segunda-feira, 9 de março de 2009

Mário Pedrosa exílio, arte e imperialismo

“Todas as grandes obras-primas da Europa não são melhores que os grandes monumentos pré-colombianos”, afirmou Mário Pedrosa, na entrevista que nos concedeu no retornou do exílio.

Por Omar L. de Barros Filho e Júlio Tavares
•Versus 17 • dezembro de 1977

Mário Pedrosa foi Maiakovski, Eisenstein e Brecht, mas também foi Trotsky e Ho Chi Min. Sempre disse que arte era libertação e vida. Em 1968, o maior crítico de arte brasileiro foi para o exílio na Europa para voltar ao Brasil apenas em 1977. Era leitor fiel e amigo de Versus, e esteve ao lado do jornal mesmo nos momentos mais difíceis da publicação. Quando o encontramos em sua casa, sentado em uma cadeira de balanço e com um guardanapo de papel mal pendurado no pescoço, Mário Pedrosa comentou: “Há nove anos não como goiaba”. Era o fim do exílio. A entrevista a seguir foi publicada também por órgãos de imprensa nos Estados Unidos.

Versus – Já se passaram muitos anos desde a Semana de Arte Moderna... Agora você volta do exílio e propõe uma exposição de arte indígena...
Mário Pedrosa – Uma comparação entre a exposição de índios e a arte moderna é uma comparação difícil porque a exposição de índios é um projeto, e a arte moderna é uma realização histórica. O que eu posso dizer é que a exposição de arte indígena é, de certa maneira, uma reação ao que se faz hoje em matéria de arte dita moderna. É uma proposta para que os artistas brasileiros – não digo que se virem para a cultura indígena – tenham uma noção mais concreta de que a arte moderna é hoje em dia uma atividade de ordem cosmopolita. Função, digamos com muita brutalidade, do mercado internacional.

Outro dia me perguntavam sobre vanguarda, a noção de vanguarda. Eu não acredito mais em vanguarda, que era muito importante no tempo em que as proposições ditas de arte moderna tinham realmente valor de vanguarda. Era uma invenção de artista, era uma experiência válida em face do academicismo, em face de uma escola de arte, de uma tradição, de uma maneira de ver a arte em função de uma burguesia exausta, atrasada na Europa. Havia essa contradição.

A arte moderna nasceu, hoje podemos dizer, em função do imperialismo, em função da expansão imperialista nos velhos países europeus. Nasceu da intervenção imperialista na África, por exemplo. Os naturalistas europeus – os antropólogos da época – descobriram nos países africanos atividades de ordem cultural de uma grande qualidade, de uma estranha qualidade. A arte negra que se descobriu então, em Paris, teve uma importância enorme sobre o cubismo. Picasso mesmo teve influência da arte negra descoberta então na Europa.

Essa descoberta começa exatamente na época em que o imperialismo invadia os continentes africano, americano etc. Com espanto, os naturalistas descobriram uma atividade de povos fora da civilização européia, capazes de fazer artefatos, de fazer obras que eles não tinham coragem de dizer que eram obras de arte. Quando se reconheceu que na África e nos povos pré colombianos se fazia arte, foi muito tarde, porque eles não concebiam que a arte pudesse ser produto senão de um desenvolvimento capitalista, burguês, como a arte européia, a arte greco romana, a do Renascimento. Eles precisaram de um estudo, de um trabalho, de um desenvolvimento, pois eles não acreditavam que os povos subdesenvolvidos fossem capazes disso. Só há cinqüenta anos, talvez menos, se começou a achar que os fetiches africanos fossem tão belos quanto as melhores esculturas européias. A Vênus de Milo, tão proclamada, hoje é considerada tão bonita quanto um fetiche africano. Hoje isso é uma banalidade, e a arte teve sempre um desenvolvimento prodigioso fora do desenvolvimento industrial europeu.

Esta é a causa de que hoje esse desenvolvimento da arte moderna – formidável numa época – está esgotado. Todas as grandes obras primas da Europa não são melhores que os grandes monumentos pré colombianos. Esse é um fato real, importante, e não há porque hoje se discutir essas coisas. Porque então se levantava a hipótese de que os povos atrasados, os povos africanos, as artes pré-históricas não eram importantes, porque não implicavam em desenvolvimento econômico, industrial, tecnológico, das velhas civilizações européias. E é por isso que se descobriu na arte grega, na arte arcaica, na arte egípcia, nas artes pré colombianas, monumentos extraordinários em matéria de arte.

