quarta-feira, 17 de março de 2010
HAVERÁ VIDA APÓS A INTERNET? TEXTO DE CIRO MARCONDES FILHO, PARA SE PENSAR...GLÓRIA KREINZ DIVULGA
"Na rua, nas escadarias da Constituición, no metrô, pareceram-me familiares
todas as faces. Tive medo que não restasse uma só coisa capaz de
surpreender-me, tive medo de que jamais me abandonasse a impressão de voltar."
Jorge Luiz Borges, O aleph
A discussão em torno das novas tecnologias se divide em duas posições antagônicas, ambas equivocadas: fechamento ou adesão, isolamento ou deslumbramento. Nenhuma delas colabora, de fato, para melhor compreender a nossa posição e sobre nossas efetivas possibilidades de interferência nesses processos. A postura de aceitação entusiástica, de recepção festiva de cada novo gadget tecnológico é ingênua e irresponsável.
Mas a contrapartida conservadora não deixa de ser menos inócua. Ela articula uma crítica popular e corrente das novas tecnologias que se apoia na debilitação humana, que fala de desaparecimento de espaços de diálogo e de comunicação, do fim da vida comunitária clássica, da extinção dos valores básicos e mesmo do conceito de realidade. Éa posição nostálgico-restauradora, a mesma que inspirou diversos pensadores de cem anos atrás à recusa da industrialização, à destruição das máquinas, à rebelião contra o progresso.
Não que conceitos como de progresso devam ser automaticamente sancionados e reverenciados. Desnecessário repisar que o progresso levou à bomba atômica, a ciência tornou-se operacionalizada para fins de repressão, o conhecimento humano provocou tragédias ecológicas, das quais o planeta dificilmente irá se recuperar. As destruições e as perdas provocadas pela transformação tecnológica das sociedades são devastadoras.
O problema, portanto, está mal colocado e estaremos eternamente desviando dele se a discussão permanecer centrada do objeto técnico, nos prós e contras, nas máquinas, nos equipamentos, nos sistemas. Estes não são mais do que manifestações de um problema outro, que está além da técnica.
Esta é, por isso, uma crítica frágil, facilmente desacreditável visto que a humanidade não poderá e nem desejará, de forma alguma, se desvencilhar desses equipamentos, sistemas e processos. Eles são uma realidade instalada, um dado do contexto atual, fruto de um certo desenvolvimento técnico, de certos valores perseguidos, de uma certa visão de mundo, que, por mais que sejam criticáveis enquanto posturas, impuseram-se à cultura e formam o quadro presente.
E o homem não é tão frágil que não possa encontrar usos invertidos desses equipamentos, assim como não é tão forte que possa simplesmente aboli-los. As posições dicotômicas são equivocadas por serem “ficções teóricas”. Elas antes encobrem os problemas do que os resolvem, reduzindo a discussão a um procedimento de certo ou errado.
É por esse motivo que a crítica às tecnologias não tem futuro se se posicionar teimosamente no terreno da desistência, do isolamento, do autofechamento. É esse, aliás, o paradigma mistificador que deu origem ao fascismo , que está na base de formas de terror do fanatismo religioso e de outras perseguições em toda história do Ocidente.
O erro dos ideólogos, mesmo o de bem intencionados críticos da tecnologia - foi sempre o de se distanciar defensivamente, o de recusar in totum a nova realidade, fixando-se em posições que jamais poderiam interferir criticamente no desenvolvimento das tecnologias, constituindo-se exatamente isso sua maior fraqueza.
A questão técnica está, assim, em outra dimensão, além dos instrumentos. Nietzsche foi o primeiro a chamar a atenção para o problema, antes de ocorrerem todos os desvios na discussão, envolvendo-a nessa contenda bipolar entre prós e contras: “É graças a Nietzsche que esta fatalidade da dominação (técnica e tecnológica) pôde ser atualizada, pois ele é o primeiro a estabelecer uma ligação entre o pensamento filosófico, religioso e científico à vontade de poder, da qual o 'eterno retorno' testemunha o caráter necessariamente repetitivo do princípio de dominação”.
