Caso Kyle: Prêmio à Letalidade
Carlos A. Lungarzo
A competitividade é uma virtude muito
louvada pela sociedade de classes, seja ou não capitalista. Seu objetivo é
fazer com que os seres humanos, em vez de cooperar fraternalmente para melhorar
o mundo, se dividam e concorram uns com outros para aumentar a eficiência de
seu trabalho em benefício dos setores dominantes, deixando no caminho pessoas
frustradas, valores éticos enlameados e escombros das que poderiam ter sido
instituições decentes. Esse espírito de concorrência é exacerbado pela maioria
dos prêmios, cuja finalidade é aumentar a eficiência e, portanto, a divisão
darwiniana entre os membros da espécie. O setor da sociedade onde prêmios,
distinções e condecorações são mais frequentes é o militar.
Nas corporações armadas, os objetivos
de premiação são coisas tais como a quantidade de vítimas feitas pelo premiado,
a capacidade destrutiva, a habilidade em bombardeios e incêndios, e outros atos
de similar sordidez. Para induzir as turvas alienadas a reverenciar estas ações
de barbárie e seus trevosos autores, os prêmios são designados com nomes
pomposos como “mérito”, “heroísmo”, “bravura”, “patriotismo”, “honra”, e outros
conceitos metafísicos e desumanizados.
Premiar os ataques aos direitos
humanos é tão velho como a sociedade de classes, que sempre foram sociedades
teológicas organizadas. Já os
colonizadores europeus nas Américas davam prêmios aos que matavam índios em
geral e negros fugitivos. O mérito dos assassinos se media pelo número de pares
de orelhas que os criminosos cortavam dos cadáveres de suas vítimas e
entregavam a seus chefes. Os prêmios eram geralmente dados pelas autoridades
seculares, pois a igreja preferia as ameaças em vez das gratificações, como
cabe a quem tem o poder absoluto sobre céus e terra. Os padres advertiam aos
matadores que o extermínio dos infiéis era seu dever e que, se não o fizessem,
acabariam no inferno.
Caçadores de negros e índios podiam
receber promoções, que eram aumentos de salário quando trabalhavam com
“carteira assinada”, mas, nos muitos casos de “frilas”, a recompensa consistia em alguns centavos para cada par de
orelhas. Os mais orgulhosos de seu profissionalismo, às vezes entregavam
algumas cabeças completas para mostrar aos chefes como eram bons.
Além dos criminosos de estado em
tempos de paz (jagunços, forças de grupos especiais, torturadores, atiradores,
etc.) estão os criminosos de guerra. A semana passada, um deles atingiu o
máximo da fama, ao ser considerado o maior matador com projéteis da história
dos EEUU, e o segundo da história mundial.
O suboficial da Terceira
Equipe de Mar, Ar e Terra da Marinha dos EEUU (3rd. SEAL, por seu acrônimo em
inglês) CHRIS KYLE, nascido no
estado de Texas, que teve quatro missões durante a guerra de Iraque, é um dos
que ganhou alguns dos mais prezados prêmios à barbárie. Ele recebeu três Estrelas de Prata (o 3º maior prêmio ao
“heroísmo” em combate) e cinco Estrelas
de Bronze, o 4º maior prêmio à “bravura” em combate e o 9º maior prêmio
militar americano (seja ou não em combate).
Kyle recebeu também a maior distinção do Instituto Judeu para Assuntos de Segurança Nacional: o Prêmio de
Agradecimento Nacional.
Ele foi o mais letal
atirador dos EEUU e o segundo mais mortal do mundo, após Simo Hayha (1905-2002),
um militar finlandês que matou 505 soldados soviéticos na Guerra de Inverno
(1939-1940). Menos afortunado que Kyle, porém, Hayha foi perseguido durante
meses pelos soviéticos que finalmente conseguiram alvejá-lo no maxilar
inferior, deformando seu rosto. Incrivelmente, Simo se repôs e conseguiu viver
até os 97 anos.
