Carlos A.
Lungarzo
Nos últimos meses, alguns
políticos, magistrados, repressores (armados ou não) e comunicadores estão se
tornando obsessivos com algo que eles pretendem vender como se fosse uma “lei”
brasileira:
O ESTRANGEIRO DEVE FICAR CALADO em qualquer assunto político, ou que
possa parecer político, ou que alguém com suficiente poder diga que é político.
Não estou aludindo,
obviamente, as atitudes de algumas pessoas públicas que lembram a existência desta mordaça, justamente para proteger estrangeiros vulneráveis que,
por distração, poderiam emitir alguma opinião que os comprometa. Pelo
contrário, esses dignitários estão fazendo um ato importante, e seu valor é
ainda maior quando se percebe que conseguem transmitir essa mensagem de maneira
sutil.
Nesse sentido, acho que é
fundamental que dignitários públicos lembrem sempre isto de maneira amigável,
para evitar que os inquisidores possam aproveitar algum erro desses
estrangeiros.
O que se fala nos meios
inquisitoriais não é apenas que o estrangeiro não pode ter militância partidária, que é algo que está proibido também em
outros países com democracias simbólicas (não naqueles com democracias
substantivas onde, às vezes, um estrangeiro não naturalizado até pode votar e
ser candidato).
O que estas pessoas
tentam proibir, aqui no Brasil, é a simples declaração, ou seja, o uso da fala, da opinião, do direito de dizer
ou escrever. Isto significa proibir um direito humano extremamente básico,
porque uma opinião é apenas a transformação de um conteúdo do pensamento em
mensagem externo. Proíbe-se opinar porque
os inquisidores não conhecem um método que proíba pensar. Se eles descobrissem, o pensamento também seria punido.
Sabemos que o direito à
crítica está permitido até em países relativamente autoritários, e só está
vedado em ditaduras truculentas, ou em sociedades teocráticas onde existe o
“crime” de blasfêmia. Mas, os que estão criando onda em torno à proibição de
emitir declarações políticas para estrangeiros estão indo além. Eles não proíbem
apenas a crítica: proíbem qualquer manifestação
que possa ser rotulada (com qualquer critério) como política.
É importante lembrar que
a Lei 6815/80 chamada Estatuto do Estrangeiro, criada pela
ditadura militar em agosto de 1980 (e considerada pelos parlamentares de
oposição da época como “fascista e stalinista”), não proíbe o direito do estrangeiro à opinião política. É claro que
a lei é draconiana e as acusações contra essa são corretas, e que sua atual
vigência apenas contribui a desconstruir o mito da ausência de xenofobia, mas,
mesmo assim, ela não coloca uma mordaça tão grande quanto a que está sendo
criada agora.
Por parte das elites, a
boa recepção do estrangeiro vale no caso das elites de outros países, mas não
vale no caso dos que, por causa de classe, ideologia ou sensibilidade, assumem
posições que contariam seus interesses ou alianças.
Em realidade, todas as
leis de imigração dos países Latino Americanos seguem o modelo xenófobo
estabelecido pela tradição colonialista dos países católicos (neste caso,
Espanha e Portugal), que recolhe o espírito de perseguição da Igreja contra
qualquer “de fora” (seja em sentido nacional, racial ou religioso).
Mas,
a lei brasileira contra os
estrangeiros talvez não seja a pior do Continente. Em seu artigo 107, ela
proíbe apenas a ação política do
estrangeiro, e não a opinião sobre situações
políticas. Eu tenho uma experiência pessoal positiva sobre essa lei.
Durante
a ditadura, quando comecei como professor da UNICAMP, eu ofereci várias
declarações à imprensa sobre a barbárie das ditaduras argentina e chilenas, e não
fui punido nem pela ditadura brasileira nem pela magistratura, apesar da
“fraternidade” existente entre todos os tiranos. A punição contra mim foi
gestada exclusivamente por três colegas dos países afetados por minha crítica,
e foi aprovada por meu chefe que era brasileiro. Ainda assim, perdi o emprego,
mas nunca fui expulso do país.
Decidi ir a México com minha família por alguns anos, temendo que os
denunciantes favorecessem um atentado, mas a ditadura não me ameaçou em momento
nenhum. Dou este exemplo para mostrar que este clima de terror contra alguns estrangeiros específicos não
existiu na durante a segunda parte da ditadura. (Imagino que deve ter existido
na primeira parte, até 1976, mas eu nunca tinha estado no Brasil antes dessa
data).
Observem
o que diz o artigo 107 da lei 6815,
onde se fala da relação entre estrangeiro e política.
Art. 107. O estrangeiro admitido no
território nacional não pode exercer atividade de natureza política, nem se
imiscuir, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do Brasil, sendo-lhe
especialmente vedado: (Renumerado
pela Lei nº 6.964, de 09/12/81)
I - organizar, criar ou manter
sociedade ou quaisquer entidades de caráter político, ainda que tenham por fim
apenas a propaganda ou a difusão, exclusivamente entre compatriotas, de idéias,
programas ou normas de ação de partidos políticos do país de origem;
II - exercer ação individual, junto
a compatriotas ou não, no sentido de obter, mediante coação ou constrangimento
de qualquer natureza, adesão a idéias, programas ou normas de ação de partidos
ou facções políticas de qualquer país;
III - organizar desfiles, passeatas,
comícios e reuniões de qualquer natureza, ou deles participar, com os fins a
que se referem os itens I e II deste artigo.
