situação não experimentou variações.
Em fevereiro de 2010, antes que Lugo declarasse estado de emergência, novas acusações apareceram abruptamente contra os três exilados. Segundo todas as informações publicadas, dois deles tinham morado em Curitiba e outro em Campo Grande desde o começo do asilo, e nem a mídia nem a polícia nem a ABIM disseram ter encontrado algo suspeito. Qualquer exilado sabe que os serviços de informações seguem todos os passos dos refugiados, e até dos estrangeiros em geral. Se eles tivessem encontrado algo, é evidente que a mídia o teria difundido para incrementar o sentimento contrário ao refúgio.
Apesar de que os três asilados possuem domicílios conhecidos e a imprensa conseguiu contatar alguns deles (v), o governo paraguaio afirma que continuaram atuando no Paraguai. Embora o padre Lugo não explique, essa atuação pode ser produto de um pacto com o diabo, porque não foi denunciada a ausência do Brasil de nenhum deles.
O governo os acusa agora, além daquele antigo sequestro, de:
1. Dirigir as guerrilhas a distância e enviar dinheiro às FARC.
2. Ter planejado o sequestro e morte de Cecília Cubas (em 16/02/2005), filha do ex-presidente Raul Cubas, também refugiado no Brasil fugindo de acusações de genocídio e prevaricação (v), embora estas “infrações” não preocupam muito a mídia brasileira, que poucas vezes questionou a proteção dada por seu colega FHC.
3. Ter organizado um atentado falido contra o senador Robert Acevedo, em 27/04/2010. Todos estes delitos foram cometidos em território paraguaio.
Por causa do grande poder econômico de Cubas, o governo paraguaio empreendeu um pogrom contra suspeitos da morte de sua filha, exonerando o ministro do interior e mais de 30 delegados. Dada a estrutura mafiosa e feudal dessas elites, é natural que a investigação tenha produzido atrito entre diversas gangues, já que nem todos os policiais estão alineados com a mesma “família”.
Então, a acusação contra os três asilados visa dois objetivos simultâneos: encontrar bodes expiatórios que paguem pelo homicídio de Cecília Cubas, e oferecer às oligarquias troféus que, supostamente, pertencem a uma pouco visível guerrilha.
Não se conhece nenhuma denúncia de atitudes suspeitas dos refugiados. É justo ressaltar que até jornalistas caracterizados por sua quase permanente subserviência ao establishment apóiam a hipótese que estes delitos foram cometidos por criminosos comuns, e que a relação dos guerrilheiros com as FARC é puramente ideológica, limitando-se a e-mail de saudações e parabéns (v).
Mas, a situação não parece muito grave. Lula tinha reagido dignamente em apóio de Tarso Genro, e tinha respondido com decoro as insolências do presidente Napolitano, mas no conflito paraguaio sua posição foi mais categórica que no caso Battisti. No total, há vários fatores que justificam a idéia de que este novo circo não poderá montar seu show:
1. Lula disse a Lugo, no dia 3 de maio, que estava amparado pelas Nações Unidas para dar asilo, e chamou os perseguidos de “companheiros”.
2. Também afirmou que o caso tinha sido investigado e não foram encontrados indícios demonstrativos das acusações.
3. Esclareceu que, se aparecessem provas concretas, os asilados poderiam ser tratados “de forma diferente”, mas não fez referência à possibilidade de extradição.
4. Neste caso, não parece existir o mesmo interesse do STF para se arvorar como árbitro do pleito. Aliás, as “predileções étnicas” das elites tornam difícil aceitar eventuais pressões de um país com maioria indígena.
Faltou esclarecer que um asilo só pode revogar-se por descumprimento das condições impostas para sua outorga, que não são sensíveis à vida pregressa dos refugiados. O único argumento válido contra eles seria a prática de crimes em ou desde território brasileiro, mas ninguém forneceu o mínimo indício sobre isso.
Aliás, mesmo no caso de ter violado a condição de asilo, o pais asilante não pode deportar os refugiados a uma região onde se praticam tratos brutais. Isto está claramente proibido pela Convenção de Genebra (art. 33), pelo Protocolo Adicional (art. 1), e pela Convenção Americana de DH (art. 22, §8), além de outros documentos menores. Se houvesse graves faltas dos asilados no cumprimento de suas condições de refúgio, eles devem ser direcionados a outro país fora de risco, ou colocados sob custódia do ACNUR (v)
Tendo em conta o longo prazo durante o qual se executaram os crimes, salta aos olhos que houve tempo para forjar cuidadosamente milhares de “provas”.
Aspectos Críticos
A atitude do presidente Lula foi tranqüilizadora, tanto em relação com os DH individuais dos supostos infratores, como na proteção da instituição do asilo em geral, tão atacada pelo alto judiciário. Entretanto, existem sim outros fatores de preocupação.