Posto isto, discutir a internet e o que virá depois dela torna-se um questão que envolve não exatamente uma vitória ou derrota de posições mas, antes, uma tomada de consciência das reais implicações do uso desse sistema técnico e a que ele nos preparará posteriormente.
Alguns teóricos já falam no naufrágio da internet, de que a recessão high tech já começou e que dela só sobreviverá o correio eletrônico. Depois da orgia, estaríamos, portanto, na ressaca. Esse desenvolvimento não é estranho e acompanha o advento de cada inovação técnica. Não obstante, mesmo com o refluxo desse processo, permanecem suas marcas na cultura, que vão impregnar novos modos de pensar e agir a partir dela. Ninguém sai ileso diante da inovação tecnológica. Essas marcas dizem respeito à influência de regimes próprios dessa tecnologia que passam a reprogramar as pessoas. Não foi diferente com a invenção do cronômetro como um aparelho que passou a reordenar o cotidiano das pessoas, das comunidades e das culturas segundo um ritmo mecânico, uma regularidade física abstrata, forçando-os a uma submissão lógico-racional que trabalhava em direção oposta ao ritmo do próprio corpo e da natureza.
Desta maneira, os três componentes principais da era tecnológica: a digitalização, a velocidade e o excesso informativo, interferem na ordenação física e psíquica dos agentes, produzindo novas sínteses, reordenando seu modus vivendi e sua estruturação de mundo. O que devemos considerar aqui não é exatamente se isso é positivo ou negativo, pois assim cairíamos novamente nas ciladas da metafísica, mas que nova disposição estaria se formando e a que nova sociedade conduzindo.
O primeiro processo é o da digitalização, da redução de todos os dados à estrutura binária, numérica, por esse mesmo motivo, infinitamente reprogramável, eternamente provisória. Esse traço faz supor que a civilização na atualidade esteja envelhecendo.
Demonstração disso é o fato de que a virtualidade põe em risco a escrita ou a cultura escrita e que uma sociedade sem escrita é necessariamente uma sociedade morta. Um CD-Rom não é uma biblioteca, os sistemas de leitura de arquivos digitalizados se transformam rapidamente e tornam perecíveis todos os dados neles reunidos. A perigo maior encontra-se no fato de esta cultura digitalmente registrada ser hoje monopólio de empresas e não mais de instituições das sociedades ou dos governos. Enquanto “patrimônio cultural”, uma cidade, um espaço de natureza, uma cultura sempre puderam ser preserváveis, pois havia instituições para sua conservação. Daí podermos ter ainda hoje as obras da arquitetura antiga, os documentos escritos de outras épocas. Os registros digitais não são documentos preserváveis, pois se submetem a critérios técnicos de leitura e reprodutibilidade puramente privados, baseados na sobrevivência da empresa, na sua taxa de lucro, na permanência de seu sistema de codificação.
A volatização das informações culturais de forma geral é derivação do processo de digitalização. Do ponto de vista técnico, as informações podem sumir definitivamente a um toque de dedo, a um acionamento do delete, e a grande queima de livros do Terceiro Reich torna-se um brinquedo de crianças diante da capacidade de desaparecimento da cultura digital.
Quando Marx dizia que “tudo que é sólido desmancha no ar”, ou quando Nietzsche falava da morte de Deus, ambos contemporâneos da expansão capitalista em direção à anulação de todos os componentes absolutos do social, à devastação da cultura aparentemente sólida da teologia cristã e seus valores morais e éticos, ambos constatavam um impressionante movimento da abstratificação capitalista em direção ao nada que não fosse a “lógica fria do capital”.
Talvez a era tecnológica seja a sofisticação de um processo que teve seu início nas expansão capitalista e cuja marca é a transformação do valor. A vantagem que traz a virtualidade é, ao mesmo tempo, sua grande desvantagem. O analógico tem uma referência direta com o suporte: os números representam um estado das coisas, as modulações de intensidade de luz de fato criam uma diversidade do espectro luminoso que a dualidade aceso/apagado não comporta. O digital, ao contrário, introduz uma relação abstrata com o objeto, um reducionismo que equaliza toda e qualquer informação, seja ela textual, imagética ou em movimento. Ele reatualiza a discussão desenvolvida por Marx em relação à economia política, da contradição entre o valor de uso e o valor. Nessa exposição de Marx fica claro que na determinação do valor desaparecem os traços concretos singulares e incomensuráveis do trabalho em favor de categorias abstratas gerais, da mesma forma que na apresentação da gênese das formas de valor, sintetizada na teoria do dinheiro como equivalente universal de todas as mercadorias, o valor se “materializaria”.