Vejamos o que significam estes três itens:
a.
O estrangeiro não pode criar uma
“filial” de um partido de seu país de origem.
Mas, será que fazer declarações sobre a situação política é o
mesmo que fundar um partido??
b. Não pode impor suas idéias políticas com coação e constrangimento, ou seja, pela violência. Então, os
linchadores atuais acham que opinião
e violência são a mesma coisa?
c. Não pode mobilizar as
pessoas com uma finalidade política. Mas isso, nada tem a ver com proferir
conferências que esclareça sobre assuntos políticos, por exemplo, pintando a
verdadeira natureza de certos sistemas fascistas.
Não estou defendendo uma causa pessoal. Eu votei por última vez em
meu país de origem, com 23 anos. Passou muito tempo. Desde então, nunca pedi
documento de eleitor em nenhum dos 19 países onde estive, e tampouco tenho votado
através do consulado de meu país de origem. Dificilmente, alguém pode dizer que
tenho interesse em algum partido político nacional ou estrangeiro.
Então, pareceria que: se um
estrangeiro não trabalha para um partido político, e atua sempre de maneira
pacífica, não teria nada de temer. Mas, lamentavelmente isso não é
verdade, porque esta confraria de linchadores e inquisidores interpreta as
coisas de maneira “original”.
Os
inquisidores têm uma definição própria de “política”, de maneira que qualquer
um pode ser pego se eles quiserem.
Para eles, é política esclarecer as pessoas, educar a juventude, combater o
racismo, pedir liberdade de pensamento, defender o direito de asilo,
posicionar-se contra a tortura, tomar lado pela paz e contra os que fazem a
guerra, e assim em diante.
Se você diz, por exemplo, que a energia nuclear é um desafio à paz
mundial, um mecanismo de terror maior que qualquer outro já conhecido, e que a
sociedade deve unir-se para combatê-la, aparecerão os bajuladores do poder
dizendo, enquanto apontam como o dedo: “Tá vendo, tá vendo... estes subversivos
criticam nossa política...”
Para estas mentes, tudo é igual: direitos humanos, política,
estudo da sociedade, pacifismo, ecologia, e assim em diante. Um estrangeiro não
poderia nem mesmo escrever um texto de história, sociologia, filosofia, economia,
etc., porque com muita probabilidade aparecerá nela algum termo político.
Também a ciência para eles é política, como ficou claro há pouco
tempo. Em 2004, a ultradireita moveu uma campanha obscurantista sem precedentes
para derrubar uma liminar do juiz Marco Aurélio de Mello que concedia a mãe de
um embrião sem cérebro o direito de abortar. Hordas fanáticas e ensandecidas
acusaram a decisão com numerosos impropérios, e se falou confusamente de
subversão, de “moral” exótica, em fim, um caso científico, ético e humanitário foi
usado como se fosse político. Observe que, neste caso, a vítima não era
estrangeira. O que teria acontecido se o fosse?
Ou seja, o estrangeiro vulnerável (nem todos são) não pode falar de nada salvo que seja para adular
aos que têm o poder, seja poder próprio ou delegado.
Entretanto, esta proibição paleolítica contra os estrangeiros, que
lhes impede falar de quase qualquer coisa, deve ser tida em conta, porque ela
oculta uma brutal ameaça para os estrangeiros
vulneráveis. Eles devem RESPEITÁ-LA por sua própria segurança.
Para alguns inquisidores, frases como “São Paulo tem 15 milhões de
habitantes” podem interpretar-se como intromissões políticas. Claro... afinal,
esse enunciado pertence à disciplina chamada geografia política. Não pertence a geografia física como seria
enunciar a altura de um morro.
Alguém que faz um pronunciamento sobre geografia política pode ser
considerado um espião de outro país, que está calculando o potencial
demográfico do Brasil no caso de uma eventual guerra. Não se deve esquecer que grande parte dos fascistas são mentes privadas de saúde, e que o traço que
mais domina sua precária personalidade é o ódio e a paranoia. Quem duvidar,
veja por exemplo o caso do padre italiano recentemente readmitido ao Brasil, do
qual fora expulso há várias décadas. O motivo foi ter sido denunciado pela mais
grotesca figura que já viu a política do continente, que o acusou de negar-se a
celebrar uma missa encomendada pela ditadura.
Não adianta dizer que estes argumentos usados para a expulsão de
estrangeiro são absurdos disparates. Se o estrangeiro recorrer a justiça para
evitar sua expulsão, o juiz dirá (como já aconteceu milhares de vezes) que o judiciário não tem condições de
avaliar a conveniência do ato administrativo.
Vocês devem estar pensando que isto não seria lógico. Com efeito, vários juízes anularam sem qualquer
hesitação atos irreprocháveis do poder executivo, alguns absolutamente
discricionários como a concessão de asilo.
Mas, lembremos que a lógica
que usa o judiciário é a de Santo Tomás, exposta na Summa Theologiae. O juiz tem raciocínio “sagrado” e pode usar um
argumento para beneficiar um amigo e o argumento exatamente oposto para
destruir um inimigo. A verdade não interessa; aliás, muito pelo contrário,
incomoda.
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