Naquele tempo não havia tanta dificuldade para se garantir a subsistência, então o que eu economizava trabalhando durante um ano, digamos, bastava para ficar depois uns seis meses de papo pro ar, vivendo a vida. Quando a grana estava chegando no fim, conseguir novo emprego era questão de dias.
Assim é que, estando eu a desfrutar uma dessas férias autoconcedidas, a manhã já ia avançada quando uma barulheira infernal de gritos e sirenes me arrancou do sono dos justos.
Fui na janela e pasmei: meia São Paulo estava lá embaixo, na avenida e no viaduto Nove de Julho, olhando na direção... do meu edifício?
Estiquei a cabeça, olhei para baixo e nada vi que justificasse o interesse daquela multidão.
"Ora, se há tanta gente assim, a TV deve estar transmitindo", deduzi.
E foi a televisão que me informou do terrível incêndio que grassava no terceiro prédio à direita do meu.
Voltei à janela, estiquei-me todo e olhei na direção certa; dava para ver o fogo e a fumaça, sim.
Foi quando o "Oh!" da multidão acompanhou a queda de um coitado que preferiu esborrachar-se no chão a morrer em chamas.
Foi o que bastou para mim. Fechei a cortina, acordei minha companheira, vestimo-nos rapidamente e fugimos daqueles horrores, descendo os 19 andares pela escada, por receio de ficarmos presos no elevador.
Não quisemos saber mais nada do que ocorria. Só ligamos a TV, na casa do meu pai, para saber se já estava tudo terminado. Voltamos à noitinha.
Morreram 188 pessoas, boa parte vitimada pela ganância capitalista.
"Lá vem ele de novo com sua ideologia!" - pensarão alguns leitores.
Mas, curioso como todo jornalista de verdade, já me haviam chamado a atenção as normas de segurança extremamente rígidas do Edifício Joelma, alugado ao Banco Crefisul de Investimentos.
Então, o aparato montado para evitar que pessoas circulassem facilmente pelas dependências, escapando ao rígido controle de quem temia apenas e tão somente o roubo (de equipamentos? de segredos comerciais? de provas sabe-se lá do quê?), fez com que o prédio se tornasse uma imensa ratoeira no momento da catástrofe, causada por curto-circuito no sistema de ar condicionado..
Como no conto inesquecível de Edgar Allan Poe, os novos Príncipes Prósperos não conseguiram manter o inimigo fora de seu castelo estreitamente vigiado: outra morte vermelha entrou. A do fogo.
Eis o que consta do relatório dos bombeiros:
"...havia somente uma escada comum (não de segurança, que tem paredes resistentes ao fogo e ventilação para evitar gases tóxicos). Não havia sistema de alarme manual ou automático de forma que fosse rapidamente detectado, dado o alarme e desencadeadas as providências de abandono da população, acionamento de brigada interna, acionamento do Corpo de Bombeiros e outras mais. Não havia qualquer sinalização para abandono e controle de pânico. Apesar da estrutura do prédio ser incombustível, todo o material de compartimentação e acabamento não era e não havia qualquer controle de carga-incêndio, por isso rapidamente o incêndio se propagou e fugiu do controle.".Pior: sobreviventes entrevistados revelaram que nem sequer sabiam como chegar à tal escada comum, a qual era praticamente escondida para que todos fossem obrigados a utilizar o elevador. A obsessão por mantê-los sempre controlados.
A incúria criminosa e o chocante desprezo pela vida humana, constatados no Joelma, fizeram com que as autoridades impusessem uma série de normas para evitar outros morticínios inúteis.
De nada adianta terem mudado seu nome para Edifício Praça da Bandeira.
Nem a ridícula mobilização de influências políticas para que fosse trocado o número do prédio, de 184 para 182, a fim de evitar que os algarismos somassem 13.
O mau agouro é outro: estarem ocupando um espaço amaldiçoado pelas almas penadas de quem foi imolado no altar do L-U-C-R-O (como escrevia o economista Eugênio Gudin).
E com o mesmo objetivo do Crefisul, o de manterem a prevalência do L-U-C-R-O sobre todas as coisas.
Deveriam temer que seus projetos também virem cinzas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário