“Homem disfarçado de Papai Noel
tenta matar publicitária em SP.”
(Caderno Cotidiano – FSP – 18/12/01)
Primeira coisa que ele fez, ao chegar em casa, foi tirar a roupa de Papai Noel: estava muito quente, suava em bicas. Também queixou-se de dor na coluna. Isso é por causa do saco que você carrega, observou a mulher. De fato pesava bastante, o tal saco. A razão ficou óbvia quando ele esvaziou o conteúdo sobre a mesa: revólveres, granadas, submetralhadoras, vários pentes de munição. Já não dá para sair de casa sem um arsenal resmungou. 0 seu mau humor era tão óbvio que ela tentou amenizá-lo, puxando conversa. Como foi o seu dia, perguntou.
— Um desastre foi a azeda resposta. — Mais uma vez errei a pontaria. Já é a segunda vez nesta semana.
— Isto é o cansaço — disse ela.
— Você precisa de um repouso. Amanhã você vai ficar em casa, não vai?
— De que jeito? Tenho trabalho
-Amanhã? No dia de Natal?
— O que é que você quer? É a minha última chance de usar a fantasia de Papai Noel Tenho de aproveitar.
Suspirou:
— Vida de pistoleiro de aluguel é assim mesmo, mulher. Natal, Ano Novo, essas coisas para nós não existem. Primeiro a obrigação. Depois a celebração.
Ela ficou pensando um instante. — Neste caso — disse —, vamos antecipar a nossa festinha de Natal Vou lhe dar o seu presente.
Abriu um armário e de lá tirou um caprichado embrulho. Surpreso, o homem o abriu com mãos trêmulas. E aí o seu rosto se iluminou:
-Um colete à prova de balas! Exatamente o que eu queria! Como é que você adivinhou?
— Ora — disse ela, modesta, afinal de contas eu conheço você há um bocado de tempo.
Ele examinava o colete, maravilhado. E aí notou que ele era todo enfeitado com minúsculos desenhos.
— O que é isto? perguntou intrigado.
Ela explicou: eram pequenas árvores de Natal e desenhos do Papai Noel, trabalho de uma habilidosa bordadeira nordestina:
— Para você lembrar de mim quando estiver trabalhando.
Ele começou a chorar baixinho. Em silêncio, ela o abraçou. Compreendia perfeitamente o que se passava com ele. Ninguém é imune ao espírito natalino.
Texto extraído do jornal “Folha de São Paulo”, São Paulo, edição de 24/12/2001, publicado com o título "Espírito natalino, 2001.
Moacyr Scliar, às segundas-feiras, escreve um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.
http://www.releituras.com/mscliar_menu.asp
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