Jornal da Tarde, 13 de março de 1987 - 24/10/2002
Quando eu e Gil nos conhecemos em Londres, em 1972, ele disse para Caetano: ‘Jorge Mautner é o primeiro intelectual branco que respeita a cultura negra no mesmo nível’. Tenho uma arte diferente da dele, mas nos entendemos muito bem. Gil já gravou várias canções minhas, "O Relógio Quebrou", "Rouxinol", "Maracatu Atômico". Essa união de negro, mulato e branco só é percebida por uma minoria, como eu, descendente dos campos de concentração e Gil descendente de escravos – não existe problema que não assimilamos. Figa Brasil tem a ver com isto, como tem a ver com o Movimento do Kaos, que lancei em 1958. Vamos juntar tudo: Oswald de Andrade, a filosofia humanista, a poética e a filosofia da Democracia, baseada em primeiro lugar na liberdade. Antes até da negritude, antes até das lutas sociais, queremos a visão humanista. Cada ser humano é único e sagrado. Isso nos fez sempre inimigos dos dogmas e suspeitos aos dogmáticos.
Vejo tudo mergulhado numa grande superficialidade, nunca o ser humano foi tão manipulado. Nunca se manipulou tanto a idéia da vida humana, a política, a democracia: o idealismo está sendo submergido. Nossa intenção é reverter essa situação. Queremos criar clubes filosóficos onde as pessoas se reúnam, discutam, analisem. Não se vê mais intelectuais discutindo, mostrando. Até os artistas estão encastelados no tédio dos seus castelos. O ensino, depois do Acordo MEC-USAID, foi completamente barateado, não se discute mais no colégios, não existe mais curiosidade, criatividade, estímulo. Comecei a escrever meus livros em classe, no Dante Alighieri. Tudo era ensinado com vida, palpitação, paixão. Hoje isso foi amordaçado, cortaram as interligações, os fios condutores. O resultado é essa superficialidade, essa tristeza do pós-modernismo, esse desespero.
Figa Brasil é uma convocação para nos comunicarmos de novo. Que venham todos os de boa vontade. Só estão barrados os racistas e os belicistas, pois até os conservadores esclarecidos são bem-vindos. Falando sobre o povo brasileiro, Julian Marias disse que "a maior riqueza do povo é o próprio povo. Existe um sonho que não foi destruído em cada um, que resiste". O Gil sempre tocou isso para seu grande público, e eu para meus fiéis seguidores. Vamos sair dos pequenos feudos do Brasil, chegar ao Brasil grande. No Brasil, inteligente é quem tira vantagem, idealista virou sinônimo de bobo. Mas não estou desencantado. Acredito em modernizar o país, acredito em ler, escrever, estudar. Acredito na paixão de resgatar a história real, a história do sambista, do feirante, do Filho de Gandhi. Essa história tem sido cerceada pela direita e pela esquerda – que cerceou Gilberto Freyre, por exemplo. Essa universidade paralela proposta pelo Figa Brasil está além da esquerda e direita, sua matéria-prima é a preocupação humanista que resiste em todos os lugares, desde a favela.
Não somos o Messias que chega, apenas juntamos nossas forças. Queremos caminhar sobre a brasa, não sobre a chama. Essa é uma coisa para nós todos fazermos – ou ninguém. Sem lideranças ou prioridades hierárquicas. Vamos misturar tudo, cultura alemã, americana, artes marciais, da China, samba e afoxé, o jeitinho brasileiro, nossa intuição. Chegou a hora de Macunaíma começar a elaborar seu caráter. Queremos o lúdico responsável, a radical democracia. D. Pedro II planejou bem a libertação dos escravos com educação, mas aí os latifundiários aliados com os militares proclamaram a República e jogaram os negros na liberdade selvagem, tão terrível quanto o capitalismo selvagem. Figa Brasil é o desejo de uma alquimia que faça encontrar os que estão separados. Que faça sambar os que só escrevem, que faça escrever os que só têm sambado!
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