O “Palpite” do Chanceler
De acordo com alguns meios, o chanceler Celso Amorim teria feito declarações em 28/02/2010, sobre a exigência de Paraguai de devolver estes cidadãos (v). Já naquela época, o ministro condicionava a revogação do asilo à existência de “provas contundentes”.
No entanto, referiu-se com aparente seriedade ao famigerado computador das FARC, que se tornou alegoria de embuste político de baixa qualidade, depois que o portavoz da organização, Raul Reyes, fora assassinado em março de 2008, junto com vários civis, durante o bombardeio que mercenários colombianos e norte-americanos executaram sobre território do Equador.
A posição de Amorim foi evasiva e, o mesmo que no caso Battisti, não pode descartar-se que sua atitude mude de acordo com as conveniências da diplomacia. No entanto, mesmo que não tenha conseqüências práticas, a tradição de Itamaraty de conceder atenção às propostas mais desvairadas de outros governos (especialmente quando este em jogo a integridade de pessoas vulneráveis e indefensas) creia um permanente estado de insegurança.
Uma Mini-Condor?
Mesmo com a posição negativa à revogação de asilo por parte do presidente, a indiferença do STF e a postura bivalente do MRE, ainda o Paraguai pode ter outro recurso, como nos “bons” tempos da Operação Condor.
Já um professor de Direito Internacional do Paraná ofereceu uma dica valiosa sob a forma de comentário anódino. Afirmou que o governo precisava “saber se eles [os refugiados] estão legalizados no país”. (v)
Este pode ser o caminho para uma Operação Mini-Condor. A polícia pode convocar os asilados, e encontrar qualquer pretexto para denunciar uma irregularidade em seus documentos (por exemplo: “estão vencidos”, “falta um carimbo”, “há um nome escrito em espanhol”, etc.). Então, poderia expulsá-los furtivamente, aduzindo alguma confusa acusação de “permanência ilegal” e devolvê-los à sacristia do padre Lugo. Feito isso, os responsáveis ficarão impunes como aconteceu com os policiais que deportaram um casal uruguaio em 1978.
Terror Mediático
O comentário do professor, junto com outro de uma professora da mesma área, começa a delinear um panorama semelhante ao do caso Battisti, quando experts neofascistas se envolveram numa campanha de contra-informação. Isto é um complemento básico do terror mediático, pois pasquins e redes de TV costumam entrevistar estes experts para espalhar a confusão. Embora muitos assuntos familiares ou pessoais requeiram o uso do direito internacional, os mais interessados nele são as instituições diplomáticas ou militares, e as empresas de comércio exterior, que usualmente financiam as “pesquisas” dos especialistas. Os casos de especialistas em relações internacionais que são reais pesquisadores ou funcionários de organismos humanitários formam uma minoria.
Segundo a professora da USP, o Brasil favorece a entrada de criminosos e o governo estaria “abrindo precedente para isso”. Estas denúncias foram coroadas por uma observação incrível: “A política brasileira para concessão de refúgio não condiz com os tratados internacionais sobre o assunto e nem com a prática jurídica”. (v) Finalmente, disse, com outras palavras, que o governo não deveria prejudicar sua agenda internacional (negócios) por causa dos direitos de três trombadinhas.
O mais grotesco desta observação, é que a má conduta do governo com alguns tratados internacionais existe, mas no sentido oposto ao raciocínio da expert: o problema não é que o governo tenha uma visão liberal sobre o asilo, mas, pelo contrário, que os governos (desde há décadas) têm uma visão estreita e elitista. Os únicos que encontram asilo facilmente são tiranos e genocidas como Bidault, Stroessner, Cubas, Oviedo e alguns criminosos nazistas. Estes publicitários da repressão ficariam surpresos se soubessem qual é o lugar que ocupa Brasil na oferta de asilo. Mas tirarei suas dúvidas na próxima seção.
Refúgio e Asilo no Brasil
Vamos examinar primeiro as condições gerais nas quais um refúgio/asilo pode ser revogado, e depois a real dimensão da “tradição” do refúgio/asilo praticado pelo Brasil.
Revogação de Asilo
O refúgio/asilo pode ser revogado pelo governo asilante quando:
1. O beneficiado tiver cometido alguma violação das condições sob as quais foi feita a outorga, ou um crime posterior a seu deferimento.
