Adoniran Barbosa
SINUCA DE BICO
Jackson Machado de
Assis e do Pandeio – Otávio Martins
Ainda não consegui sair desta
sinuca de bico. Mas, nem por isso me sinto derrotado. Sair de uma
sinuca de bico é como acertar numa centena no jogo
do bicho; uma contra
novecentas e noventa e nove. A chance de ver alguém sair de uma
sinuca de bico, já se pode considerar um privilégio. Talvez, para
se entender melhor, seja necessário evocar um samba de Noel: “...
Batuque é um
privilégio/Ninguém aprende samba no colégio...”.
Do contrário, eu e alguns amigos meus, que varáramos as noites,
jogando por aí, teríamos aprendido a superar essa dificuldade da
sinuca.
Ter assistido a uma partida entre o
Praça e o Carne Frita (duas feras do pano verde),
também, pode-se considerar um privilégio. Tudo aconteceu numa
sinuca que ficava ali na Ipiranga, quase esquina com a São
João, em frente à banca de jornal. Anos sessenta. Para adentrar a
sinuca, propriamente dita, teria que passar por um corredor com suas
oito cadeiras de engraxates; quatro de cada lado; colocadas acima do
nível da passarela. Na altura do chão, os engraxates, no alto, os
clientes.
Numa fria madrugada de agosto,
formávamos uma plateia de uns quinze amantes do jogo, o qual se
desenvolvia sobre o pano verde de uma bem postada mesa, sustentada
por seus possantes seis pés. Foram mais de dez minutos de suspense.
O Carne Frita colocou o Praça numa verdadeira sinuca
de bico, naquela mesa do meio; caçapa do canto, à direita.
O Praça era um dos maiores
nomes da sinuca nessa época. Lembro, também, do Rui Chapéu.
Grande figura e, ainda, um taco de respeito; tinha um estilo próprio,
até mesmo para passar o giz. O Carne Frita, sem comentário.
O Praça, com a ajuda do seu
taco e algumas miradas, de um olho só, quase encostando o rosto na
lateral da mesa, media, ou calculava, as tabelas e efeitos que seriam
necessários para sair daquela situação criada pela quase malícia
do Carne Frita. Parecia que a bola branca havia sido colocada
com a mão. Eu acho que todos os outros, suavam frio durante aqueles
dez minutos que pareciam intermináveis. Conjecturas imagino,
mirabolantes; silenciosas, a que o Praça se obrigava.
Uma verdadeira tacada de mestre. A
bola rodopiou sobre o próprio eixo, imaginário, na largada; pegou
um efeito diabólico. Seis tabelas e bola. Exatamente como ele havia
cantado:
- Seis tabelas e bola – ainda por
cima, matou a bola seis, a rosinha, na caçapa do meio. Com oito
pontos à frente do Carne Frita, era o fim. Talvez a maior
final de todos os tempos da Sinuca Nacional.
O Carne Frita ficou quase
dois meses sem aparecer lá no snooker da Ipiranga. Efeito
moral ou, quem sabe, penitência. A verdade é que a sinuca melhor
freqüentada da cidade viu-se privada, por todo aquele tempo, da
maestria do Carne Frita.
Afora a mesa da sinuca, lembrei de
outro quadrado, este formado pelas esquinas da Ipiranga com a Avenida
São João. Também garrei a imaginar o que aconteceria, hoje, no
coração do Caetano Veloso, se cruzasse por lá?
Escrevendo esta crônica, num breve
momento, a memória trouxe-me a lembrança duma antevéspera de
Natal, 1980. Tínhamos acabado de sair do Gato que Ri, o
Adoniran Barbosa e eu, ali no Largo do Arouche, bem em frente
às floriculturas. Falou que gostaria de dar uma esticadinha até a
São João com Ipiranga, antes de ir pra casa. Morava lá pro lado do
Aeroporto. No restaurante, comemos uma bela macarronada al sugo.
Era sempre ele quem pagava. Antes, uma dose de uísque cada um,
depois, um cigarrinho. Pegamos a Vieira de Carvalho, costeamos aquele
canto da Praça da República e entramos na Ipiranga; ainda olhamos,
rapidamente, uns cartazes do Cine Marabá e logo chegamos ao
cruzamento. Vasculhou, com o seu olhar, os quatro cantos, já com os
olhos marejados; fingi que não vi. Acho que se lembrou de outros
tempos. Pra mim, ainda era a mesma esquina. Virou-se, fez sinal prum
táxi, já passava das dezesseis horas. Avançamos pela Ipiranga,
entramos na São Luís. Depois de passar pelo farol, entre o início
da Consolação e a Biblioteca Municipal Mário de Andrade, chegamos
ao final do Viaduto Nove de Julho. Boca da Santo Antonio, quase
chegando à Praça Craveiro Lopes. O táxi parou, era o meu ponto de
descida. Antes de eu sair do táxi, vejam o que ele fez: meteu a mão
no bolso de dentro do paletó – aquele xadrezinho – trazendo, na
volta, algum dinheiro. Eu andava numa pindaíba de dar pena. Disse
que era a minha comissão do show da Unicamp, o qual iria se realizar
no dia oito de janeiro, do próximo ano. Numa formatura, parece.
Queria ficar livre do compromisso, completou. Ele foi-se pra casa,
com o taxi, deixando-me, ali, com aquele nó na garganta.
Onde era a sinuca, parece que virou
um fliperama, depois, uma loja. Os engraxates sumiram varridos pelo
efeito Nike, ou Adidas, sabe-se lá. O Bar dos Artistas, lugar
onde os músicos da noite, “desempregados” – formando uma
grande orquestra em silêncio – ficavam aguardando algum chamado
emergencial duma casa noturna qualquer. O Bar dos Artistas,
que não fechava nunca, tinha o melhor sanduíche de pernil da
cidade, feitos pelos sócios, dois portugueses, virou um bingo,
informatizado. Atravesso a São João e não encontro o Jeca, onde,
por muitas madrugadas, costumava tomar um caldo verde. Que tristeza!
Dizem que passou o ponto pro cara do mate gelado, que funcionava logo
descendo a São João, em direção ao Largo Paissandu.
Lembram do esquinão, com aquele
baita vidrão, parecendo uma grande vitrine, onde funcionava o Bar
Brahma? Havia cedido a um consórcio de carros, ou de motos; nem sei
que pôrra é aquilo. O Bar Brahma voltou, depois de um tempo, ao
lado, pela São João. Como diria o cubado Silvio Rodriguez, que
imortalizou a Yolanda do Pablo Milanês, “És lo mismo, pero no
és igual”. Espero que não venha acontecer ali, a cena de
sangue prevista pelo Paulo Vanzolini (cantada pela Márcia), numa de
suas rondas pelas noites paulistanas.
“Em pé”, mesmo, só o
Citibank. Esse eu quero ver tirarem dali, mesmo depois do escândalo
dos Fundos de Pensões, onde esteve envolvido até a medula.
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