A digitalização atualiza essa discussão no campo da informação e da transformação de todos os bens culturais em bits, forma abstrata, espécie de “dinheiro comum” de todas as transações digitais. Da perspectiva de Marx, a passagem do valor de uso, que ainda carrega os traços particulares do trabalho, ao valor econômico de troca representa o desaparecimento do componente incomensurável, particular, específico. A cultura digitalizada é a cultura da abstratificação geral da experiência humana, de sua desvinculação do traços do seu produtor e de seu contexto de vida. Derivação disso são as formas de estranhamento, espécie de “fetichismo do bit”, e de separação do homem e do objeto de seu trabalho.
É curioso que aquilo que para Marx era a degeneração do processo de constituição do valor, a descaracterização do trabalho humano e sua redução a puro índice abstrato, seja visto hoje como “libertação”, como superação da fase metafísico-teológica. Há certamente um grande equívoco nessa lógica.
Exatamente porque aqui se colocam em polarização dois conceitos que levam, tanto um quanto outro, a um beco sem saída, exatamente porque a lógica não é correta: se contrapõe a “densidade” absoluta da metafísica à praticidade abstrata do valor. Ou seja, contrapõem-se dois valores abstratos que deixam de fora, ao mesmo tempo, o trabalho humano, a relação íntima entre homem e seu produto. Paul Valery fala, nesse sentido, de um relacionamento íntimo entre alma, olho e mão na observação artística, fato esse que – conforme Benjamin – determina uma prática “que não nos é familiar” . Ou que não nos é mais familiar.
Ou seja, a morte de Deus marca um duplo movimento da negatividade: é tanto a extinção dos valores teológico-metafísicos que organizaram a cultura, a moral, o comportamento das sociedades quanto a ascensão de valores avulsos e descomprometidos, perfeitamente manipuláveis como o dinheiro, que permitem tanto a utilização para o benefício quanto para a destruição de toda a civilização.
O segundo processo da era tecnológica é a velocidade, fato igualmente mencionado por Valery: “O procedimento paciente da natureza foi imitado há tempos pelo ser humano. Miniaturas, perfeitos trabalhos em marfim, pedras, exímias no que tange ao polimento e à cunhagem, trabalhos em verniz ou pinturas, nas quais se sobrepõem camadas finas e transparentes... todos esses produtos de esforços contínuos e desprendidos estão em pleno processo de desaparecimento, pois passou o tempo em que o tempo não importava. O homem de nossos dias não trabalha mais naquilo que não pode ser abreviado”.
As tecnologias, assim como a invenção do relógio, impõem seu ritmo ao trabalho humano. O cronômetro racionalizou a existência, maquinizou as operações e as funções, fato que no taylorismo encontrou sua realização plena: homens trabalhando como máquinas, homens buscando se tornar máquinas, a cultura como maquinização da existência.
A velocidade aplicada especialmente ao jornalismo via internet introduz um componente adicional à taylorização, sendo que a fibrilação do cursor na tela é seu índice; é um dispositivo de controle, olho de Deus a pulsar e a disciplinar os comportamentos. Não somos mais marcados somente pelo tempo abstrato do relógio; somos marcados agora pela exigência nervosa de estar no tempo mais atual, mais presente que o presente.
Autores contemporâneos mencionam diversas associações que são feitas ao instantâneo da era atual: eles falam da ditadura do instantâneo, da violência intrínseca aos processos rápidos, da prevalência do emocional, da ausência de reflexão, em suma, de todos os componentes que fazem parte das formas totalitárias.
