segunda-feira, 24 de novembro de 2008

"ELIAS CANETTI" - A LÍNGUA POSTA A SALVO



Não é um romance, mas lê-se como se o fosse. Tampouco é um ensaio, mas apresenta um problema e explana-o argumentativamente incitando-nos à reflexão. A Língua Posta a Salvo de Elias Canetti – no original, Die gerettete Zunge – Geschichte einer Jugend – é a primeira de três partes de uma narrativa autobiográfica, publicada entre 1977 e 1985, que acaba de chegar às livrarias com tradução de Maria Hermínia Brandão e chancela da Campo das Letras.
Prémio Nobel da Literatura em 1981, Elias Canetti (1905-1994) foi sociólogo, ensaísta, romancista e dramaturgo. Búlgaro, filho de um comerciante judeu sefardita, construiu em língua alemã, a sua língua da paixão, uma obra literária gizada no seu tempo, vigorosa, inquiridora e com reconhecido poder artístico. Nas 309 páginas deste A Língua Posta a Salvo, encontramos aquelas características, para uma leitura a um mesmo tempo intensa e fluida, com desafios intelectuais actualíssimos, como é apanágio de Elias Canetti.
O grande enfoque vai para a questão da língua enquanto objecto em que se inscreve o poder, como defendia Roland Barthes; trata-se, aqui, da apropriação da linguagem por parte da criança, e do papel da língua enquanto fecundadora da personalidade e fundadora de uma consciência que definirá o homem adulto na relação consigo mesmo e com o mundo. E este tema do poder das palavras no indivíduo perpassa a obra de Elias Canetti, fulgurante no romance Auto de Fé, com a pungente personagem Klein, um erudito inadaptado social que vive imerso em livros sem os quais não consegue viver, romance que li numa tradução francesa, há demasiados anos, mas do qual guardo indemnes o fascínio e a inquietação.
A linha vermelha que escreve o mundo
«A minha lembrança mais antiga está pincelada de vermelho». Assim se inicia a narração que segue cronologicamente os acontecimentos, de 1905 a 1921, desde Rustchuk, dois anos em Manchester, três anos em Viena e os restantes em Zurique. Fazendo a apologia da Língua, como uma longa linha sanguínea escultora da existência, Elias Canetti mostra a criança, numa primeira fase, a que chamarei fase do espanto inicial – a da descoberta da palavra, a do encontro da criança com a sua voz interior e a nova capacidade de agir sobre o real –, seguindo-se a fase da maturação da palavra, a do nascimento de uma consciência que, como uma impressão digital interna, será uma marca distintiva do indivíduo.

Com recurso ao seu exemplo, Elias Canetti constrói de forma surpreendente a criança que procura nas palavras a libertação do que se lhe amotina interiormente, e encontra no processo sentimentos novos e extremos, desde ternura exacerbada, a ódio assassino e rancor por lhe sonegarem a magia da língua: quando, na lembrança mais remota, aos dois anos de idade, o amante da ama ameaça cortar-lhe a língua com um canivete caso ele os denuncie – o que, avento, terá inspirado Margarida Baldaia na ilustração da capa, onde se vê um canivete encarnado a interromper uma linha interminável da mesma cor sanguínea –; quando a sua prima e companheira de brincadeira o impede de ver os seus cadernos, o que despoleta nele um ódio assassino que o faz, aos cinco anos, pegar num machado para a matar – a mesma amiga que, em retaliação, o empurra para uma caldeira com água a ferver, o que lhe valeu estar entre a vida e a morte; as narrativas que inventa sobre as figuras dos tapetes, diálogos que teimosamente continua em silêncio, depois de ter aquela actividade interdita; quando, aos oito anos, a mãe lhe esconde o livro pelo qual lhe dá aulas de alemão, livro que ela retinha «como se fosse um segredo», e que lhe provoca um rancor inaudito, a par do sofrimento perante a aprendizagem daquela língua feiticeira, «língua-mãe implantada tardiamente e com dores a sério», dito assim: «Não tinha qualquer livro que me servisse de controle, ela recusava-mo, teimosa e desapiedadamente, sabendo perfeitamente a afeição que eu sentia pelos livros e como tudo teria sido muito mais fácil com um livro. (…) Nem reparava que eu, com a aflição, andava a comer pouco. O terror em que eu vivia, achava-o ela pedagógico.». (...) LEIA MAIS EM : http://orgialiteraria.com/2008/11/lngua-posta-salvo-elias-canetti.html

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