sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O suicídio como protesto - SYLVIO BACK (escreve sobre Stefan Zweig)

Cronópios 12/3/2006 21:57:00
O suicídio como protesto

Por Sylvio Back

Não é de hoje que o tema da "morte voluntária" me fascina. Desde a juventude. Talvez porque eu mesmo seja filho de um suicida, ainda que eu só viesse a saber do trágico destino deste judeu húngaro, que se envenenou no Rio de Janeiro em 1950 e pelo gesto, como escarmento aos seus, foi enterrado do lado de fora do cemitério, - já homem feito.
Certamente alguma "osmose cármica" tenha pairado no ar nesses anos todos de ignorância e censura familiar. Sempre curti ler biografia de suicidas, noticiário de imprensa, suas cartas de adeus, as razões e as desrazões do ato, a minudicente e produzida encenação da morte, a teatralização de quase todos, solitários performers sem platéia alguma, a não ser o prazer de antecipar-se à natureza e flertar com o infinito.
Em 1984, realizando o doc "O Auto-Retrato de Bakun" sobre o suicídio do genial pintor paranaense, Miguel Bakun, me vali do transe mediúnico como instância de uma, digamos, "não-história memorial", para ir ao âmago do mistério. Cheguei, sim, muito perto de perguntas irrespondíveis, mas também perto e perdido em respostas mágicas que atiçaram ainda mais o desejo em penetrar no mistério da morte procurada de Stefan Zweig.
Calabouço do próprio sentido do viver, aquela irresistível "atração para o nada" (Albert Camus) que alguma vez em nossas vidas todos sentimos, o suicídio é sempre um gesto insondável. Diria que ele é própria metáfora do indizível e do indecifrável. Em "Lost Zweig" jogo com a liberdade poética de que o suicídio, por mais planejado ou tresloucado que seja, é sempre a irrupção de uma volúpia quase erótica instalada no íntimo da pessoa como se um vírus fora. Um dia, ele emerge e pronto. Quase como um poema: você não premedita, simplesmente comete!

Parto dessa premissa não apenas pela impecável e premonitória descrição que Zweig faz do suicídio na biografia do dramaturgo alemão, Heinrich von Kleist (1777-1811), que convidou a sua melhor amiga para se matarem juntos, mas por ter fracassado em convencer a primeira mulher, Friderike, a morrer com ele em 1921. Quatro anos mais tarde publica a biografia de Kleist. E vinte e um anos depois, a segunda esposa, Lotte, não lhe trai a compulsão e a aposta existencial de que "quanto mais voluntária a morte, mais bela ela é" - Zweig fazendo suas as palavras de Montaigne, sobre quem investigava em Petrópolis.
Como o sonho, a "auto-morte" tem o estranho dom de permanecer desdatada. Nem com o passar dos anos ela se torna mais transparente ou, na melhor das hipóteses, menos opaca. Ao contrário, o imaginário só cresce, maximiza e engessa a sombra do que fica para sempre irrevelado. Pior ainda, de tempos em tempos como que vai atualizando a tragédia. A fria e premeditada queda dos Zweig rumo à imortalidade é paradigmática nesse sentido. Daí ainda hoje despertar tanta curiosidade e perplexidade.
Foi a partir da publicação da biografia, "Morte no Paraíso", do jornalista e escritor, Alberto Dines, em 1981, que a idéia de realizar um filme sobre o famoso autor de "Brasil, País do Futuro" foi tomando forma. É que Dines, dedicando-se a esmiuçar a "vida brasileira" do casal Stefan Zweig, soube com rara habilidade entrelaçar os angustiantes meses que antecederam à morte dele, aos sessenta anos, juntamente com a jovem esposa, Lotte, de apenas trinta e três, e todo o seu passado europeu e o próprio ato terminal em Petrópolis (RJ). Como o assunto e o personagem me desafiavam há anos, comprei os direitos de filmagem. Após as primeiras versões em português, incorporei ao projeto o engenho do roteirista irlandês, Nicholas O`Neill, e juntos o reescrevemos diretamente para o inglês. Da nossa parceria de cinco anos, inúmeros tratamentos, frutificou o roteiro agora filmado.
Quanto maior a traição ao livro que inspira um filme - melhor para ambos. Cinema é visibilidade, literatura - invisibilidade. Mas, não tivesse lido "Morte no Paraíso", jamais teria escrito o roteiro de "Lost Zweig". E mais, não tivesse entrevistado Alberto Dines e os macróbios amigos de Zweig (entre eles, o editor, o advogado e o tradutor) para o doc "Zweig: A Morte em Cena", que realizei em 95 para a TV alemã 3sat, "Lost Zweig" teria sucumbido à tentação da mera biografia factual. Junto às minhas próprias pesquisas, os depoimentos tomados em Petrópolis e no Rio de Janeiro me abriram ainda mais o conhecimento escamoteado em torno do cotidiano (e da morte) do escritor e de sua mulher. Desde o polêmico visto de permanência concedido pela ditadura Vargas, ostensivamente anti-semita, à tensão entre as recordações da "dourada era da segurança" européia pré-Hitler e a nostálgica ilusão de reencontrá-la no Brasil, do drama conjugal às aventuras eróticas e à bissexualidade dele, esta sempre omitida ou não intuída, aliás, chave para a compreensão de inúmeros de seus personagens.
Ainda que desça ao inferno moral de Stefan Zweig e de Lotte, na ilusória tentativa de preencher os inúmeros "buracos" negros que foram sendo deixados sem resposta ao longo dos seis meses que o casal passou no Brasil, "Lost Zweig" não vai atrás de explicações ou justificativas, como também não condena o suicídio. Apenas lhe dá a dimensão ontológica e ética que o próprio ato em si guarda.
A modernidade de Stefan Zweig pode ser medida pela sua incoercível vocação libertária, condenando todo e qualquer regime autoritário, qualquer Estado que interferisse na criação do artista e na ampla e irrestrita circulação de suas obras. Depois, aqui, no Brasil, junto aos poucos amigos costumava dizer que jamais deixava de sonhar com uma Europa sem passaporte, com moeda única, onde se pudesse viajar sem barreiras, respeitando a cultura e a língua de cada país. Como todos os poetas, Stefan Zweig era um visionário. Geralmente, cada um do seu jeito, o mundo os expele, só que as suas idéias e o seu imaginário resistem ao tempo e terminam por serem confrontados com a história. A posteridade acabou premiando a sua premonição.
"Lost Zweig", no entanto, antes que um mergulho no "suicídio", é um filme sobre a dor do exílio, a perda da língua-pátria e a compaixão. Filho de imigrantes, pai judeu húngaro e mãe alemã, sou testemunha desse sentimento, seja junto aos meus pais, seja junto a outros imigrantes que freqüentavam a nossa casa e os que conheci ao longo da vida. A dor do exílio é um sentimento voraz e sorrateiro, se parece a um incêndio de cinemateca - inextinguível. Passam os anos, as pessoas se naturalizam, se "abrasileiram", mas a sensação do despaisamento continua ali, introjetada como um segundo coração, uma "segunda" memória afetiva e cultural.
Pressinto que "Lost Zweig" reproduz o mesmo olhar de compaixão com que Zweig via a humanidade afundada no racismo, na intolerância, na imposição do pensamento único. A solidariedade a este pacifista encurralado é o mote do filme: flagrar a vida e a obra de um livre pensador, um homem eqüidistante das ideologias e palavras de ordem do seu tempo. Stefan Zweig, ao tentar junto ao ditador Vargas um território para homiziar os milhares de judeus caçados na Europa, acabou vítima do seu "paraíso", que é como chamava o Brasil, um país em forma de harpa, por isso tão musical - escreveu.