Kyle se gaba de ter
executado 255 inimigos, mas o Pentágono só confirma 160, o qual parece ter sido
suficiente para ser premiado oito vezes. Também se gaba de ter dado um poderoso
murro na cara de um ex-governador de Minnesota que criticava, segundo ele, as
guerras e seus promotores, mas tampouco este outro “feito” foi confirmado.
No fundo, Chris Kyle não é tão
especial como seus fãs e seus inimigos acreditam. Ele é mais um dos muitos
assassinos legais que produzem as forças armadas do mundo desde há 4000 anos,
mas sua figura ganhou nestes dias uma enorme fama, por causa da aparição de seu
livro American Sniper, uma saga em
que relata seus crimes contra os resistentes iranianos.
Sniper é um
termo cunhado no século 18 na Índia, usado como apelido para alguns atiradores
tão rápidos e precisos que conseguiam matar um snipe (nome genérico para uma família de pequenos pássaros
enormemente velozes) em pleno voo. Atualmente, é sinônimo de atirador que usa
arma de grande precisão, atira desde distâncias que podem exceder um km, permanece
camuflado numa posição escondida, utiliza mira telescópica, e alveja pessoas consideradas
inimigas (civis ou militares), em cenários bélicos como cidades ou florestas,
mas não, geralmente, em grandes campos de batalha onde se usa fogo
convencional. O sniper tem como
missão o assassinato individual de inimigos, evitando atingir militares de seu
próprio país que estejam lutando contra esse inimigo. Objetivo do sniper é proteger seus irmãos de
chacina, matando seletivamente os inimigos próximos, mas não é poupar os civis do país invadido, cujas vidas inspiram nos
militares o maior desprezo.
O Currriculum Letal
Kyle é filho
de um diácono que atendia uma Escola
Dominical em Odessa, Texas. Este nome é dado em algumas seitas cristãs ao
local onde, aos domingos, se ensina às crianças a leitura de Bíblia, o que,
segundo a versão oficial, ajuda os meninos serem mais felizes e virarem homens
valiosos. O pai de Kyle deve ter levado muito a sério seu amor pela educação e
pelas crianças, porque deu a seu filho, na sua festa de oitos anos, um brinde espetacular:
um poderoso Springfield 30-06, do modelo usado pelos fuzileiros
navais durante a Guerra de Coréia, com o qual Chris começou a treinar desde
cedo sua sede de sangue matando animais inofensivos. Em harmonia com seu
temperamento violento e cruel, ganhou fama posterior como cowboy, até entrar na
Marinha americana em 1999. Vide.
A primeira “vitória” de Chris foi
atingir a longa distância uma mulher resistente iraquiana, armada apenas com
uma granada de mão, que pretendia defender-se de um número não especificado de
fuzileiros navais equipados com espingardas. Quando seu chefe lhe ordenou
atirar ele duvidou, mas decidiu fazê-lo quando recebeu a segunda ordem: “Eu
disse: atira!”. Daí em diante, ele nunca mais duvidou em matar quem quer que
fosse, desde que pudesse ser chamado de inimigo.
Após derrubar a mulher atirou na granada, que explodiu sem ferir ninguém, o que
provava que a resistente não teria sido perigosa para o grupo de marines (que
eram vários e estavam armados).
Chris encarna o modelo de militar da
maior parte dos países. Místico e supersticioso, atribui a Deus a precisão de
seus tiros, porque Ele sabe que seus alvos representam o mal e guia com seu
infinito poder os projéteis mesmo ao longo de milhares de yards e complexas trajetórias. Fanático racista, considera suas
vítimas selvagens e sujas (dirty savages).
Munido de uma convicção forte, forjada na fidelidade ao cristianismo, só tem
algo do que se arrepender: não ter podido executar ainda mais inimigos.
