A companheira Rosa, a quem muito respeito, escreveu que o fracasso da tentativa de se punir os torturadores como responsáveis por crimes comuns nos deixa a todos num mato sem cachorro, pois o Congresso Nacional também não vai fazer o que eu considero necessário: revogar a Lei da Anistia produzida durante a ditadura, substituindo-a por outra a ser gestada em liberdade.
Infelizmente, assim é -- muito mais agora, pois a derrota acachapante no Supremo Tribunal Federal serve como desculpa para a omissão dos parlamentares.
Enfim, minha conclusão é a de que deixamos de travar a luta correta e necessária, dando-a antecipadamente como perdida, para tentarmos obter uma pálida meia vitória -- e acabamos perdendo do mesmo jeito. Com a agravante de termos ficado em posição falsa, o que o inimigo não cansa de jogar na nossa cara.
O subterfúgio utilizado tinha o pequeno inconveniente de, caso resultasse, só permitir a punição de quem sujou as mãos com nosso sangue. Os que não torturaram nem mataram ninguém, mas delegaram o serviço sujo aos boçais truculentos, ficariam impunes para sempre.
De quebra, o desastrado estratagema pareceu dar razão à cantilena falaciosa das viúvas da ditadura, de que os milicões eram angelicais e a bestialidade partiu de subalternos aloprados, sem que a alta oficialidade soubesse o que se passava nos porões.
Mas, por que esse detalhe me incomodou tanto?
Companheiros que foram torturados, têm manifestado seu compreensível desgosto por não verem seus algozes castigados de nenhuma maneira.
Apesar da objetividade da minhas colocações, não deixam de estranhar a abordagem que dou ao tema; parece-lhes racional demais. E meus sentimentos, onde foram parar?
Na verdade, impregnam cada linha que escrevi.
Pois, passado os primeiros (infernais) dias da tortura, fui percebendo como funcionava aquela engrenagem maldita.
Havia os que batiam, aplicavam choques, asfixiavam, penduravam no pau-de-arara. Equipes às vezes lideradas por um major, às vezes por um capitão. Homens de linha de frente, de ação.
A esses era relativamente fácil enganarmos -- ainda mais por estarem ocorrendo muitas quedas, de várias organizações ao mesmo tempo, o que os confundia e desnorteava. Cometiam erros crassos.
No entanto, várias vezes uma versão que colara durante a tortura dava motivo a novas e piores sevícias, algumas horas depois.
Fui percebendo que havia uma equipe de analistas na retaguarda, interpretando os dados obtidos pelos torturadores. Oficiais bem mais inteligentes e hábeis do que os açougueiros. Eles notavam algumas de nossas mentiras, pelas quais a turma da porrada passara batida.
Resultado: alertavam-na e o repique vinha pesado, não só porque os torturadores queriam obter as informações que estávamos escondendo, como por seu sentimento de humilhação ao descobrirem que os havíamos iludido.
Um ou outro desses analistas veio mais tarde falar comigo. Por eu ter sido comandante de Inteligência, viam-me como o inimigo que desempenhava funções correspondentes às deles, daí sua curiosidade.
Foram os que mais odiei no DOI-Codi/RJ. Porque eram sofisticados, tinham palavreado rebuscado, trajavam fardas impecáveis, um chegava até a usar perfume... e eram eles que verdadeiramente norteavam a tortura, apontando quem deveria apanhar e quanto deveria apanhar.
E os execrei principalmente por não serem primários como seus paus mandados e, mesmo assim, estarem desempenhando um papel tão hediondo.
Seu brilhantismo intelectual lhes permitia aquilatar a abominação para a qual contribuíam, mas eram totalmente destituídos de caráter. Encaravam aquilo como um jogo, fingindo não notar que, em vez de peças de xadrez, estavam sendo sacrificados seres humanos.
Então, para mim, o verdadeiro inimigo eram esses analistas e os oficiais superiores, não o rebotalho que agia nos porões.
Aos mandantes, eu detestava. Aos executantes, desprezava, como escória insignificante que eram.
Daí ter ficado desde o início entalada na minha garganta essa proposta de irmos atrás tão somente dos que deixaram suas digitais na cena do crime.