2. A situação de risco que motivou o refúgio/asilo tinha sido totalmente debelada em seu lugar de origem.
O desvio de refugiados para países não perigosos é uma questão crucial na política de asilo e tem sido respeitada até pelo Estado Mexicano, cujo tratamento de estrangeiros costuma ser arbitrário. Um caso que ilustra bem esta disposição foi o sequestro da sobrinha do candidato presidencial pelo partido da direita PAN, chamada Beatriz Madero, por um italiano e um grupo de argentinos em outubro de 1981. O sequestro, considerado no México crime tão grave como no Brasil, motivou a anulação do asilo dos executores, mas não se cogitou extradição. Eles foram entregues ao ACNUR, que os direcionou para outro país. (v)
Até onde se possui informação do último meio século, os refugiados com asilo já concedido só foram repatriados (e, muitas vezes, assassinados) em países com ditaduras ou governos neofascistas, como aconteceu na Argentina em 1975, antes do golpe.
As Dimensões do Refúgio/asilo
Em 2005, o Alto Comissário do ACNUR, Antônio Guterres, elogiou o sistema de refúgio brasileiro (v) pelo tratamento cordial, mas mencionou o escasso número de pessoas que o Brasil recebe: a diferença era “apenas” a que existia, nesse ano, entre 3 mil asilados do Brasil e 3 milhões do Paquistão. Não se pode justificar este desempenho ínfimo com base na pobreza do Brasil, porque o Paquistão tem um dos piores índices de qualidade de vida. A cizanha semeada pelos experts mercenários, alertando para a invasão do país por refugiados, é de uma cretinice rompante, como mostram as estatísticas da própria ONU. (v)
No final da década de 90, o Brasil estava no 77º lugar (em ordem decrescente) em número absoluto de refugiados. Já em relação com seu tamanho demográfico (#(refugiados)/#(habitantes)), aparecia na posição 103, abaixo do Chile (99) e da Bolívia (96). (v). Em 2005, a situação tinha mudado... para pior. O Brasil estava, em valor absoluto, no lugar 79 (v), e no lugar 134 (v) per capita, com 18,6 refugiados por cada milhão, abaixo do Equador (74) e da Nicarágua (118).
A Lei 9474/97
A Lei 9474/97 é uma iniciativa bastante garantista, mas contém algumas lacunas e ambigüidades, que permitem ao judiciário forjar interpretações tortuosas, como aconteceu no caso Battisti. Um bug grave é a falta de diferenciação entre refugiados e asilados, já que o termo “asilo” aparece na Constituição, mas nunca é elucidado. Supõe-se que o Brasil aceita a definição de refugiado do Protocolo de 1967, mas não oficializa o status de asilado. Esta imprecisão facilita afirmações desvairadas que visam sabotar a concessão de refúgio e/ou asilo, como a de Silva Velloso, para quem “Tarso deu asilo sob o disfarce de refúgio”.
Aliás, a lei não define o que entende por terrorismo, nem esclarece se aceita ou não a sugestão não consensual das Nações Unidas na A/RES/51/210 de 1996 (v), que a própria organização declara não ser uma verdadeira definição. É causa de confusão deixar esse termo sem precisão, porque o rótulo “terrorista” é utilizado com a maior aleivosia pelas classes dominantes contra qualquer pessoa ou organização seriamente opositora.
Também se usa na lei o famigerado neologismo “crime hediondo”, um mistério para os próprios refugiados, que sempre são estrangeiros. Como pode saber um habitante de outro país se ele próprio cometeu crime hediondo? Algumas sentenças monocráticas consideram hedionda a falsificação de cosméticos. A lei deveria elucidar com exatidão a diferença entre os crimes comuns, crimes políticos em sentido estrito, e crimes de lesa humanidade. Esta última expressão foi cunhada para aplicar ao nazismo, mas 60 anos não foram suficientes para que os juristas a reconheçam como um termo técnico com direito a aparecer nos textos legais.
Seguindo o modelo norte-americano, a lei exclui os acusados de tráfico de drogas, sem diferenciar entre agentes do crime organizado e pessoas forçadas a trabalhar para o tráfico, que procuram refúgio, justamente para fugir das retaliações das máfias. Este é o caso de centenas de colombianos acolhidos pelo Equador e a Venezuela.
O Poder de Decisão
Outro aspecto curioso do sistema de refúgio/asilo é a composição do Comitê para Refugiados (CONARE), formado por representantes de vários ministérios, da Polícia Federal e de uma ONG. Nos asilos de índole diplomática, o MRE tem um papel fundamental, mas estes casos são minoria, e se resolvem nas embaixadas. No caso de refúgio/asilo territorial, a função de Itamaraty deveria ser apenas consultiva. A relevância concedida à chancelaria mostra que o interesse em não desagradar os governos prevalece sobre qualquer intuito humanitário, como ficou claríssimo no caso Battisti. Quando, como no Brasil, todos os governos são amigos, o melhor seria não criar falsas expectativas nos candidatos a refúgio. Em qualquer momento, o país pode dar um asilado de presente a um desses amigos.
