par Aline Sasahara
Aline Sasahara se orgulha de ser uma cineasta engajada. Desde que se formou em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, ela a compartilhar com público seu olhar sobre as causas sociais.
Produzido para ser uma ferramenta à disposição das famílias que foram atingidas pela explosão de uma fábrica clandestina de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus (BA), “Salve, Santo Antônio !” foi o ponto de partida para um intenso debate sobre as condições precárias de trabalho em algumas regiões do Brasil na primeira edição da mostra Brésil en Mouvements, em 2005.
No dia 19 de outubro de 2006, o documentário foi exibido na sessão da Comissão de Direitos Humanos da OEA, em Washington, na qual foi lida uma petição solicita o julgamento do Governo Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Governo Brasileiro reconheceu sua culpa e se dispôs a negociar amigavelmente com o Movimento 11 de dezembro, formado pelos familiares dos moradores atingidos pela tragédia.
O impacto provocado nos franceses pelas imagens fortes de “Salve, Santo Antônio !” poderá ser conferido na mostra Social em Movimentos, no Espaço Museu da República (Rio de Janeiro), de 23 a 26 de novembro.
Entrevista Aline Sasahara
Aline Sasahara se orgulha de ser uma cineasta engajada. Desde que se formou em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, ela a compartilhar com público seu olhar sobre as causas sociais.
Produzido para ser uma ferramenta à disposição das famílias que foram atingidas pela explosão de uma fábrica clandestina de fogos de artifício
No dia 19 de outubro de 2006, o documentário foi exibido na sessão da Comissão de Direitos Humanos da OEA, em Washington, na qual foi lida uma petição solicita o julgamento do Governo Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Governo Brasileiro reconheceu sua culpa e se dispôs a negociar amigavelmente com o Movimento 11 de dezembro, formado pelos familiares dos moradores atingidos pela tragédia.
O impacto provocado nos franceses pelas imagens fortes de “Salve, Santo Antônio!” poderá ser conferido na mostra Social em Movimentos, no Espaço Museu da República (Rio de Janeiro), de
- Como surgiu a idéia de “Salve, Santo Antônio!”?
Todos os anos, desde 1998, quando ocorreu a explosão da fábrica clandestina de fogos de artifício, na qual morreram 64 pessoas, o Movimento 11 de Dezembro, assim batizado para fixar a data, promove uma manifestação para lembrar o ocorrido e chamar atenção sobre a injustiça que prevalece no caso. Até hoje, as vitimas e seus familiares não foram ressarcidos por suas perdas nem tiveram qualquer tipo de amparo ou indenização por parte do Governo. A produção continua acontecendo de forma ilegal, embora seja uma das poucas fontes de renda na região.
No ano de 2003, fui chamada pela ONG Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, uma das entidades que apóia o Movimento 11 de Dezembro, para documentar a manifestação que, naquele ano, acontecia em Salvador e previa, além de missa e caminhada, audiências com autoridades. Em contato com a realidade daquelas pessoas, com a forma corajosa como levavam a público sua dor e os efeitos nefastos de uma atividade tão perigosa, feita de forma absolutamente ilegal, assumi o compromisso de colocar meu trabalho à disposição de sua luta. Fizemos a documentação, eu, no vídeo, e João Roberto Ripper, na fotografia, e disponibilizamos o trabalho para que o Movimento 11 de Dezembro a usasse para denunciar a situação e estabelecer uma boa comunicação com o resto da comunidade de Santo Antônio de Jesus, que tende a discriminar as vítimas.
- Como foram as filmagens? Desde o início você já tinha uma idéia do que queria fazer ou o filme foi tomando forma durante a colhida de depoimentos?
Por incrível que pareça, foram apenas três dias de captação: a manifestação, em Salvador, quando conheci as pessoas, e os dois dias seguintes, quando fomos até a comunidade e gravamos as entrevistas, em que as pessoas abriram seus corações, numa demonstração de absoluta confiança, que me deixou muito comovida. Nunca mais me desgrudei desse povo. Sou parte da luta!
Com o material gravado em Salvador e as entrevistas, fui atrás de parcerias, porque não tinha nem equipamento, nem dinheiro. Chico César compôs e doou a preciosa trilha sonora. Pedi que fosse lamento e festa, porque é assim, com os fogos de artifício, da forma como são produzidos: alegria de uns, absoluta tristeza de outros. E é assim, esse povo querido de Santo Antônio: cheio de dor, mas com uma baita energia para lutar por seus direitos e pelo futuro da gente que vive ali, naquele pedacinho do Recôncavo.
