Por Mara Rubia Rodrigues Martins
Pensar sobre uma conexão entre psicanálise e educação, provoca uma tempestade de idéias e uma reflexão sobre tal possibilidade.
Os dois campos são diferentes a começar pelos objetos de interesse e pelos sujeitos que demandam esses saberes.
O objeto da psicanálise é o inconsciente e o funcionamento do aparelho psíquico,e o da educação é o conhecimento. O psicanalista é o analista e o professor, o educador. Para a educação o foco central dos problemas de aprendizagem quase sempre é o aluno.
Se o professor desejar “beber na fonte” da psicanálise como sugere Kupfer (1997), deverá rever seus conceitos e postura ética de como utilizará esses conhecimentos em sua prática educativa.
A psicanálise está se constituindo em um conhecimento novo. Ela não pode fazer o papel de educação e não pode ser considerada salvação para todos os problemas educacionais e sim pode auxiliar no maior conhecimento do funcionamento mental e inconsciente dos sujeitos envolvidos nesse processo, “o trabalho da educação é algo sui generis: não deve ser confundido com a influência psicanalítica e não pode ser substituído por ela” (Freud, 1976 p.342).
Segundo Filloux,
a psicanálise se apresenta ao mesmo tempo como uma prática (a cura analítica) e um saber (o corpus dos conhecimentos analíticos). A pedagogia refere-se de seu lado seja a prática, seja a teorias ou teorização da prática (1999, p.9).
Enfatiza Millot :
Freud com conhecimento de causa, afirmava que era preciso incluir a psicanálise entre as profissões impossíveis, ao lado da educação e da arte de governar. As três repousam sobre os poderes que um homem pode exercer sobre o outro mediante a palavra, e as três encontram os limites de sua ação... no fato de que não se submete o Inconsciente - pois é ele que nos sujeita (1987, p.151).
Romanticamente, Couto (2003) traduz vários significados da sedução e a tarefa de educar sob a ótica da psicanálise e da educação como o de ponte tornando o conhecimento o mais sedutor possível, apostando numa educação que precisa se desconstruir para construir. Para ela, a educação é apenas o caminho, não a chegada. É um encontro com as diferenças, não com as semelhanças, é onde a linguagem sustenta os sujeitos desejantes nas figuras do educador e do educando, onde as contradições e antíteses permeiam toda relação de amor e ódio, real e simbólico, ideal e único, desejo e medo do saber, boa e má qualidade de educação, soluções e problemas de aprendizagem, psicanálise e educação...
A pedagogia tenta ignorar a realidade da condição humana, esperando que o aluno seja um ser ideal enquadrado em normas que acredita, o façam aprender, enquanto que a psicanálise aponta para essa realidade.
O conhecimento é o objeto de desejo que circula entre professor e aluno.
Para a psicanálise, o desejo de saber origina-se da curiosidade sexual. A atividade intelectual depende da sublimação e da identificação com o professor que tem papel fundamental em despertar o desejo.
Para Freud a origem da pulsão do saber ou epistemofílica, permite o sujeito ter o objeto de conhecimento como satisfação ou prazer, do contrário, causa sofrimento psíquico de acordo com a falta do objeto do desejo.
O pensamento se constitui na relação com o outro, e o inconsciente é estruturado na linguagem segundo Lacan. Além disso, afirma que o desejo do sujeito é o desejo do Outro.
O desejo de saber é uma dívida impagável materialmente, em relação ao Outro, pois é uma dívida simbólica.
Para o aluno, o professor é aquele que sabe, que detém o conhecimento e o poder e o professor precisa saber disso para se colocar no lugar de conhecedor de convicções aceitas e compartilhadas culturalmente e socialmente, para aí sim, passar a ser mediador entre o aluno e o conhecimento. Esse é o verdadeiro papel do professor. Por ser marcado pela linguagem e expresso pelo registro simbólico, esse conhecimento não é absoluto podendo ser ampliado e até modificado.