Versus– Mário, a exposição do socialismo realizado, que foi feita recentemente na Itália, colocou outra vez na ordem do dia a discussão da liberdade e da criação, e a própria discussão do que significa arte. O que significa liberdade de criação para o artista dentro do capitalismo e dentro dos Estados ditos socialistas? E qual a influência dessa exposição do socialismo realizado dentro dos Estados ditos socialistas na luta pela democracia socialista? Como você vê isso?
Mário Pedrosa – Há um ensaio sobre o condicionamento na civilização burguesa, onde eu estudo o condicionamento da criação artística no capitalismo na época atual, partindo das pesquisas de Marx sobre a arte no pré capitalismo. Na passagem do pré–capitalismo ao Renascimento, os artistas tinham uma classificação de trabalhador, de artesão. Na produção artesanal, quem dominava eram as corporações de artistas, em que o artesão ia para a corporação, trabalhava nela e a obra de arte que ele fazia não se traduzia no valor de mercado, não ia para o mercado.

Vocês sabem que a passagem da corporação para a manufatura foi um processo demorado. Na época da corporação, onde havia um mestre, ele aprendia com o mestre, com um sapateiro, com um construtor, com um pedreiro, faziam um trabalho com o mestre, acabavam também sendo mestres e poderiam vir a ser artistas importantes. Os grandes artistas, construtores de catedrais, um grande número deles, eram anônimos, porque eles não eram “o artista individual que se sobressai a tudo”. A passagem do regime artesanal para o regime de produção manufatureira, capitalista, se estendeu para a Europa inteira, Florença etc.

Gauguin, Van Gogh e Cézanne morriam de fome. Hoje, a burguesia não deixa que isso aconteça: ela absorve os artistas. Aceita todas as obras, polui, apodrece a criação. Sem forças para impor seus valores, inventou o marchand...

Isto foi uma mudança radical que houve no estatuto das artes na Europa, e que durou alguns séculos, durou até o desenvolvimento capitalista europeu, que criou a sociedade industrial moderna em que a burguesia começou a ser o mercado, a consumidora dos trabalhos dos grandes artistas. Os artistas passaram a fazer obras para a sociedade capitalista. Aí, a sociedade capitalista criou seus museus, suas academias de belas artes, que nascem em um momento importante, com o estado burguês, com o estado absolutista, uma coincidência importante.

Aparece a fabricação das belas artes com um valor próprio que não tinha mais nada que ver com as antigas corporações em que os artesãos eram trabalhadores coletivos anônimos como todo trabalhador. Agora o artista passa a ser um homem que faz uma obra especial, e que tem um mercado especial. Isto nasceu na Itália, na França e depois se espalhou por toda a Europa, e por aqui no começo do século XIX, com a missão francesa. Então havia regras para se fazer uma obra considerada pela academia como de alta beleza e isso codificou a profissão de artista, codificou a maneira de valorizar a obra, passou a existir uma obra de arte especial, o ideal de beleza passou a ser construído e até organizado de maneira que todos os artistas entrassem para a academia, onde terminavam fazendo um concurso com uma obra de arte determinada pelos professores.

A arte moderna no nosso século começou exatamente quando nascia o imperialismo, quando saiam e iam explorar os países coloniais. Não foi só uma coisa ruim porque daí, a partir da exploração da África, da América, começaram a descobrir que havia obras importantes que podiam ser igualadas com as grandes obras ocidentais. Para que um naturalista, um antropólogo, ousasse comparar um fetiche africano com a obra grega, foi preciso um grande desenvolvimento intelectual, uma grande audácia.

A arte moderna foi essa arte nascida da decadência da arte acadêmica européia. Nós hoje estamos numa época em que a própria arte moderna, que teve esse desenvolvimento enorme, também já esgotou o seu processo de crescimento. E então, como era uma arte que passou a ter um êxito formidável em toda parte, passou a ser dominada por uma categoria nova que não existia propriamente, que era a do marchand. O marchand passou a ter uma importância enorme na distribuição dessas artes modernas. E daí também nasceram os museus de arte moderna, as bienais, todos para o desenvolvimento dessa categoria nova.