Kyle interveio ativamente na segunda
batalha de Fallujah (dezembro de 2004), onde executou 40 iraquianos que
defendiam posições civis de um ataque dos fuzileiros americanos nas ruas da
cidade. Sua fama, porém, deslanchou durante um dos vários ataques americanos a Ramadi, onde os resistentes
identificaram o sniper e o chamaram
“O Demônio de Ramadi”. As forças de defesa de Iraque colocaram sua cabeça a
prêmio (equivalente a 20.000 dólares), mas o criminoso serial nunca foi
atingido.
Ele retirou-se da marinha em 2009, e
montou uma empresa de consultoria para treinar snipers policiais e militares, e dar segurança privada a quem paguasse
suas tarifas. Ao deixar a US Navy
argumentou que tinha de cuidar mais da sua família.
O Assassino não está Só
A figura de Kyle produziu diversas
reações. Ele foi premiado pelo Pentágono, elogiado por jornalistas militares e
policiais, e reverenciado por alguns setores fascistoides do lumpen americano. Para os conservadores
menos truculentos, foi uma surpresa que Chris não manifestasse nenhuma tristeza
pela morte de suas vítimas. Somente para alguns liberais e para a pequena
esquerda americana, sua mórbida necessidade de vangloriar-se de seus crimes
mereceu alguns mornos sinais de desprezo.
O caso de Kyle mereceu atenção por
causa de ele ser “o melhor” justamente num “esporte” que comove mais que
qualquer outro nas sociedades militaristas: assassinado. Também o caso preocupa pela enorme propaganda que a
indústria editorial e a mídia dos EEUU fazem de quaisquer atos que tratem com
banalidade a vida de seus inimigos.
Para sermos justos, Kyle difere de
outros atiradores de elite em sua apuradíssima pontaria, uma capacidade
puramente motriz, que nada tem a ver com ética nem com ideologia. Kyle é um
eficiente atirador, assim como Mike Tyson foi um eficiente lutador de boxe.
Com certeza, milhares de atiradores
em exércitos de diversos países e sistemas políticos, têm um cacife ético tão
ruim como o de Chris, pois racismo, genocídio e desprezo pela vida alheia não
são específicos de nenhuma sociedade, embora possam variar muito de uma para
outra: são próprios de mentalidades sociopatas que encontram encaixe perfeito nas
instituições militares.
Por outro lado, é necessário ter em
conta que durante a guerra do Iraque, os americanos protagonizaram crimes
contra a humanidade de exorbitante crueldade. Veja.
As FFAA dos EEUU em suas diversas versões atacaram a população civil de
Fallujah com gás mostarda, napalm, fósforo branco e outros agentes químicos que
deformaram e aleijaram crianças, adultos e mulheres grávidas que transmitirão
suas mutilações a seus filhos.
Mesmo atuando em pequena escala, os
crimes de muitos militares que fazem bombardeios convencionais podem cobrar
mais vidas num dia que um sniper em
um ano. Portanto, figuras cujo caráter nocivo é equivalente ou superior ao de
Kyle, embora não sua habilidade com as armas, encontram-se por milhares nos
exércitos, e seria justo sentar todos
eles nos bancos dos réus de crimes de guerra e de lesa humanidade.
No Brasil, algumas organizações estão
cogitando a possibilidade de levar Kyle ao Tribunal
Penal Internacional, o que lembra a decisão de alguns grupos humanitários
de Oriente Médio, incluindo cidadãos israelenses, de processar
internacionalmente o comandante Dan
Halutz em 2002.
Com efeito, em 23/07/2002, Ariel
Sharon parabenizou o comandante Dan Halutz pelo extermínio de várias pessoas
(delas, 12 crianças) perpetrado num prédio de Gaza por meio do lançamento no
núcleo habitacional de uma bomba de uma tonelada, cuja meta era matar o líder
palestino Salah Shehade (o que aconteceu), levando também a esposa, a filha e
outros habitantes do edifício, especialmente crianças que dormiam.