Como declara Almeida (1998), “a criança somente se constituirá como sujeito através do Outro, que acolhe a sua palavra e reconhece o seu desejo”, e é por isso que o educador precisa estar atento aos “ditos e não ditos” pela criança, para conhecer verdadeiramente seu desejo. Mais adiante, afirma “que o papel do outro social, representado pelo educador... é de fundamental importância no processo de transmissão (ensino) e aquisição (aprendizagem) do conhecimento”. O professor é o mediador desse processo que se dá na relação triangular.
A subjetividade dessa relação entre professor-aluno-conhecimento se evidencia no aspecto transferencial onde o “aluno-falo” se submete a Lei do desejo do professor ou “professor-falo”, quando o aluno o toma como aquele que detém o saber e o poder. Por isso, o professor tem que tomar conhecimento dessas duas posições e ser o mediador entre o aluno e o conhecimento.
Cabe ao professor não se acomodar, pois há muito que se estudar sobre as relações intersubjetivas de todos os segmentos envolvidos no processo educativo.
Com a ajuda da psicanálise, esse educador poderá tomar consciência de seu papel e da importância da transferência na relação e adotar uma postura reflexiva quanto ao exercício de sua função de educar.
Essa atitude se dará através da linguagem que é o meio de incutir a cultura no Outro desejante.
Como já foi pensado por Freud, o ideal é que todo professor pudesse se beneficiar da análise.
A reflexão de Lacan é marcante, no sentido de que “o desejo só pode surgir na relação com o Outro” (J. Dor, 1989, p. 144). Desejo este que “se inscreve sempre entre a demanda e a necessidade” (p.145). Portanto, o sujeito é tentado a buscar a significação de seu desejo. ”Reconhecer a falta no Outro como algo impossível de ser preenchido atesta que a criança aceita a falta no processo de seu próprio desejo” (p.147). É por isso que a educação é incompleta: a busca pela satisfação, gozo pleno perdido na relação mãe-bebê, impossível de ser reconquistada novamente.
Os educadores deveriam saber sobre a influência existente entre os acontecimentos dos primeiros anos da infância e os comportamentos atuais de seus alunos, a luz da psicanálise, pois “nenhuma das formações mentais infantis perece” (Freud, 1975, p. 224). Devemos em primeiro lugar, entender a nossa infância, e aí sim, partir para desvendar os mistérios das mentes dos nossos alunos, só assim, compreenderemos realmente o nosso verdadeiro papel e a função de educador.
A educação é vista por Freud como fábrica de neuroses, onde o preço é a perda do prazer pago pelo educador que a considera “normal”. É preciso se fazer uma educação iluminada por uma psicanálise que esclareça esses pontos.
Para alguns autores, o professor deve confrontar-se com sua própria infância, pois só assim poderá compreender a criança.
O ato educativo em si é violento e fracassado: violento, pois desde o início da inserção da criança na escola, quase tudo é artificial ou obrigatório como os próprios conteúdos, regras, filas, horários e avaliações, porque o sujeito é por si só ineducável, “pois perseguem como ‘vícios’ todas as suas manifestações sexuais, mesmo que não possam fazer muita coisa com elas”, como afirma Freud (1975, p.167).
A própria organização da escola é uma violência contra o que de natural a criança viveu até a sua entrada. Agora é submetida a normas e regras, isto tudo tem função de defesa contra a ansiedade, desejando a falência das pulsões e dando oportunidades do professor de exercer o seu poder, por outro lado, favorece as questões transferenciais e de identificação da rede de relacionamentos e papéis.