Stefan Zweig se mata pelos outros, pelos seus - fugitivos do nazismo, pela civilização sob ameaça da perda completa da liberdade de opinião, pelo direito de ir e vir. Essa perspectiva se torna insuportável para ele, especialmente, em fevereiro de 42: o Brasil rompe com o Eixo, abandonando sua neutralidade, os primeiros navios mercantes brasileiros são postos a pique, e a Europa invadida parecia impotente diante da barbárie hitlerista. Sua auto-morte, acompanhada pela jovem esposa, Lotte, é um ato de extrema coragem, talvez por isso, executado com requintes estéticos, até de poesia. O suicídio como protesto moral, como revolta política, como um "basta" contra toda e qualquer ditadura, como um chamamento à resistência, nem que seja através da própria imolação.

*Sylvio Back é cineasta, poeta e escritor. Filho de imigrantes hún­garo e alemã, é natural de Blumenau (SC). Ex-jornalista e crí­tico de cinema, au­todidata, inicia-se na direção cinematográfica em 1962, tendo escrito, dirigido e produzido até hoje trinta e seis filmes - entre curtas, médias e dez longas-metragens, esses, a saber: "Lance Maior"(1968), "A Guerra dos Pe­lados" (1971), "Ale­luia,Gretchen" (1976), "Revo­lução de 30" (1980), "Repú­blica Gua­rani" (1982), "Guerra do Bra­sil" (1987), "Rádio Auriverde" (1991), "Yndio do Brasil" (1995), "Cruz e Sousa - O Poeta do Des­terro" (1999) e “Lost Zweig” (2003).

Tem editados vinte livros - entre poesia, ensaios e os argu­men­tos/roteiros dos filmes, "Lance Maior", "Aleluia, Gret­chen", "Re­pública Guarani", "Sete Quedas", "Vida e Sangue de Po­laco", "O Auto-Retrato de Bakun", "Guerra do Brasil", "Rá­dio Auriverde", "Yndio do Brasil", "Zweig: A Morte em Cena" e "Cruz e Sousa - O Poeta do Desterro" (tetralíngüe).

Obra poética: "O ca­derno eró­tico de Sylvio Back" (Tipografia do Fundo de Ouro Preto, MG, 1986); "Moedas de Luz" (Max Limo­nad, SP, 1988); "A Vinha do De­sejo" (Geração Editorial, SP, 1994); "Yndio do Brasil" (Poemas de Filme) (No­nada, MG, 1995); "bou­doir" (7Le­tras, RJ, 1999); “Eurus” (7Letras, RJ, 2004); e “Traduzir é poetar às avessas” (Langston Hughes traduzido) (Memorial da América Latina, SP, 2005).

Com 71 láureas nacionais e internacionais, Sylvio Back é um dos mais premiados cineastas do Brasil.

FONTE : http://www.cronopios.com.br/blogdotexto/blog.asp?id=1120.

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