O instantâneo, que está o tempo todo a nos convocar, transforma nossa relação com o meio e com as informações, e o jornalismo pela internet é seu principal agente. Paul Virilio falou numa certa época que a temporalidade que nos rege hoje em dia é a do tempo de exposição: como na fotografia, quanto mais exposto à luz, mais sensibilizado se torna o negativo. Na imprensa e na televisão, a exposição pública continuada igualmente “queima” a cena. O jornal de ontem perdeu seu charme porque já está muito exposto; as notícias têm de se sobrepor umas às outras, pois o tempo de exposição as tornará muito rapidamente envelhecidas.
Por isso a imediaticidade da informação, a compulsão atual pelo mais atual que o atual, independente da qualidade desse atual ou mesmo de sua veracidade. Como no caso da digitalização, um bom tema não é o que tem mais a ver com as necessidades do público, com seu bem-estar, com as exigências da política ou o que quer que seja, “um bom tema é aquele que passa antes dos outros” , esse é seu melhor valor de troca.
Por isso hoje em dia no rádio mas especialmente na internet – diferentemente do jornal impresso e do jornal regular de televisão – o jornalismo se transformou radicalmente de atividade voltada à informação, à investigação, ao desvendamento de atos ilícitos de governos e empresas para fornecedor de emoções, impactos, criando a partir do cotidiano das cidades cenas de emoção, ficção, tornando a vida cotidiana um grande filme de aventuras.
O terceiro processo da era tecnológica é o do excesso de informações, já exaustivamente comentado e criticado. Desnecessário desdobrar as teses que têm sido apresentadas nestes últimos anos sobre a chamada “obesidade informacional” ou a overdose que nos impõe diariamente a internet, como, por exemplo, a da neutralização das informações provocada pela abundância, a da dispersão do receptor, a da incapacidade de trabalhar esse volume, que, acaba se tornando opressivo, a do fim da informação pela “metástase”, etc.
Esses três processos sintetizam, no meu modo de ver, a lógica da internet, e são a infra-estrutura de uma nova sensibilidade humana em relação ao seu mundo físico e social. Caberia, por fim, mencionar duas questões agora então diretamente relacionadas com o tema em debate, “O que virá depois da internet”: o que significa esta progressiva transposição do mundo para dentro dos domicílios e que desdobramentos são possíveis para um mundo pós-internet.
Ao que tudo indica, a internet não pertence ao campo da comunicação nem se submete à lógica dos meios de comunicação: ela é outra coisa. É, sem dúvida, o primeiro grande sistema estruturante da sociedade tecnológica. Os meios de comunicação ainda pertencem ao quadro anterior da modernidade e do humanismo: ainda remetem, no plano do inconsciente, a questões como esfera pública, representação, veiculação ideológica, manipulação, poder, etc. São sistemas coerentes com aquele quadro histórico e social. A internet materializa a lógica da nova sociedade que se constitui a partir da virada do século; já não é mais comunicação, estamos na era do delírio técnico travestido de comunicação.
Um exemplo claro disso é a função do jornalista. No auge da imprensa político-literária do século 19, o personagem jornalista sentava-se diante de sua mesa e redigia notícias para interferir na política, na economia, na sociedade. Três são os fatores daquela época que permanecem até hoje na prática jornalística e que permitem avaliar a alteração da importância relativa de cada um: o ato jornalístico de escrever, a relação psicológica do profissional com a esfera pública e o equipamento utilizado. No final do século 20, a terceiro elemento, a técnica, evoluiu extraordinariamente, passando da máquina de escrever para os teletipos, as máquinas eletrônicas e os computadores. Mudou a relação com os recursos estilísticos, gráficos, de revisão, composição, diagramação, etc. Pode-se dizer que cresceu na razão inversa do primeiro elemento, a importância do profissional, o que enfraqueceu igualmente sua relação psicológica com a esfera pública.
Desse exemplo infere-se a lógica que preside toda a mudança estrutural da comunicação nesses dois séculos: expansão extraordinária da técnica, da quantidade, da extensão dos comunicados; aprimoramento, rapidez, plasticidade dos recursos de criação e transmissão, ao mesmo tempo que declínio da participação individual ou coletiva, do controle ideológico intencional, da interferência humana nos processos e, por derivação, da responsabilidade individual.
Três mitologias relativas ao privado e ao público podem servir de base para o estudo dessa transformação das sociedades humanas: a mitologia da caverna, de Platão, a mitologia da casa e da ágora e a da janela como relação entre casa e mundo.