A educação é em si mesma repressiva e violenta, como cita Millot, fazendo referência ao Futuro de uma ilusão e o Mal-estar na civilização de Freud, visando adaptar a criança ao que é aceito socialmente. Ela precisa aprender desde cedo a dominar seus instintos e não ter liberdade total. A educação deve procurar um ponto ótimo de ser a mais benéfica e traumatize somente o necessário para a criança se defender. O complexo de Édipo é que realiza a estrutura psíquica, segundo a autora, “é a existência da proibição do incesto o que funda a tese freudiana da natureza essencialmente repressiva da civilização, bem como a da educação” (1987, pp.121 e 122).
Corroborando com essa idéia, Almeida expressa:
Coloca-se, dessa forma, o desafio que a psicanálise faz à educação: encontrar um optimum de educação, de sorte que ela se torne mais benéfica do que maléfica; que ela possa orientar a criança no controle de suas pulsões sem que, para isto, engendre necessariamente a neurose; que a educação psicanaliticamente esclarecida beneficie, em primeiro plano, os próprios educadores, sem torná-los, no entanto, um Outro absoluto ou um esvaziado de todo e qualquer sentido (1994, p.30).
Para alguns autores, a contribuição da psicanálise à educação seria a descoberta do seu poder antagônico de ser nociva e ao mesmo tempo necessária. O educador pode aprender com a psicanálise a refletir sobre sua prática pedagógica.
O que se precisa levar em conta é o fato de que em pouco tempo, uma criança precisa assimilar a cultura de uma sociedade que levou milhares de anos para se constituir, além, é claro, de ter que controlar seus instintos e se adaptar socialmente. Essa é a primeira tarefa da educação: fazer com que a criança se enquadre no padrão esperado. “Assim, a educação tem de escolher seu caminho entre o Sila da não-interferência e o Caríbdis da frustração... deve-se descobrir um ponto ótimo que possibilite à educação atingir o máximo com o mínimo de dano. Será, portanto uma questão de decidir quanto proibir, em que hora e por que meios” (Freud, 1933, p.182).
O educador está diante de um grande problema: conhecer a individualidade psíquica de cada criança, reconhecer o que se passa em sua mente através de pequenos gestos que deixam transparecer; dar-lhe amor e ser autoridade ao mesmo tempo. Para facilitar a resolução desse problema, seria necessária a formação psicanalítica, além da medida profilática, a análise de professores.
Para Charles Melman, a relação com a educação é ambígua, pois a amamos já que devemos muito a ela e concomitantemente a odiamos por ela fracassar conosco. Essa é uma questão estrutural.
Escreve Almeida que:
Se é verdade que o professor se confronta, de fato, na prática pedagógica, com o real de educação, no sentido de impossibilidade de qualquer garantia de uma ‘ boa educação’, o aluno se confronta com o real do desejo de saber sempre insatisfeito (1998, p. )
E de fato, a impossibilidade de uma” boa educação”, completa e segura, não existe, pois o objeto de desejo nunca será satisfeito, até porque só o objeto simbólico pode produzir efeitos de significação
Ao professor não cabe a função de desencadear a sublimação, por esta ser inconsciente. Mas, ele poderia pelo menos abrir um espaço de escuta do desejo do aluno, que se desenvolverá resignificando a perda do objeto imaginário por objetos pertencentes à cultura de maneira geral, não pertencente a alguém em particular. Numa relação de perder-ganhar-reconquistar, num ciclo que permite inúmeras possibilidades.
A falta é estrutural e faz parte do sujeito, do desejo. É uma falta impossível de ser preenchida por um objeto real, mas a busca é incessante e advém como falta de um objeto que foi perdido para sempre.
O complexo de Édipo é entendido aqui como a superação da criança em relação à mãe com a aparição do Outro que garanta a função paterna de Lei que se inscreve no inconsciente da criança como proibição do incesto que impede o acesso direto à mãe, objeto de seu gozo.
Em seu livro, Millot, conclui dizendo que a psicanálise se interessa à educação quando leva a criança a suspender os recalques e o educador a não abusar do papel de desprender-se do narcisismo e evitar colocar a criança como seu Eu-ideal.