Essencialmente, conceder proteção é uma tarefa do Ministério da Justiça ou do Interior, ou seus equivalentes, como a Secretaria de Governo no México e na América Central, ou das secretarias de imigração e população como na Escandinávia, ou dos comissionados especializados, juízes e cortes técnicas nos países que se regem pela Common Law.
Já a presença de outros ministérios no CONARE é totalmente extemporânea. Os países que brindam ampla proteção e condições de integração a seus refugiados, como os do Norte da Europa, encomendam a seus ministérios de educação, saúde, trabalho, etc., planos especiais para assentar os imigrantes com o mínimo de traumas. Entretanto, estes organismos não têm nenhum poder de decisão para aceitar ou rejeitar refugiados. A presença de alguns destes ministérios no CONARE mostra também que nem esse anêmico refúgio de 18,6 por milhão de pessoas é brindado só com base humanitária. Há uma espécie de qualificação dos refugiados, como se pessoas mais graduadas merecessem mais proteção. Não é por acaso que alguns africanos pobres foram repatriados para um destino horrível, a despeito das autocríticas do estado brasileiro por causa de seu passado (?) escravocrata.
Tampouco a presença da polícia federal no CONARE faz sentido. Em certos países democráticos, a polícia deporta impunemente potenciais refugiados, mas o sistema migratório não lhes dá direito de decisão sobre candidatos a refúgio já registrados. Nada impede a um responsável pelo refúgio/asilo pedir informações à polícia sobre o histórico do candidato, sem que isso deva implicar no direito da polícia a votar sobre o assunto. No caso de candidatos de esquerda, colocar à polícia para julgar é como pedir a um tigre preparar um churrasco.
É justo que se preze a opinião de ONGs preocupadas pelos DH, pois existem algumas de imparcialidade relativamente alta, mas é imprescindível honrar o pretenso caráter universalista e secular do estado brasileiro. No caso Battisti, quando Cáritas se declarou contra o asilo, foi claro que a presença de um marxista era irritativa para o poder eclesial. É verdade que a Comissão de Justiça e Paz teve um papel fundamental na proteção de refugiados do Cone Sul, tanto em São Paulo como no Rio, entre 1973 e 1985. No entanto, esses foram outros tempos, com outra situação política e outra Igreja. Aliás, ninguém está alijando os setores progressistas que possam existir ainda na Igreja a proteger os refugiados, mas é um pouco anacrônica a teocratização explícita de decisões políticas ou jurídicas. Já é suficiente com o espírito teocrático do judiciário, mesmo que não esteja formulado oficialmente.
Um tragicômico paradoxo é que o ACNUR pode assistir e manifestar-se no CONARE, porém sem direito a voto. As agências da ONU podem sofrer da influência dos países membros, mas é óbvio que o ACNUR entende mais de refúgio que qualquer outra organização e que sua imparcialidade é mais ou menos razoável.
Os Aspectos Políticos
É saudável diferenciar entre a tradição popular brasileira de hospitalidade e cosmopolitismo, que é um traço da psicologia social do país, das políticas oficiais aplicadas desde o império para a recepção de estrangeiros. Também, é necessário ter em conta a típica discrepância entre as leis e os fatos. Brasil tem uma das constituições mais avançadas do mundo, e os planos de DH mais ambiciosos, mas a prática da justiça, da proteção social e da política concreta mantém pouca relação com o papel.
Além disso, vale a pena uma reflexão sobre a estratégia de alianças do atual governo. É positivo que queira manter-se fora das pressões dos grandes centros de poder, e promova projetos alternativos que tentem garantir a paz e não provocar o conflito, como no caso do não bem apreciado esforço de intermediar com Irã. Entretanto, essa política parece ainda superficial, como o prova a defesa dos interesses predatórios de empresas brasileiras no Equador e na Bolívia.
Se no caso destes dois países há uma subestimação da fraternidade entre os povos, por outro lado parece existir uma exagerada condescendência com o governo de Lugo. De maneira diferente a outros regimes da região tidos como “progressistas”, o sistema paraguaio não parece dar indícios de mudança significativa, salvo pela presidência de um antigo membro da Teologia da Libertação, cuja posição política e seu discurso carecem de coerência.
A declaração de estado de emergência em cinco departamentos cria uma zona onde os direitos das pessoas estão nas mãos de militares e policiais. Esta decisão desproporcional, que visa agradar o exército e a oligarquia paraguaia e que transforma o norte do país num sub-estado policial, criminaliza os movimentos sociais e afronta o direito de asilo numa forma que não consegue convencer nem a mesma polícia e serviços de inteligência brasileiros. Aliás, o padre Lugo deverá prestar contas algum dia pelo pecado de faltar com a verdade. Como chefe do estado é evidente que não pode acreditar na culpabilidade de asilados que até a mídia brasileira considera inocentes.
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