A Semana de Arte Moderna de São Paulo é um produto do desenvolvimento da época. Hoje nós estamos numa outra época, em que o capitalismo chegou ao auge do desenvolvimento internacional, a um capitalismo internacional. O auge da dominação colonial chegou ao fim e novos horizontes se abrem para a cultura mundial. Basta ver a crise profunda que há entre o hemisfério norte e o hemisfério sul, entre os países da periferia e os países altamente desenvolvidos. Isso representa uma nova etapa no plano das artes. Nos países como o nosso, a arte moderna se desenvolveu, teve artistas bons, mas se repete porque o novo que se faz na Europa, pode ser o velho nos Estados Unidos, e o novo que se faz aqui pode ser o novo que se faz em Paris... As ligações são muito grandes e aí existe uma repetição de iniciativas. Há anos, os artistas modernos, os artistas da maior importância hoje para o mundo, morriam de fome como Van Gogh, Gauguin, o próprio Cézanne. Hoje, a burguesia parece que tem medo: ela foi acusada de deixar morrer alguns homens de gênio; só depois de mortos a obra deles era acolhida e atingia preços descomunais no mercado. Hoje ela virou liberal.

As artes perderam os valores intrínsecos do começo do Século XIX, quando se desenvolveu o Renascimento, passou-se para o barroco, do barroco para a arte neoclássica. São todas escolas que se desenvolveram pelo mundo. Hoje a burguesia age como o stalinismo na Rússia. O stalinismo destruía as obras, esmagava as obras que eles não achavam boas. A burguesia, o liberalismo burguês apodrece, aceita todas, qualquer coisa ele aceita imediatamente, levantada como uma coisa moderna. Nas bienais isso foi comum. No começo das bienais, alguns artistas modernos não eram recebidos, e hoje, as primeiras vanguardas que aparecem... As obras mais escandalosas são consideradas como obras de arte, vanguarda, e ganham prêmio. Antigamente a vanguarda dificilmente ganhava prêmios. Hoje, as vanguardas mais estapafúrdias ganham prêmio imediatamente. O liberalismo tem a mesma função do stalinismo. O stalinismo destrói, fisicamente, o liberalismo aceita todas as obras, polui, apodrece a criação. Ainda hoje perdura essa circunstância. A burguesia não tem mais força de impor os valores que são dela, ela aceita qualquer coisa porque tem medo que amanhã descubram que valha muita coisa.

P– O capitalismo destrói, na realidade, a possibilidade de existir uma arte livre, aberta, porque o capital prostitui a arte...
Mário Pedrosa– Isso é interessante porque quando começaram as exposições de arte moderna, as bienais, os países ditos socialistas começaram a participar nessas associações internacionais de críticos de arte, que eu fiz parte – nas bienais, nas grandes manifestações de arte internacional. No começo havia imediatamente uma imposição de ordem das autoridades deles para que os artistas seguissem a linha, digamos, da arte social, do realismo socialista. Pouco a pouco, com o desenvolvimento das organizações internacionais, com o êxito que tinham inclusive nos países ditos socialistas, os responsáveis pela arte nesses países não se sentiam com força para impedir que os artistas de seus países passassem a criar com liberdade como nos países do ocidente capitalista. Eu vi, na Polônia, na Tchecoslováquia, artistas novos, rapazes que eram mandados para as bienais, mas não tinham o beneplácito dos dirigentes. Uma vez eu fui convidado para uma espécie de exposição, digamos clandestina, de alguns artistas novos da Tchecoslováquia, antes da Primavera de Praga. Havia uma tendência a capitular da alta burocracia, isto no plano cultural. E eles levavam ao extremo a arte ocidental, muitos começaram a produzir arte moderna... Até na Rússia havia isso, por exemplo, a arte abstrata.