A edição foi feita na ViaTV, uma produtora de São Paulo, de dois amigos queridos, o Renato Sakata e o Cachoeira. Serginho, o editor, também mergulhou, voluntariamente. Ninguém cobrou por nada. Eu e o Serginho choramos juntos, muitas vezes, ao longo da edição. Quando chegou a fita VHS, toda suja, com as imagens feitas por um cinegrafista de Santo Antônio... uau! Não conseguíamos trabalhar de olhos secos. Escolher imagens... “será que estamos exagerando”, nos perguntávamos. Mas, se a realidade daquelas pessoas não comovia o Estado, tínhamos que apelar para o registro. Para as imagens. Tínhamos também a gravação do 11 de dezembro do ano anterior, que havia sido captada pela Maria Luísa, da Rede Social... saiu assim, o “Salve, Santo Antônio”. Parte das cópias foi doada pela ViaTV, parte foi feita na base da “vaquinha”.
- Como foi sua relação com o povo da cidade? Havia desconfiança ou eles preferiam o recolhimento diante da dimensão da tragédia?
Minha relação com o povo de Santo Antônio, como já disse, foi a melhor possível. Tanto, que nos conhecemos num dia e, no mesmo dia, eles já disseram: “vocês têm que ir à Santo Antônio. Vocês tem que ouvir a nossa história”. Éramos eu, o fotógrafo João Roberto Ripper, e o ator Leonardo Vieira, que representava, na manifestação, o Movimento Humanos Direitos. O carinho foi tanto que, no dia em que gravávamos na comunidade, num certo momento, começou a vazar um som alto, de alto-falante, que impedia que continuasse a gravar. O que seria aquilo? E para nossa absoluta surpresa, começamos a ouvir os nossos nomes, no meio daquela fala alta. Era um telegrama animado. No meio daquela rua pobre, de terra, rua em que cada casa tinha uma história de tantas perdas, recebemos uma homenagem daquela comunidade, que nos deu flores, chocolates e muito, muito carinho. Foi uma choradeira inesquecível.
- Até que ponto o documentarista pode ou deve se envolver com as pessoas que contam sua história?
Eu penso que não seja possível trabalhar sem envolvimento. Eu acho que a opção pelo documentário, especialmente de temas e situações que envolvem violações aos direitos humanos, já pressupõe envolvimento. Acho que isso não precisa ser exposto. Isso fica no coração da gente, no baú das memórias, e deve se manifestar no filme, através da revelação do tema. Acho que a relação e o envolvimento se traduzem na forma final do documentário. Nunca usaria, na edição final, por exemplo, as imagens desse episódio do telegrama animado. Ali, eu era personagem e não documentarista. Ali éramos Aline, João e Leonardo, abraçados pelos amigos, que teremos para sempre. Mas, isso não tinha nada a ver com o que queríamos divulgar daquela realidade.
- O filme mostra imagens fortes que retratam tanto a tragédia provocada pela explosão quanto a exploração da mão-de-obra pobre. O que mais te impressionou?
Acho que o que mais impressiona em toda a situação, é o drama humano. A forma como o evento abalou todo um universo de relações humanas: as relações familiares, as relações entre a comunidade onde viviam as vitimas – pobres e já discriminadas por viverem na “favela” – e os demais moradores da cidade, a relação de cada um que perdeu um ou mais entes queridos, com a vida e com a falta de perspectiva de fazer a vida de forma diferente. Afinal, oito anos se passaram, e até hoje, nenhuma tipo de reparação foi feita, nenhum tipo de mediação por parte do Estado. As feridas seguem abertas.
- De que maneira o documentário pode interferir e modificar a realidade?
Eu não diria que o documentário, em si, possa interferir ou modificar, mas estou convicta de que ele é uma boa ferramenta de sensibilização e, a partir daí, de conquistas. Assim tem sido com “Salve, Santo Antônio!”. Terminada a edição, produzimos as cópias e, por meio da ViaTV, estabelecemos uma parceria com um representante de uma fábrica dos melhores projetores de vídeo disponíveis no mercado, coincidentemente estabelecido
No dia 19 de outubro, mais recente, o documentário foi, mais uma vez, utilizado na trincheira: foi exibido na sessão da Comissão de Direitos Humanos da OEA, em Washington, onde foi lida uma petição encaminhada pelo Movimento 11 de Dezembro, em conjunto com outras entidades, que solicitam julgamento do Governo Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. A sessão foi um sucesso, com o Governo Brasileiro reconhecendo sua culpa e dispondo-se a negociar, amigavelmente. O que passa a ser feito, ainda a partir desse mês. Vão ser tratadas questões referentes não só a reparação e indenização, mas também à normatização da produção de fogos de artifício. Fiquei muito feliz com a boa notícia que me foi dada de forma emocionada pelas representantes da comunidade, recém desembarcadas, de volta ao Brasil.
