segunda-feira, 21 de setembro de 2009
A Escrita Automática em Água Viva, de Clarice Lispector
Eduardo Horta Nassif Veras1
Quem for capaz de parar de raciocinar – o que é
terrivelmente difícil – que me acompanhe.
Vim te escrever. Quer dizer: Ser
Clarice Lispector
Publicado em 1973, Água Viva aborda um dos problemas fundamentais
do projeto literário de Clarice Lispector: a questão dos
limites da personalidade e sua plena identificação com os limites
da linguagem. A convergência entre essas duas questões aparece
nesse romance através da reflexão sobre a Escrita Automática, pensada
conforme a teoria surrealista. Esse procedimento seria capaz
de libertar o sujeito dos limites impostos pela consciência e revelarlhe
sua essência primeira – o Ser. A encarnação do procedimento
surrealista em um romance de forte carga metalingüística, como
Água Viva, entretanto, amplia, como este artigo pretende demonstrar,
seu alcance filosófico. Lançando mão da reflexão sobre o
Automatismo e aplicando-o através da Escrita Automática, Clarice
Lispector adensa e aprofunda, no romance em questão, sua reflexão
ontológica e sua concepção de homem, já apresentadas em obras
anteriores. Como veremos, a liberdade proporcionada pelo
Automatismo é, em Lispector, uma experiência necessária e
epifânica, porém ameaçadora e, portanto, demanda, paradoxalmente,
ainda que o mínimo controle da consciência.
Numa trama que apaga os contornos tradicionais do gênero
romance, uma voz feminina dirige-se a um interlocutor masculino,
expressando sua ânsia na busca pelo que chama de “quarta
dimensão do instante-já”. Conforme sugere o nome, essa “quarta
dimensão do instante-já” caracteriza-se por sua atualidade, uma
vez que se dá no presente absoluto do instante, e por sua
essencialidade, uma vez que, para protagonista: Cada coisa tem um
instante em que ela é (LISPECTOR, 1998, p. 9) [grifo nosso]. Em
outras palavras, a protagonista está em busca de uma experiência
do presente vivo, não rememorado, que coincide, para ela, com a
essência de todas as coisas.
Se o Ser revela-se na instantaneidade, sua experiência, desejada
pela protagonista, só é possível através do mergulho no fluxo do
tempo e, portanto, da dissolução da unidade e individualidade do
observador:
Meu tema é o instante? Meu tema de vida. Procuro
estar a par dele, divido-me milhares de vezes em
tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária
que sou e precários os momentos – só me
comprometo como a vida que nasça com o tempo e
com ele cresça: só no tempo há espaço para mim.
(LISPECTOR, 1998, p. 9)
Como se sabe, a consciência racional, que define as linhas da
unidade e da individualidade, é sempre posterior ao instante, pois
não o experimenta, apenas o representa a posteriori. Assim, o problema
do Ser só pode ser resolvido com a superação do abismo entre a
consciência e o tempo, ou seja, com descoberta de uma experiência
psíquica anterior à representação. Para a protagonista de Água Viva,
a arte seria a ponte que se erige sobre esse abismo. Pintora, ela se
lança agora, em Água viva, numa nova experiência artística – a literatura,
explicando-se da seguinte forma ao seu interlocutor:
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o
sabor-a-ti é abstrato como o instante. É também
com o corpo todo que pinto os meus quadros e na
tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo
mesma. Não se compreende música: ouve-se. Ouveme
então com teu corpo inteiro. Quando vieres a
me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura
e às minhas exposições, já que escrevo tão tosco
e sem ordem. É que agora sinto necessidade de
palavras – e é novo para mim o que escrevo por que
minha verdadeira palavra foi até agora intocada.
A palavra é minha quarta dimensão (LISPECTOR,
1998, p. 10).
A comparação entre a expressão verbal, a pintura e a música,
insinuada no trecho acima, é constante em Água Viva e pode ser
tomada como uma de suas chaves de leitura. Nesse sentido, a epigrafe
da obra é esclarecedora, pois resume, nas palavras de Michel
Seuphor, o esforço poético da protagonista:
Tinha que existir uma pintura totalmente livre da
dependência da figura – o objeto – que, como a música,
não ilustra coisa alguma, não conta uma história
e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em
evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o
sonho se torna pensamento, onde o traço se torna
existência. (LISPECTOR, 1998, p. 7)(...)
Referências Bibliográficas
BRETON, André. Manifesto do surrealismo. In: TELES, Gilberto
Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação
dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências
vanguardistas, de 1857 a 1972. Petrópolis: Vozes, 1992.
CHENIUEX-GENDRON, Jacqueline. O surrealismo. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
NUNES, Benedito. O mundo imaginário de Clarice Lispector. In:
_____ . O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969. p. 93-139.
LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
_____ . A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
PAZ, Octávio. André Breton ou a Busca do Início. In: _______.
Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 221-231.
LEIA NA ÍNTEGRA EM : http://www.posgrap.ufs.br/periodicos/interdisciplinar/revistas/ARQ_INTER_5/INTER5_Pg_179_187.pdf
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