Estive na Rússia uma vez, quando dirigi a Bienal de São Paulo. Eu queria convocar a Rússia para participar da Bienal. A minha idéia era convocar a Rússia para participar e ao mesmo tempo pedir a ela os artistas não oficiais. Os artistas do início da revolução fizeram coisas formidáveis, como Kandinski, que, ao lado de Maiakovski, fizeram as ruas de museu. Esses artistas foram todos condenados quando veio o stalinismo e as suas obras ficaram nos porões dos grandes museus de Petrogrado, todo o tempo. E eu, no tempo que passei por Moscou, como era figura importante, diretor de Bienal e de Museu, fui recebido como uma autoridade, e não como velho militante... E então eu ia com o diretor do Museu de Petrogrado percorrer as salas cheias de gente e examinar as obras, e o diretor me explicando tudo com todos os detalhes. Eu pedi a ele que me mostrasse as salas onde estavam as obras dos artistas importantes. Então, ele me deixou na porta e foi embora. Eu entrei lá dentro, e estava uma senhora com uma filha mais moça que parecia um rato de porão, pálida como o diabo, parecia que não saía dali. Ela veio me explicar e eu vi coisas antigas do Petrakov, Maiakovski, do Kandinski, do Chagall. Todos estavam lá, não se deixava sair. Muitos anos depois deixaram algumas coisas saírem para uma grande exposição em Paris.

A coisa engraçada foi que, quando saí, fui falar de novo com a Ministra da Cultura, com quem já tinha conversado antes. Eu dizia a ela: madame, nós vamos participar, a Bienal de São Paulo está fazendo o histórico de toda a arte moderna, já fizemos várias exposições, e falta agora a dos construtivistas russos que têm uma importância extraordinária para a história da arte moderna no mundo. Ela disse: quem? Esses que estão lá embaixo? Ora, esses absolutamente não valem nada...

Diante da reação dela, eu retruquei: a senhora nos empresta as obras e nós expomos fora do pavilhão russo, quer dizer, deixamos com a senhora um espaço para sua seleção e expomos as outras em outro lugar, pois elas completam a história do movimento que nós estamos fazendo desde o começo, desde o cubismo e tudo. Ela disse: não pode ser, isso não tem importância, isto não é história. Eu repliquei: mas a senhora, que entende muito disso tudo, deveria saber que a história não se anula. Nisso, havia sobre a mesa umas figuras do Portinari na capa de um catálogo da Bienal que eu tinha mandado com antecedência, e ela comentou: mas isto é belo? O homem não é isto! Aí eu disse: madame, eu estou admirando muito que a senhora sustente opiniões que me parecem a de um Tolstoi, e não a de um marxista. E daí por diante eu esculhambei bastante...

P– Quer dizer que ela não gostou do Portinari?
Mário Pedrosa– Ela achava tudo muito feio, muito deformado. Vocês vejam aí que a burocracia, que o stalinismo, tem o gosto de uma velha burguesia ocidental. O gosto deles é o mesmo da burguesia do século XVIII... Stalin gostava muito de colunas, colunas jônicas, dóricas, não sei o quê... em tudo ele metia colunas. Quer dizer, era o gosto de uma velha burguesia que não tinha nada a ver com o gosto moderno. Nem criava o novo gosto, seguia os das velhas burguesias do Ocidente. Exatamente isso. Aliás, na Polônia, onde havia um clima de maior liberdade, esculhambavam o gosto do stalinismo.
Voltando à velha ministra. Num certo momento, quando voltei a encontrá-la para agradecer a cessão de obras, ela me disse: o senhor está satisfeito por conseguir as obras para sua exposição? Eu respondi: estou, mas não estou de todo satisfeito porque eu sou um homem teimoso, como a senhora já me disse. É que a senhora não nos cedeu os construtivistas que estão aqui no Museu.

Depois, eu escrevi para ela: a senhora disse que essa gente não tem valor, que não tem valor nenhum, que se pode escrever a história da arte sem se levar em conta esses artistas. Então eu pergunto: por que a senhora guarda isso? Por que não destrói? Eu proponho à senhora que me dê, em homenagem ao reatamento de relações do Brasil com a Rússia, e ceda para nós, para os museus brasileiros, que nós guardamos. Ou então venda, em igualdade de condições, que eu me proponho a comprar. Entreguei a carta ao cara que me acompanhava para cima e para baixo lá em Moscou. Era o meu burocrata. Ele era um sem vergonha, gostava de me levar para passear, ver as bailarinas, as mulheres bonitas e tal. Bem, ele levou a minha carta e eu lhe perguntei como a ministra tinha recebido. Ele disse: Mister Pedrosa, eu estou aqui para informar das demarches que o senhor faz, mas não estou aqui para informar das reações da senhora ministra...

FONTE : http://www.versus.jor.br/28_mario_pedrosa.php

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