No último mês de abril, em dia tão sem notícias impactantes como hoje, escrevi sobre meus recuerdos da fase em que tentara estabelecer-me como crítico de cinema: O crítico acidental.
Foi entre 1979 e 1984. Há exatos 25 anos, a crise do papel expulsou-me das pequenas editoras em que conseguia garantir meu sustento sem fazer tantas concessões ao sistema.
Ou seja, o preço do papel subiu muito e a editora na qual eu trabalhava fixo precisou extinguir metade das revistas sob meu comando.
Com as restantes eu não conseguiria pagar minhas contas. E os frilas também estavam escasseando, naquela fase de vacas magras.
Então, tive de dar uma guinada de 180º na minha carreira, deixando de fazer o que gostava para fazer o que remunerava (razoavelmente). No caso, jornalismo econômico, que sempre me causou urticária...
Vez por outra, continuava publicando uma ou outra crítica por aí.
E me lembro de que em 1994, quando Quentin Tarantino virou o xodó dos novos bárbaros que posavam de críticos na grande imprensa, escrevi o que deveria ser escrito sobre ele.
Tagarela, atarantado, Tarantino foi o título. O Jornal da Tarde (SP) aproveitou, mas num espaço para crônicas, que eu esporadicamente frequentava.
O motivo foi o filme que ergueu a carreira até então medíocre de Tarantino e reergueu a de John Travolta: Pulp Fiction.
Simplesmente detestei que, pretextando homenagear as velhas e boas novelas policiais do passado, ele as apresentasse como o que não eram. David Goodis ficaria horrorizado.
Seus gangstêres falavam mais palavras numa única sequência do que os gangstêres da verdadeira pulp fiction no livro inteiro. Era um blablablá interminável, que me deixou com a bunda doendo: não encontrava posição na poltrona do cinema que me satisfizesse, tal o desagrado que me causaram os 154 minutos desse filme não havia nem sequer 90' aproveitáveis.
Fã de carteirinha dos policiais franceses das décadas de 1960 e 1970, dirigidos por cineastas de verdade como Robert Enrico e René Clement, detestei a abordagem espalhafatosa e intelectualóide de Tarantino.
A graça do gênero estava em ser lacônico, seco, despojado. E, nas mãos de um Jose Giovanni, p. ex., não dar a mínima para juízos de ordem moral.
Ou seja, o cinema estadunidense sempre apresentara as histórias de gangstêres sob ótica puritana e maniqueísta. As forças da ordem enfrentando os agentes da desordem. No final, o gângster morre e os videotas têm sua ansiada catarse (agora é o terrorista quem morre, na tralha hollywoodesca típica).
Já os melhores policiais franceses (como os muitos derivados das novelas de Giovanni, que ele próprio adaptou para o cinema) interessavam-se apenas em esmiuçar as características dos dois tipos de profissionais que se opunham.
Desde o antológico O Samurai (1968), de Jean-Pierre Melville, esta passou a ser a tônica: o gângster não como uma aberração (os mad dogs do cinema estadunidense), mas como um ser humano com defeitos e também virtudes, só que dedicado a um ofício diferente.
Cinema não é púlpito, para nos impingir sermões. Deve contar histórias e nos deixar as conclusões, ao invés de embutí-las no viés adotado.
O atarantado Tarantino, no fundo, foi aclamado pelos pseudocríticos de uma época que baniu o pensamento crítico. Como o conteúdo dos seus filmes era raso como uma poça d'água, sobressaía mesmo a embalagem extravagante, copiadas dos mestres.
O que são os dois Kill Bill, se não uma mistura indigesta dos westerns de Sergio Leone com as fitas de artes marciais estreladas por Bruce Lee?
Pior: seus duelos coreografados não têm uma centelha sequer do gênio de Bruce Lee, e o visual chupado de Leone nos deixa saudades das reflexões que o mestre italiano embutia em seus filmes de ação.
A grandeza de Leone reside em ter conseguido realizar fitas atraentes para o grande público, mas que falavam muito mais aos que conseguiam fazer uma leitura mais aprofundada.
Assim, Três Homens em Conflito é um verdadeiro líbelo contra as guerras, Era Uma Vez o Oeste disseca magnificamente a relação entre mito e realidade, Quando Explode a Vingança nos ensina muito sobre as revoluções e Era Uma Vez na América se constitui numa das mais grandiosas abordagens cinematográficas da transição da sociedade aventureiresca da primeira metade do século passado para o subsequente primado insípido das grandes organizações.