O processo junto à Haia não vingou,
mas Halutz ficou como símbolo de crueldade sem limites, o que não seria nenhuma
novidade entre as tropas israelenses. Se ele foi escolhido como candidato ao processo
internacional por crime contra a humanidade, isso aconteceu apenas porque ele
era mais eficiente que os outros, e não porque seu desprezo pela vida do
inimigo fosse menor.
Neste sentido, o caso de Kyle parece
muito com o de Halutz. Chris aterrorizou muitas pessoas por ser também um “top”
em seu estilo de matar, e não porque sua letalidade fosse, em termos absolutos,
maior que as de outros militares, como os pilotos que lançaram bombas sobre
Gaza e Líbano nos últimos anos.
Outro aspecto que parecer ter chocado
na população mais sensível é sua mórbida vaidade ao fazer propaganda de seus
crimes, em sua autobiografia best-seller
American Sniper. Entretanto, se
quisermos punir uma atitude que consiste na apologia do assassinato e representa
uma péssima contribuição à educação massiva, deveríamos lembrar que tampouco
aqui Chris está sozinho.
De fato, nos últimos anos, um livro brasileiro
onde se enaltece a tortura e a brutalidade policial como método para impor “a
ordem” nas favelas, teve um grande sucesso, que deflagrou o sucesso ainda maior
de um filme baseado nele. Aliás, as duas partes do filme foram os maiores
sucessos de público do cinema brasileiro, e até o chefe de estado elogiou o
diretor e os atores daquele excelente e bem filmado hino à tortura e o
genocídio. Ainda, se quisermos condenar Kyle, também deveríamos ter em conta o
que fazem as tropas de Minustah no processo de devastação do Haiti. É claro que
o efeito nocivo de um crime não fica diminuído pela existência de outros crimes
maiores ou mais próximos, mas pareceria um critério justo encampar todos eles.
Ação Possível
Entretanto, sendo que existe um grupo
de pessoas que pretendem condenar Kyle, é importante apoiá-las, porque se não é
possível julgar todos os criminosos de lesa humanidade, nem mesmo os maiores,
pelo menos o julgamento dos mais famosos pode ser entendido como uma pressão
moral para diminuir a barbárie militarista no mundo.
Atualmente, o único local possível
para tratar o caso de Kyle é o Tribunal
Penal Internacional, cujo promotor chefe é Luis Moreno Ocampo, um jurista argentino que já produziu acusações
e ordens de detenção contra os ditadores do Sudão e da Líbia. Nenhuma de ambas
teve sucesso, pois Gaddafi foi assassinado e al-Bashir foi protegido pelas
forças “democráticas” que encontram interessante seu petróleo.
Neste caso, não será diferente. Os EEUU
nunca tem enviado um de seus réus a tribunais internacionais, mesmo quando a
própria justiça americana estava contra eles. Além disso, não há jurisdisção sobre
os EEUU por parte do TPI. Além
disso, a indignação contra Kyle não é muito grande, e os EEUU podem argumentar
que a forma de “execução programada” está apoiada por seu Plano Patriota, o que é uma aberração, mas não pode ser, lamentavelmente,
modificado pela ONU.
As pessoas interessadas podem mandar
suas petições em favor do julgamento de Kyle à sede do ICC (International Criminal
Court). As denúncias podem estar escritas em redação livre em qualquer um
das principais línguas ocidentais, mas serão mais rapidamente atendidas as
envidas em inglês ou francês. O endereço é o seguinte:
Information
and Evidence Unit
Office of the Prosecutor
Office of the Prosecutor
Post
Office Box 19519
2500 CM The Hague
The Netherlands
2500 CM The Hague
The Netherlands
Escritório do
Promotor
Unidade de
Informação e Provas
Caixa Postal
19519
2500 CM Haia, Holanda
A denúncia pode ser enviada em forma
personalizada ao Promotor Chefe (First
Prosecutor) Luis Moreno Ocampo,
no mesmo endereço.
Usualmente, Moreno Ocampo presta
muita atenção às denúncias independentes, mesmo que não tenha possibilidade
legal de dá-lhes continuação.
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