Wilman Villar: Dissidente ou Quê?
Carlos A. Lungarzo
Nestes últimos dias surgiu uma
discussão internacional sobre a morte do dissidente e preso político cubano Wilman Villar Mendoza, de 31 anos, após
56 dias de greve de fome.
Enquanto muitas fontes dizem que
Villar foi deixado morrer pelo governo cubano e que era um típico dissidente político vítima da repressão,
outras afirmam que Villar era um criminoso comum, que batia em sua mulher, e
que cometeu desacato, resistência e agressão contra a autoridade.
A polêmica parece obsoleta e
redundante:
“Desacato” é uma figura criminal que
existe no Brasil e outros países com tradição autoritária, mas é ignorada em
países realmente democráticos, onde às vezes se traduz por contempt. Não apenas no Norte da Europa, mas também na França e na
Alemanha existe até uma lei que permite o desacato, inclusive na polícia e o
exército, quando as ordens dadas pelos superiores são imorais ou iníquas.
Este código de deontologia é mencionado em vários seriados, europeus, como as excelentes
séries policiais do começo de milênio, a austríaca Kommissar Rex e a francesa Commissaire
Navarro. Na Cuba, como no Brasil, a noção de desacato é um resíduo da
mentalidade escravocrata, combinada, no caso de Cuba, com a tradição stalinista,
e no Brasil, com a do Estado Novo.
Saber se Villar bateu na esposa é bem
difícil. Raramente podemos conferir se um crime cometido em nosso bairro foi
real ou foi “plantado” pela polícia. Aliás, os argumentos cubanos são sempre
similares. Todos os que têm alguma discordância com o sistema são agentes
imperialistas, ou criminosos comuns, bandidos, mercenários, estupradores, etc.
Nos países da América Latina, é
escassa a informação sobre assuntos internacionais. Portanto, é comum encontrar
quem acredite que os diversos significados de conceitos políticos como
“esquerda”, “comunismo”, “revolução”, etc., são equivalentes, sem perceber que
muitos grupos políticos se definem dessa maneira por interesses próprios. Esta
ambiguidade produziu preocupação em intelectuais e blogueiros brasileiros em
2010, quando grupos autoqualificados de esquerda (como os partidos que apoiam
Coréia do Norte, China ou Irão) aplaudiram a indução à morte do dissidente
Orlando Zapata Tamayo pelo governo cubano.
Entretanto, apesar do caráter reiterativo
do assunto, talvez valha a pena fazer uma análise dos poucos dados que temos do
caso Villar.
Quem é Villar?
A Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional (CCDHRN),
ONG de oposição ao governo da família Castro, diz que, cerca do Natal, Cuba
teria liberado mais de 2.900 presos, cumprindo uma promessa feita pelo chefe de
estado Raul Castro dias antes. O governo confirmou esse dado pouco depois (em 3
de janeiro de 2012), com uma publicação no Diário Oficial da soltura de 2991
indultados de maneira definitiva. (Vide)
Os dados sobre Wilman Villar Mendoza têm especialmente três fontes: o próprio
governo cubano, sua esposa, Maritza Pelegrino Cabrales, e o professor Elizardo
Sánchez, fundador e presidente da CCDHRN.
Segundo relatos da esposa, no dia 2
de novembro de 2011, Willman participou na cidade de Contramaestre (na
província de Santiago, no extremo oriente da Ilha) num ato de protesto pacífico
exigindo liberdades e direitos humanos. Ele era membro da Unión Patriótica de Cuba, um grupo de oposição moderada, vinculado
com a ONG das Damas de Blanco, irmãs,
viúvas e mães de vítimas da repressão. Maritza afirma que ele foi detido nesse
mesmo dia. (Vide)
Outros artigos que não especificam sua fonte registram como data de captura o
dia 14 de novembro. (Vide)
Segundo a esposa, Wilman foi
submetido a um julgamento que durou menos de uma hora, durante o qual nenhuma
pessoa foi autorizada a entrar, incluída ela, e no qual não houve advogado. O
réu foi proibido, segundo isto, de apresentar qualquer alegação em sua defesa.
Ele foi condenado a quatro anos de
prisão sob a acusação de “desacato”, e logo no dia 25 de novembro começou uma
greve de fome, enquanto permanecia em regime isolado. Maritza conseguiu vê-lo
pela última vez em 29 de Dezembro. Algumas agências indicam a duração da greve
em 50 dias, mas o começo em 25 de novembro é mencionado por quase todas as
fontes, o que significa 56 dias.