- Você pretende voltar à cidade para continuar contando o que aconteceu àquelas famílias nos anos seguintes à explosão?
Já voltei, algumas vezes, a Santo Antônio. E já estou programada para estar lá no próximo 11 de dezembro, quando esperamos comemorar conquistas e, juntos, assistirmos, mais uma vez, em praça pública, o vídeo que nos faz chorar, mas é, acima de tudo, uma homenagem aos que se foram e aos que resistem, batalhando por dignidade no trabalho e na vida.
- Você já trabalhou com o MST. Você acha que o fato de estar próxima ao movimento prejudica a isenção na hora de retratar a realidade dos assentamentos ou acentua uma visão crítica das estratégias da organização?
Eu, hoje, trabalho com o MST. Isto é, o Movimento sabe que pode contar comigo quando precisar documentar alguma situação, algum evento, ou produzir algum material pedagógico. Mas, essa relação de parceria, com o MST, se estabeleceu a partir de um primeiro trabalho, o “Raiz Forte”, que foi sobre o MST. Não havia, então, nenhuma relação estabelecida entre nós. Foi trabalho movido à curiosidade e à certeza de que havia ali alguma coisa grande e importante, que merecia ser pesquisada, registrada e divulgada, sem as amarras políticas, as posições pré-determinadas pela mídia, pelos grupos, eternamente, no poder e, evidentemente, contrários à organização popular e à reforma agrária. E foi a partir daí, encantada como o que conheci, que passei a estar “próxima” do MST. O fato de não ser do Movimento me dá absoluta liberdade e isenção na abordagem e tratamento dos temas. O que ocorre é que não acredito em imparcialidade e, quando me debruço sobre um tema de trabalho, a escolha, em si, já traduz um posicionamento, que, certamente, se reafirma, se necessário, de forma critica, no desenvolvimento do trabalho. Um documentário não é a verdade. É um olhar.
- O que achou da receptividade do público francês ao filme na mostra Brésil en Mouvements?
Achei o máximo! Tanto no que diz respeito ao “Raiz Forte”, como ao “Salve, Santo Antônio!”. Mas, especialmente em relação ao segundo, porque era a primeira vez que ele era exibido para um público, que não tinha nenhuma relação direta com o tema. “Salve, Santo Antônio!” não foi feito com a intenção de ser exibido no circuito, fosse de TVs comerciais ou festivais. Foi produzido para ser ferramenta à disposição daquelas pessoas. Eu achava mesmo, que as pessoas não suportariam o filme. Ele é pesado. O perfil da mostra Brésil en Mouvements, no entanto, convidava a inscrevê-lo. Achamos que valia à pena contar essa história para o público que se interessasse por filmes que falassem de como as pessoas se organizam e lutam para construir um Brasil menos excludente e mais justo. E acertamos! As pessoas chegaram até a manifestar sua disposição em ajudar.
- De que maneira o debate e a crítica atuam na hora de se pensar e planejar um outro filme?
O debate e a crítica, não só por ocasião dessa mostra, mas em todas as oportunidades que tive, foram muito estimulantes, fazendo-me crer que devo insistir no caminho que escolhi: de fazer documentário sobre temas sociais, sobre temas que não encontram espaço de divulgação na mídia, ou são tratados por ela de forma absolutamente distorcida, preconceituosa. Às vezes, é muito desanimador trabalhar numa área em que é tão difícil obter recursos para realizar o que você acredita ser necessário e, não raro, urgente. E o debate, a troca, as estocadas, até, funcionam como um certo combustível que te move a fazer mais, mais atento a aspectos que foram observados, de forma mais... madura?!
- Quais são seus próximos projetos?
Uau! Eu queria mesmo conseguir financiamento para concretizar um projeto de capacitação e documentação sistemática de algumas comunidades/temas, com que já tenho trabalhado, dentre elas, o próprio MST e o povo de Santo Antônio de Jesus, as comunidades quilombolas de Alcântara, ameaçadas pela instalação e funcionamento do centro de lançamento de foguetes e os trabalhadores do fumo, no Recôncavo Baiano. Mas, enquanto isso não acontece, estou envolvida em terminar o documentário, já iniciado, sobre Alcântara, na perspectiva mencionada, e sonho com um filme sobre o movimento camponês na África e a questão da soberania alimentar no continente. E mais um bocado de coisa!
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