Tarantino me faz lembrar uma ótima frase do Paulo Francis: você olha para um ator francês como o Philippe Noiret e vê toda uma civilização atrás dele, mas se você olha para um ator estadunidense típico, nada vislumbra além do vazio.
Sérgio Leone desenvolveu uma forma caprichadíssima, com ênfase no aproveitamento impecável das músicas de Ennio Morricone, para atrair os espectadores e tentar motivá-los a refletirem sobre temas importantes.
Tarantino copiou essa forma caprichadíssima, inclusive usando e abusando dos mesmíssimos temas de Morricone, apenas para agregar a si próprio uma aura de sofisticação. Atrás de um Pulp Fiction e de um Kill Bill nada há além do vazio.
Apresenta como justificáveis os assassinatos mais cruéis e o escalpelamento das vítimas, desde que estas sejam nazistas. Direitos humanos só existem para as pessoas, com as não-pessoas tudo é permitido.
Enganam-se os que relevam a desumanidade intrínseca do filme por considerá-lo apenas uma farsa (afinal, os acontecimentos históricos são deturpados a ponto de Tarantino dar a Hitler uma morte diferente da que ele teve).
Esta lavagem cerebral hollywoodesca vem de longe e intensificou-se ao máximo após o atentado contra o WTC. Quer incutir em cada videota do planeta a noção de que vale tudo para defender a sociedade dos seus descontentes. É a anti-Declaração dos Direitos Humanos.
Ao engajar-se nessa empreitada fascistóide, Tarantino reafirmou uma velha verdade: o vazio acaba sempre sendo preenchido pela força dominante.
Então, ele está agora ecoando a ideologia do capitalismo em sua fase de putrefação, quando não tem mais valores positivos a oferecer e só tenta manter os cidadãos apavorados diante da mera possibilidade de alteração do status quo, de maneira que não se dêem conta do quanto o status quo é irracional e injusto.
Ao constatar que a mediocríssima crítica cinematográfica atual aclamou em uníssono um filme tão nocivo e desumano quanto Bastardos Inglórios, pude dimensionar para onde a indústria cultural nos está levando, como vanguarda do retrocesso que sucedeu as jornadas gloriosas de 1968: para vários séculos atrás na história da civilização, cancelando até o Iluminismo.
O horror, o horror!
Foi entre 1979 e 1984. Há exatos 25 anos, a crise do papel expulsou-me das pequenas editoras em que conseguia garantir meu sustento sem fazer tantas concessões ao sistema.
Ou seja, o preço do papel subiu muito e a editora na qual eu trabalhava fixo precisou extinguir metade das revistas sob meu comando.
Com as restantes eu não conseguiria pagar minhas contas. E os frilas também estavam escasseando, naquela fase de vacas magras.
Então, tive de dar uma guinada de 180º na minha carreira, deixando de fazer o que gostava para fazer o que remunerava (razoavelmente). No caso, jornalismo econômico, que sempre me causou urticária...
Vez por outra, continuava publicando uma ou outra crítica por aí.
E me lembro de que em 1994, quando Quentin Tarantino virou o xodó dos novos bárbaros que posavam de críticos na grande imprensa, escrevi o que deveria ser escrito sobre ele.
Tagarela, atarantado, Tarantino foi o título. O Jornal da Tarde (SP) aproveitou, mas num espaço para crônicas, que eu esporadicamente frequentava.
O motivo foi o filme que ergueu a carreira até então medíocre de Tarantino e reergueu a de John Travolta: Pulp Fiction.
Simplesmente detestei que, pretextando homenagear as velhas e boas novelas policiais do passado, ele as apresentasse como o que não eram. David Goodis ficaria horrorizado.
Seus gangstêres falavam mais palavras numa única sequência do que os gangstêres da verdadeira pulp fiction no livro inteiro. Era um blablablá interminável, que me deixou com a bunda doendo: não encontrava posição na poltrona do cinema que me satisfizesse, tal o desagrado que me causaram os 154 minutos desse filme não havia nem sequer 90' aproveitáveis.
Fã de carteirinha dos policiais franceses das décadas de 1960 e 1970, dirigidos por cineastas de verdade como Robert Enrico e René Clement, detestei a abordagem espalhafatosa e intelectualóide de Tarantino.
A graça do gênero estava em ser lacônico, seco, despojado. E, nas mãos de um Jose Giovanni, p. ex., não dar a mínima para juízos de ordem moral.
FRANCESES DESCARTAVAM
MANIQUEÍSMO HOLLYWOODESCO
MANIQUEÍSMO HOLLYWOODESCO
Ou seja, o cinema estadunidense sempre apresentara as histórias de gangstêres sob ótica puritana e maniqueísta. As forças da ordem enfrentando os agentes da desordem. No final, o gângster morre e os videotas têm sua ansiada catarse (agora é o terrorista quem morre, na tralha hollywoodesca típica).
