sábado, 1 de novembro de 2008

Abílio: as manufacturas da escrita (sobre a postagem anterior)

por Eunice Ribeiro

(...)Trata-se, como se pode observar, de textos visuais onde, por um lado, se define poeta e, por outro, se exemplifica o seu mister. De novo, aqui encontramos a analogia tipicamente abiliana poesia-trabalho e a sua correlata poesia-dor/pena, ambas obtidas, mais uma vez, a partir da dissecação morfológica do vocabulário: distinguindo radicais e sufixos, transformando sufixos em radicais, apresentam-se palavras derivadas como compostos, para, finalmente e graças a um paralelismo gráfico-espacial, se reconduzir a um sinónimo omnivalente – poeta – os vários termos da definição. Sinónimo escrito, em epífora enfática; sinónimo ilustrado, em um só rosto – Pessoa, por sinédoque transformado na universal síntese. O segundo texto da homenagem simultaneamente refere e exemplifica o acto poético enquanto acto escrito: num contraponto desenho/legenda verbal, põem-se a descoberto materiais e andanças de uma escrita, tecida de alternativas e assumidas escolhas, de uma manuscrita penosa mas que vale a pena. E reencontramos, pela voz do intertexto pessoano, predilectas fantasias de Abílio Santos: o mors-amor do escrevente, a declinação lúdica de polissemias e ambiguidades...

A escrita de Abílio, tal como a mostramos nesta flânerie do olhar crítico, é essencialmente uma grafia corporal onde se descobre a relação afectiva do homem com o traço que assina – traço caligráfico ou impresso mas sempre modelado por um sujeito. A desautomatização do acto de escrever, a reconstrução de uma escrita que, incorporando códigos colectivos e arbitrários, os transcende e personaliza, devolve-nos ao temperamento incómodo e voluntarioso de um artista pouco preocupado com sucessos e estrelatos. Esta é a naïveté estética de Abílio que lhe logrou algum imerecido anonimato, não obstante ter participado em quase uma centena de exposições colectivas e outras tantas de arte-postal, não obstante ter sido distinguido com vários prémios de pintura e gravura. Ora por pretendida intenção divulgadora, ora por suspeito contágio do objecto em análise –, procuramos aqui menos a cronologia do que o retrato que se lê/vê (quase) fora do tempo. Retrato de uma génese im-perfeita: imagens da escrita orgânica em multiformes flexões, recuperando ciclicamente o primitivo gesto pictogramático. Prolongando-se na escrita, doando-lhe o sentido e, ao mesmo tempo, usurpando-o na descoberta de privados nexos, o homem traça a sua autobiografia. As imagens de Abílio são imagens de consanguinidade e de parentesco ao dispor de quem lhes empreste olhos e lhes aprenda os contornos. Que, portanto, também podem ser os nossos.
FONTE:
http://po-ex.net/index.php?option=com_content&task=view&id=115&Itemid=31〈=

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