O bibliófilo concedeu entrevista exclusiva (e inédita) a Galileu em setembro passado
por Eduardo Zanelato// foto: Maurilo Clareto A morte do bibliófilo José Mindlin, no domingo (28), não significou o fim de seu legado pelo desenvolvimento do País. Ele foi responsável pela doação do acervo que formará uma das mais importantes bibliotecas brasileiras sobre temas nacionais, a Brasiliana, sediada na Universidade de São Paulo (USP). Galileu procurou Mindlin em setembro passado para discutir a importância da democratização do conhecimento. A entrevista, inédita e exclusiva, pode ser lida abaixo.Em linhas gerais, ele defende a educação como um dos pilares do desenvolvimento do Brasil. E que, apesar disso, o tema permanece na obscuridade. Além de contar como formou o rico acervo doado à USP, ele fala também da importância da tecnologia para disseminar esse conhecimento armazenado em papel. Mesmo debilitado, recuperando-se de uma pneumonia, ele nos recebeu na sala de sua casa, em meio a quadros de artistas como Tarsila do Amaral. Confira, abaixo, os principais trechos da conversa com Mindlin.
Qual a responsabilidade da sociedade em relação à democratização do conhecimento?
É uma obrigação indeclinável. É preciso que todos estejam conscientes de que o tema da educação é fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade solidária e esclarecida. Acho que num país como o Brasil, onde praticamente tudo é prioritário, o tema da educação é superprioritário. Sem uma educação adequada é ilusão pensar que o País pode se desenvolver. A História mostra isso. Uma coisa é conhecer história ou geografia. A educação está acima disso. Isso já tem que ser assimilado para que a educação possa produzir os efeitos que dela se espera.
Quão longe nós estamos disso?
O Brasil é um País onde é difícil generalizar os conceitos. Nós temos uma sociedade bastante grande, mas a cota dos que sabem avaliar a importância da educação é minoritária. A conscientização ainda é minoritária. Só nos grandes centros está se desenvolvendo de forma favorável. Mas no Norte e no Nordeste, por exemplo, o analfabetismo ainda existe. Não é preciso muita argúcia para ver que tem que ser feito um esforço considerável.
Como o senhor começou a montar o acervo que tem hoje e que foi doado para a USP?
A parte brasileira foi doada. Tudo que se refere a assuntos de História, literatura, ciência, viajantes, enfim, qualquer assunto brasileiro de interesse entra na biblioteca, que tem esse nome de Brasiliana. Ela corresponde exatamente ao que venho fazendo desde o final dos anos 1920. Vou fazer 95 anos, de modo que a Biblioteca tem 80 e poucos anos. É uma coisa que foi sendo feita com critério de qualidade, de aplicação dos conhecimentos e também com muita ginástica.
Quando comecei, nem queria pedir dinheiro a meus pais para comprar livros que não fossem os de estudo. Mas eu já via nesses livros o caminho para entender os outros. Sempre digo que a biblioteca foi montada com muita ginástica, abrindo mão muitas vezes de outros prazeres. Tive a sorte de ter sido casado com uma moça que foi minha caloura na faculdade de direito. A sorte foi tal que ela compartilhava muito dos meus interesses e das minhas ideias, a biblioteca foi feita por nós dois. Muitas vezes, com o sacrifício do fim do mês. Às vezes eram oportunidades que não podíamos perder, encontrávamos obras fundamentais e raras. Foi um esforço conjunto. Na parte de Brasil formou-se um acervo que não seria fácil refazer hoje. Obras que já eram raras nos anos 1930, hoje são raríssimas.
Por que o senhor decidiu doar o acervo?
É uma biblioteca boa. A sensação que tanto eu quanto minha mulher tivemos é que ela deveria deixar de ser particular. Deveria ser um instrumento de conhecimento de ordem geral. Ou seja, uma parcela do que representa a educação sobre a qual você acabou de falar. Nós temos quatro filhos que gostam de ler, cada um tem sua biblioteca. Esse conjunto de que falei, é mais ou menos indivisível. Se você fosse dividir em quatro partes, cada uma delas seria mais fraca do que a soma delas no conjunto. Então ela teria que deixar de ser um bem particular para se transformar em bem público. Minha mulher, eu, nossos filhos e netos somos todos uspianos (alunos e ex-alunos da USP), a conclusão óbvia é de que a biblioteca devia ir para a USP.
Como foi o processo de doação?
Havia problemas nisso: a questão de conservação, influências de políticas internas ou externas. A doação, então, foi feita sob algumas condições. Uma delas é a construção de um prédio para a biblioteca, para que não se misturasse com outras bibliotecas da USP, que são boas são boas para os assuntos de outros temas. A Brasiliana se aproxima mais do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). Mas, em matéria de livros, uma biblioteca nunca é completa, sempre faltam coisas. Muitas obras importantes do IEB faltam na nossa. E, em compensação, muitas obras importantes da nossa também faltam no IEB ou em outras bibliotecas do País.
Qual a importância dessa doação?
Indo para a USP, ela se transforma automaticamente num instrumento de educação, preenchendo esse tema de ordem geral e essencial do processo de formação de gerações preparadas para entender o País, absorver os conhecimentos dos problemas que estamos enfrentando ou que ainda viremos a enfrentar e procurar o remédio para resolver esses problemas. A biblioteca tem uma parte de obras correntes e outra parte significativa de obras raras, desde os principais viajantes do século XVI, [tosse] - Estou com com tosse, a rigor eu não deveria falar, mas não quis adiar nosso encontro, então acho que estou dando a ideia do que... de como eu penso isso. A educação é essencial para o eficiente desenvolvimento Brasil e de qualquer outra parte do mundo.
É um fenômeno que faz parte do crescimento e do desenvolvimento da população mundial. Vai bem além do estudo de disciplinas determinadas. Ela tem que ser o coroamento desses estudos segmentados que vão se prolongando pela vida afora. A educação é um conceito global que assegura a absorção do que foi aprendido no estudo, primário, secundário e superior. É um conceito, a aplicação filosófica de apreciação da sociedade, das necessidades de cada sociedade específica. A solução desses problemas é uma coisa que eu considero de obrigação essencial e generalizada de todas as pessoas que tenham condição de transmitir a outros alguma coisa útil.
Qual a importância da tecnologia (o acervo da Brasiliana está sendo digitalizado e estará disponível on-line) nesse processo de democratização do conhecimento?
Tecnologia é uma parte essencial do desenvolvimento de uma sociedade. Há mais de um século é reconhecida a essencialidade da pesquisa, do que está sendo feito, do que poderia ser feito, uma vez verificadas as necessidades. E isso implica numa especialização que se chama de desenvolvimento tecnológico. E no qual o mundo inteiro está empenhado. Infelizmente, estamos menos empenhados do que o primeiro mundo. Todos deveriam ter acesso a tudo que se faz em toda parte. Sem desenvolvimento tecnológico, é uma ilusão pensar que estamos caminhando para o desenvolvimento da educação, porque a tecnologia faz parte desse desenvolvimento.
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