domingo, 24 de janeiro de 2010

A SÃO PAULO, COM AMOR E DOR

"São oito milhões de habitantes
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor


São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Caseados à prestação
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito
São, São Paulo
Meu amor
São, São Paulo
Quanta dor"
(Tom Zé)
A primeira lembrança que tenho de São Paulo é o quarto centenário, em 1954.

Eu estava com três anos e meus pais me levaram na festa que teve lugar no Viaduto do Chá, à noite.

Uma multidão como eu nunca vira e as luzes poderosas, refletidas nos aviõezinhos de papel laminado que jorravam do alto dos edifícios, ficaram gravadas para sempre na minha memória.

E eu soube que vivia numa cidade chamada São Paulo. Que essa cidade fazia 400 anos. E que era muito mais imponente naquele local das festividades do que onde eu residia.

Fui captando melhor esse contraste à medida que crescia.

Morava na Mooca, bairro operário que gravitava em torno de um cotonifício gigantesco, o Crespi, tomando um quarteirão inteiro.

Além disso, havia muitas outras fabriquetas. E na Mooca moravam, principalmente, os operários dessas indústrias e os que nelas haviam trabalhado. Gente simples e austera.

Ao centro eu ia com minha mãe uma vez por mês, pois, naquele tempo, pagava-se o aluguel no escritório do locador.

Bom para mim, que via cenários diferentes e era premiado com uma guloseima do Café Moka, na Praça da Sé.

Sentia-me achatado pelos arranha-céus e estranhava todos aqueles homens de terno passando apressados. Parecia estar num mundo diferente, de grandes lojas, vitrines enfeitadas e movimento incessante.

Aquilo me parecia o progresso, a modernidade, desvalorizando, aos meus olhos de menino, o bairro pobre do meu dia a dia.

O chamado centro histórico de São Paulo, entre as praças da Sé e da República, concentrava comércio, entretenimento e bancos, principalmente.

E a proximidade do Palácio do Governo, nos Campos Elísios, ajudava a manter essa região como a principal da cidade.

Mas, o Palácio se foi para o Morumbi, em 1965.

Os ricaços, aos poucos, mudaram dos arredores. E, a partir da inauguração do Minhocão, em 1971, os Campos Elísios e seu entorno entraram em decadência acelerada.

O comércio moveleiro de alto padrão também migrou da rua das Palmeiras, que ficava ao lado.

Como na agonia do Império Romano, os bárbaros foram tomando os territórios ao redor do centro histórico, cujo brilho só perdurou por um tempinho mais.

A partir da inauguração do Metrô, em 1974, o distrito da Sé se definiu como zona de passagem, atravessada por centenas de milhares de pessoas.

Seu comércio chique debandou e as lojas se adequaram ao perfil de uma clientela mais pobre e menos exigente.

Nos meus quase 60 anos de vida, presenciei a fase derradeira do esplendor do centro histórico e acompanhei cada momento de sua degradação.

Mais ainda do que ao Caetano, alguma coisa acontecia no meu coração ao cruzar a Ipiranga com a avenida São João.

É difícil transmitir, aos que nela já nasceram, a diferença entre a vida antes e depois da sociedade de consumo. Algo assim como interagirmos antes com pessoas, mesmo que não as melhores possíveis, e depois com meros robôs (o homo economicus em sua plenitude...).

Como disse o Tom Zé, São Paulo tinha todo defeito, era uma metrópole em que habitantes vindos de todo canto se agrediam cortesmente, correndo e morrendo a todo vapor, na perseguição frenética da grana.

Mas, ao falar em “aglomerada solidão”, ele exagerou. Pois, a indiferença, a impessoalidade, a falta de calor humano iriam intensificar-se mesmo é de 1968 em diante, ou seja, depois que ele compôs sua música célebre sobre a cidade.

E a região da Avenida Paulista, atual cartão postal de São Paulo, não substitui o centro histórico de outrora num aspecto fundamental: expressa a sociedade motorizada, em que pedestres ficam espremidos e os automóveis reinam imponentes.

Os bancos e os escritórios de grandes empresas agora estão na Paulista, tramando e implementando a desumanização, como sempre.

Quanto ao comércio e ao entretenimento, foram confinados nos shopping centers.

A sensação que me dá é de ter sido expulso das ruas e das praças, que não pertencem mais ao povo, assim como o céu deixou de ser do condor.

Ao mesmo tempo, em tardia autocrítica, percebo que a existência mais aprazível para seres humanos nunca esteve no Centrão endinheirado, mas sim na Mooca humilde da minha infância.

E, hoje, nos bairros distantes onde os vizinhos ainda se falam e conhecem, onde as crianças ainda brincam nas ruas e onde as pessoas ainda fazem parte de uma comunidade, não de um condomínio.

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