Já os melhores policiais franceses (como os muitos derivados das novelas de Giovanni, que ele próprio adaptou para o cinema) interessavam-se apenas em esmiuçar as características dos dois tipos de profissionais que se opunham.
Desde o antológico O Samurai (1968), de Jean-Pierre Melville, esta passou a ser a tônica: o gângster não como uma aberração (os mad dogs do cinema estadunidense), mas como um ser humano com defeitos e também virtudes, só que dedicado a um ofício diferente.
Cinema não é púlpito, para nos impingir sermões. Deve contar histórias e nos deixar as conclusões, ao invés de embutí-las no viés adotado.
O atarantado Tarantino, no fundo, foi aclamado pelos pseudocríticos de uma época que baniu o pensamento crítico. Como o conteúdo dos seus filmes era raso como uma poça d'água, sobressaía mesmo a embalagem extravagante, copiadas dos mestres.
O que são os dois Kill Bill, se não uma mistura indigesta dos westerns de Sergio Leone com as fitas de artes marciais estreladas por Bruce Lee?
Pior: seus duelos coreografados não têm uma centelha sequer do gênio de Bruce Lee, e o visual chupado de Leone nos deixa saudades das reflexões que o mestre italiano embutia em seus filmes de ação.
A grandeza de Leone reside em ter conseguido realizar fitas atraentes para o grande público, mas que falavam muito mais aos que conseguiam fazer uma leitura mais aprofundada.
Assim, Três Homens em Conflito é um verdadeiro líbelo contra as guerras, Era Uma Vez o Oeste disseca magnificamente a relação entre mito e realidade, Quando Explode a Vingança nos ensina muito sobre as revoluções e Era Uma Vez na América se constitui numa das mais grandiosas abordagens cinematográficas da transição da sociedade aventureiresca da primeira metade do século passado para o subsequente primado insípido das grandes organizações.
Tarantino me faz lembrar uma ótima frase do Paulo Francis: você olha para um ator francês como o Philippe Noiret e vê toda uma civilização atrás dele, mas se você olha para um ator estadunidense típico, nada vislumbra além do vazio.
Sérgio Leone desenvolveu uma forma caprichadíssima, com ênfase no aproveitamento impecável das músicas de Ennio Morricone, para atrair os espectadores e tentar motivá-los a refletirem sobre temas importantes.
Tarantino copiou essa forma caprichadíssima, inclusive usando e abusando dos mesmíssimos temas de Morricone, apenas para agregar a si próprio uma aura de sofisticação. Atrás de um Pulp Fiction e de um Kill Bill nada há além do vazio.
UMA ANTI-DECLARAÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS
Pior, muito pior, é seu recente Bastardos Inglórios. Trata-se de um filme que faz apologia de bestialidades a um nível que Tropa de Elite nem chega perto.DOS DIREITOS HUMANOS
Apresenta como justificáveis os assassinatos mais cruéis e o escalpelamento das vítimas, desde que estas sejam nazistas. Direitos humanos só existem para as pessoas, com as não-pessoas tudo é permitido.
Enganam-se os que relevam a desumanidade intrínseca do filme por considerá-lo apenas uma farsa (afinal, os acontecimentos históricos são deturpados a ponto de Tarantino dar a Hitler uma morte diferente da que ele teve).
Esta lavagem cerebral hollywoodesca vem de longe e intensificou-se ao máximo após o atentado contra o WTC. Quer incutir em cada videota do planeta a noção de que vale tudo para defender a sociedade dos seus descontentes. É a anti-Declaração dos Direitos Humanos.
Ao engajar-se nessa empreitada fascistóide, Tarantino reafirmou uma velha verdade: o vazio acaba sempre sendo preenchido pela força dominante.
Então, ele está agora ecoando a ideologia do capitalismo em sua fase de putrefação, quando não tem mais valores positivos a oferecer e só tenta manter os cidadãos apavorados diante da mera possibilidade de alteração do status quo, de maneira que não se dêem conta do quanto o status quo é irracional e injusto.
Ao constatar que a mediocríssima crítica cinematográfica atual aclamou em uníssono um filme tão nocivo e desumano quanto Bastardos Inglórios, pude dimensionar para onde a indústria cultural nos está levando, como vanguarda do retrocesso que sucedeu as jornadas gloriosas de 1968: para vários séculos atrás na história da civilização, cancelando até o Iluminismo.
O horror, o horror!
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