Na mitologia da caverna fala-se de homens acorrentados dentro de uma caverna, que só podem olhar para o fundo da mesma onde vêem passar sombras das estatuetas e vozes dos que as portam. Para eles, que jamais viram o mundo real, as sombras são a única realidade e as vozes emanariam das próprias estatuetas. Platão considera também que um dos prisioneiros consiga escapar: a visão que teria o deixaria naturalmente muito perturbado. Reconhece então as estatuetas e percebe que são mais verdadeiras que as sombras que conhecera antes. Uma vez trazido para além do muro por onde passavam os homens portando as estatuetas que provocavam o reflexo teria aprendido, por fim, a ver as próprias coisas. Alguns autores contemporâneos relacionam a utilização de meios eletrônicos virtuais à “nova caverna”: lá os homens estariam presos à encenação sem saberem que se trata de uma prisão.
Na mitologia da casa e da ágora fala-se de duas coisas: 1) que as informações são trabalhadas no âmbito privado e depois tornadas públicas e 2) que os homens deixam suas casas e vão ao espaço público da ágora onde são informados das coisas, retornando à suas casas para armazená-las e trabalhá-las. Esse segundo aspecto é o que Hegel chama da “consciência infeliz”: quando saio para o mundo me perco, quando retorno, para me encontrar, perco o mundo.
A terceira mitologia, que sintetiza as duas anteriores, fala da janela. Aqui encontramos a representação e a proteção. Vilém Flusser diz que janelas são buracos na parece, instrumentos utilizados para se ver lá fora. Parentes das janelas são as pinturas nas paredes, as telas que representavam universos emoldurados de cenas paradisíacas, oníricas, representações de desejos, fantasias, aspirações. Essas imagens, as telas, e hoje, mais popularmente, os calendários, as reproduções, os desenhos vão na mesma direção: trazer para dentro de casa um universo idealizado. Bem diferente do mundo dos discursos que o homem trazia para dentro de casa e que criava sua consciência infeliz.
No interior dos domicílios trabalhavam-se assim os temores, as dúvidas, as incertezas e mesmo os sonhos. Sonhos e temores, angústia e prazer, céu e inferno. A separação entre o mundo de dentro e o mundo de fora era radical, o que dava ao lar a conotação de um império limitado, com princípios e leis próprias, espaço de exercício da autoridade de um patriarca sobre toda sua família. Microcélula do Estado, a unidade familiar dispunha de uma consolidada autonomia, que se estendia à auto-sustentabilidade econômica de suas terras, de sua agricultura, de seu pastoreio.
Os três mitos têm referência direta às formas de representação e, por derivação, aos meios de comunicação, mas nenhum deles pode-se dizer que equivalham à internet, já que esta, conforme Wolton, não é um meio de comunicação. Mais ainda: a internet é uma esfera pública inteira, não como ambiente de discussão no sentido habermasiano, mas como mundo. Ela absorve aquilo que os alemães contemporâneos passaram a chamar de Öffentlichkeit, algo mais do que a esfera pública simplesmente: são as instituições, organizações e atividades – como o poder público, a imprensa, a opinião pública, o público, as relações públicas, ruas e praças –, são uma experiência social comum, bem como uma discussão aberta, um trabalho discursivo de troca de opiniões e de convencimento. É tanto um acontecimento público, o ambiente em que se realiza como as pessoas que lá interagem. Ultrapassa de longe o termo comunicação ou mesmo meio de comunicação, constituindo-se mais como uma hydra social.
Além do comportar meios de comunicação (jornalismo, rádio, canais de televisão, etc.), a internet é um grande sistema de referência para buscas, pesquisas, localizações; um espaço para apresentação de pessoas, empresas, órgãos públicos e não-governamentais; espaço de diálogo em tempo real, de correio eletrônico, de constituição de comunidades; espaço de discussão, de lazer, encontros, passatempos; espaço de compras, de informações bancárias, em suma, todo um mundo paralelo que reconduz a ágora para dentro de casa, agora não mais como representação/preocupação mas como projeção/reconstrução. Por isso, a internet não pode ser analisada como um meio mas como um mundo próprio em que a constelação de atividades se acha deslocada e condensada no meio eletrônico. Ele resgata o “mito da defesa interior”, da recuperação fictícia do “império limitado”.