Ao contrário do que muitos dizem Freud não se preocupou apenas com o estudo do inconsciente e sim com o funcionamento de todo o aparelho psíquico, o pensamento, a cognição, o desenvolvimento e a organização de idéias. Um aparelho psíquico considerado inacabado e guiado pelo princípio do prazer e que tem como objetivo a descarga, a princípio a emocional e a motora, como o choro, o grito, o agito corporal, entregue à intervenção do outro, do “humano próximo”.
Os pedagogos sabem que é essencial o desejo de aprender, mas parece que se esquecem da “importância das fontes libidinais do desejo de saber e a influência inibitória do recalque sobre a curiosidade intelectual” (Millot, 1987, p.146). Pois, para a psicanálise, os métodos e as técnicas empregados não são tão importantes quanto o desejo de aprender.
Muitas vezes, o professor rejeita o aluno por este ser diferente do que considera um “aluno ideal”, mas não assume a rejeição e num processo de transferência, afirma que o aluno é que não quer aprender.
A espera de “fórmulas mágicas” e “receitas prontas” para sanar os problemas de aprendizagem paralisam o professor e impedem que este vá ao encontro de conhecimento teórico que fundamente a sua prática pedagógica, impossibilitando a reflexão e re-significação para modificação e melhoria dessa prática diária.
A tese de Millot (1987) é que não existe uma educação psicanaliticamente orientada, pois o educador ocupa uma posição ideal para a criança e o analista de forma alguma pode ocupar essa posição.
Os educadores precisam continuar estudando e trabalhando, mesmo conscientes de que a educação ideal é impossível, porém se faz urgente persegui-la à luz, quem sabe, da psicanálise.
Talvez, um espaço apropriado para reflexões da prática educativa favoreça a “compreendermos muito bem como interpretar em outras pessoas os mesmos atos que nos recusamos aceitar como mentais em nós mesmos” (Freud, 1974, p.195).
Que corpo docente e especialistas da escola, orientados pela psicanálise, possam descobrir um novo espaço, um novo jeito de se relacionarem entre si e com seus alunos, favorecendo a aprendizagem e o desejo de aprender.
Alguns autores sugerem ainda, que há um perfil profissional, traços de personalidade e características pessoais que facilitam o trabalho pedagógico e, portanto, sugerem que se introduzam nos programas de formação e nas reflexões das práticas, instrumentos psicológicos como ferramentas de trabalho.
Provavelmente uma possibilidade de articulação entre a psicanálise e a educação seja a concretização de um espaço de fala e escuta, onde os professores e especialistas envolvidos no ato educativo e até mesmo nos cursos de formação e na formação continuada desses profissionais, possam tomar consciência e re-significar suas convicções, anseios e ações em sua função de mediadores entre aluno e conhecimento.
Atuar juntamente com um grupo de professores talvez seja a saída. Um olhar psicanalítico sobre o pensar e o fazer dos professores. Um espaço onde se possa refletir sobre o fazer, através da resignificação para ampliação do repertório e modificação de posturas em relação às suas práticas. Cada um se responsabilizando por suas idéias e pelo que diz.
Referências Bibliográficas:
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J.C.Filloux. A psicanálise e os impasses da educação. Anais do I colóquio do Lugar de Vida. LEPSI. São Paulo: IP/ USP,1999.
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Sobre a Autora:
Mara Rubia Rodrigues Martins é Pedagoga, Psicopedagoga e mestranda em Psicologia.
Atua também como professora regente de uma classe especial de crianças com transtornos globais de desenvolvimento, na Secretaria de Educação do Distrito Federal.
e-mail: mararubiamartins@ig.com.br
FONTE: MARTINS, M. R. R. (2005). (Im)possibilidade de conexão entre psicanálise e educação. Guia de Psicologia Sobresites. Agosto/2005. Disponível em www.sobresites.com/psicologia
http://www.sobresites.com/psicologia/artigos/educacao.htm
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