Meus alvos preferenciais eram exatamente os outros: aqueles que ficaram atrás da cortina puxando os cordéis, com a certeza de que não seriam atingidos por nosso fogo, nem responsabilizados depois.
Infelizmente, assim é -- muito mais agora, pois a derrota acachapante no Supremo Tribunal Federal serve como desculpa para a omissão dos parlamentares.
Enfim, minha conclusão é a de que deixamos de travar a luta correta e necessária, dando-a antecipadamente como perdida, para tentarmos obter uma pálida meia vitória -- e acabamos perdendo do mesmo jeito. Com a agravante de termos ficado em posição falsa, o que o inimigo não cansa de jogar na nossa cara.
O subterfúgio utilizado tinha o pequeno inconveniente de, caso resultasse, só permitir a punição de quem sujou as mãos com nosso sangue. Os que não torturaram nem mataram ninguém, mas delegaram o serviço sujo aos boçais truculentos, ficariam impunes para sempre.
De quebra, o desastrado estratagema pareceu dar razão à cantilena falaciosa das viúvas da ditadura, de que os milicões eram angelicais e a bestialidade partiu de subalternos aloprados, sem que a alta oficialidade soubesse o que se passava nos porões.
Mas, por que esse detalhe me incomodou tanto?
Companheiros que foram torturados, têm manifestado seu compreensível desgosto por não verem seus algozes castigados de nenhuma maneira.
Apesar da objetividade da minhas colocações, não deixam de estranhar a abordagem que dou ao tema; parece-lhes racional demais. E meus sentimentos, onde foram parar?
Na verdade, impregnam cada linha que escrevi.
Pois, passado os primeiros (infernais) dias da tortura, fui percebendo como funcionava aquela engrenagem maldita.
Havia os que batiam, aplicavam choques, asfixiavam, penduravam no pau-de-arara. Equipes às vezes lideradas por um major, às vezes por um capitão. Homens de linha de frente, de ação.
A esses era relativamente fácil enganarmos -- ainda mais por estarem ocorrendo muitas quedas, de várias organizações ao mesmo tempo, o que os confundia e desnorteava. Cometiam erros crassos.
No entanto, várias vezes uma versão que colara durante a tortura dava motivo a novas e piores sevícias, algumas horas depois.
Fui percebendo que havia uma equipe de analistas na retaguarda, interpretando os dados obtidos pelos torturadores. Oficiais bem mais inteligentes e hábeis do que os açougueiros. Eles notavam algumas de nossas mentiras, pelas quais a turma da porrada passara batida.
Resultado: alertavam-na e o repique vinha pesado, não só porque os torturadores queriam obter as informações que estávamos escondendo, como por seu sentimento de humilhação ao descobrirem que os havíamos iludido.
Um ou outro desses analistas veio mais tarde falar comigo. Por eu ter sido comandante de Inteligência, viam-me como o inimigo que desempenhava funções correspondentes às deles, daí sua curiosidade.
Foram os que mais odiei no DOI-Codi/RJ. Porque eram sofisticados, tinham palavreado rebuscado, trajavam fardas impecáveis, um chegava até a usar perfume... e eram eles que verdadeiramente norteavam a tortura, apontando quem deveria apanhar e quanto deveria apanhar.
E os execrei principalmente por não serem primários como seus paus mandados e, mesmo assim, estarem desempenhando um papel tão hediondo.
Seu brilhantismo intelectual lhes permitia aquilatar a abominação para a qual contribuíam, mas eram totalmente destituídos de caráter. Encaravam aquilo como um jogo, fingindo não notar que, em vez de peças de xadrez, estavam sendo sacrificados seres humanos.
Então, para mim, o verdadeiro inimigo eram esses analistas e os oficiais superiores, não o rebotalho que agia nos porões.
Aos mandantes, eu detestava. Aos executantes, desprezava, como escória insignificante que eram.
Daí ter ficado desde o início entalada na minha garganta essa proposta de irmos atrás tão somente dos que deixaram suas digitais na cena do crime.
Meus alvos preferenciais eram exatamente os outros: aqueles que ficaram atrás da cortina puxando os cordéis, com a certeza de que não seriam atingidos por nosso fogo, nem responsabilizados depois.
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