Por fim, cabe avaliar os desdobramentos dessa nova realidade para um quadro pós-internético. Sabemos que os desdobramentos da inovação tecnológica não são previsíveis; em compensação, o comportamento humano é absolutamente repetitivo. Isso não permite naturalmente que esbocemos a sociedade pós-internet, que possamos prever as maravilhas eletrônicas que serão introduzidas, as novas emoções que serão engendradas. Mas as trilhas seguidas por esses sistemas remetem necessariamente a modelos conhecidos de exploração e dominação.
Isso porque o novo técnico é engendrado por um pensamento clássico, convencional e redutor. Na base do reducionismo digital está a abstração do valor, a redução dos produtos culturais à moeda comum do bit. A provisoriedade dos arquivos registrados em disquetes, discos rígidos e memórias técnicas está associada à perecibilidade do capital num contexto em que o tempo atua como expressão material do poder e da dominação.
Toda a organização técnica está estruturada sob a instantaneidade; é o presente absoluto que dá as ordens e quem não se submete está de fora. Decorrência disso, a aceleração torna-se o imperativo geral das sociedades: o controle está agora no tempo, no olho de Deus, para quem não há nem passado, nem futuro, apenas o piscar impaciente do cursor. A rapidez exige decodificação pela imagem, pelos ícones cada vez mais simplificados das telas. É como um retorno à fase do imaginário em que a expressão verbal ainda não havia sido assimilada; reduz-se a experiência aos apelos emocionais das imagens. Atrofia da palavra, o único sistema capaz da abstração e capaz de pensar o irrepresentável, o incaptável, o que está fora dos códigos convencionados.
É a experiência filosófica que cai em desuso, é toda uma cultura que rapidamente de queima, é a civilização que vai se tornando senil pela imposição continuada de novos provisórios para substituir os provisórios ultrapassados, num jogo contínuo de repetições. A cultura se realiza pela troca instantânea de cenas, pela sucessão contínua de apelos visuais, pela comunicação através de significantes puros num contínuo jogo de reenvios.
Este é lado lógico e político do sistema, que está na base da internet. Mas há outras tendências, como a de o meio técnico expandir-se e apropriar-se cada vez de mais funções propriamente humanas e da expansão da internet para dentro dos domicílios.
A internet é o mundo, é a hydra social que absorve tudo dentro do domicílio, janela de intervenção no mundo e de transposição do mundo para dentro de casa. Sistema que dispensa a ágora, de onde o homem trazia a infelicidade para dentro de casa. Ela resolve a contradição hegeliana dos homens que se tranquilizavam dentro de casa mas perdiam o mundo. Nesse aspecto, ela é inovação, transformação cultural que funde os campos do real e do imaginário, princípio de realidade e princípio do prazer, ágora e imagem, infelicidade e felicidade. Ao mesmo tempo, ela é indicador de uma tendência: como sintetizador da sociedade real, espaço eletrônico de imersão no mundo, ela viabiliza – pela primeira vez na história da civilização – a supressão do mundo real-material.
Pela dimensão virtual de suas conexões, ela possibilita a construção física de um mundo paralelo auto-suficiente. Espécie de primeira mônada, de Aleph, síntese geral da cultura: “...vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem, chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjectural cujo nome os homens usurpam mas que nenhum homem tem olhado: o inconcebível universo”.
Depois da internet – depois tanto seu encerramento imediato a cada dia quanto depois de seu encerramento definitivo algum dia – é como depois de ter visto o Aleph. Borges abandona a casa de Carlos Argentino, deixando para trás a pequena esfera furta-cor, e aconselha seu amigo a deixar a metrópole, “que a ninguém perdoa”: o campo e a serenidade são dois grandes médicos.
* Publicado originalmente na revista Existo.com, do FiloCom.
** Ciro Marcondes Filho, jornalista, é professor titular do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA/USP e coordenador do Núcleo José Reis de Divulgação Científica e do Núcleo de Estudos Filosóficos da Comunicação (FiloCom). cjrmfilh@usp.br
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