Desde a captura de Wilman até sua
morte em 19 de janeiro de 2012, a esposa, que continuava militando com as Damas de Blanco, foi ameaçada várias vezes pela polícia, que lhe advertiu
que suas filhas de 5 e 7 anos poderiam ser colocadas sob a tutela do estado.
Sabe-se que alguns contatos fora de Cuba informaram a Maritza que Wilman tinha
morrido em 19 de janeiro. Ele foi enterrado num pequeno cemitério de
Contramestre, mas a assistência de amigos ou simpatizantes foi proibida.
O governo cubano divulgou uma nota
que apareceu em vários blogues (por exemplo, vide),
onde se relata a captura, processo e condenação de Villar numa forma totalmente
diferente:
O documento oficial diz que Villar
tinha sido detido por pedido de sua sogra (cujo nome não menciona) por ter
agredido a sua esposa em público. Essa agressão teria ocorrido em 7 de julho de
2011, ou seja, cinco meses antes de sua detenção.
O texto oficial afirma que, apesar de
ter agredido a sua esposa, a justiça cubana permitiu a Villar responder o
processo em liberdade, mas, logo em seguida, este se teria vinculado a grupos
conspiradores contra o governo. Um detalhe interessante é que o comunicado acusa Villar de ter atacado os policiais que
acudiram em defesa de sua esposa no dia do conflito conjugal. Mas, por outro
lado, o julgamento do réu foi em
novembro, e aparentemente pelo mesmo delito (desacato).
Então, como foram as coisas?
Ø Villar reagiu contra a polícia em 7
julho de 2011, quando esta veio em defesa de sua esposa, e aí começou a ser
julgado em liberdade? Mas, então, o julgamento foi por lesões à esposa, ou por
desacato, ou por ambos?
Ø Villar foi detido em 2 de novembro
durante uma passeata, e foi julgado logo em seguida. Esse julgamento foi também
por desacato? Houve sentença nos dois casos?
O
comunicado cubano afirma que:
Se disponen de abundantes pruebas y testimonios que
demuestran que no era un “disidente” ni estaba en huelga de hambre.
Fora e dentro de Cuba há numerosos
grupos que apoiam o governo da Ilha. Então, não se entende que exista apenas
uma fonte, repetida pelos diversos blogs, do alegado ataque de Villar contra
sua esposa, nem que as “abundantes provas e testemunhos” não sejam conhecidas
por ninguém. Isto é quase idêntico ao
julgamento de Cesare Battisti em Milão!
Também não fica claro por que o
atestado médico que provaria que Maritza foi espancada pelo marido apareça em todos
os blogs na mesma posição e sempre ilegível. Aliás, por que esse certificado foi “filtrado” por pessoas, que, segundos os
blogueiros, preferem permanecer anônimas? O atestado deve ter sido
produzido por um médico oficial do instituto médico legal de Havana ou
Santiago. Por que estas instituições teriam interesse em guardar sigilo sobre
um documento que só prejudica o próprio Wilman?
Aliás, é esquisito que um ato tão
escandaloso como bater na mulher em plena rua não tenha sido assistido por
outras pessoas, além dos policiais. Por que a sogra de Willman, que teria sido
a denunciante, não declara isso a algum dos numerosos veículos da mídia
internacional?
E a própria Maritza, por que não
reconhece que foi espancada pelo marido? Pode ser que ela guarde silêncio por
respeito a sua memória, mas não se entende por que nenhum dos jornalistas que
falaram com ela fez essa pergunta. Certamente, não pode argumentar-se que o
governo de Cuba, onde Maritza mora, teria interesse em censurar uma denúncia
contra Wilman. Também não pode afirmar-se que os inimigos de Cuba tenham
ameaçado Maritza. Ela estava na Ilha e não em Miami.
Dissidentes Cubanos
A palavra dissidente (de dissensão =
desacordo) é, obviamente, muito antiga, mas no contexto político social ela
só começou ser usada nos anos 40 em relação com o stalinismo. Observe que nunca
se fala dos “dissidentes” de regimes de ultradireita, como as ditaduras da
América Latina dos anos 70, ou os clássicos sistemas nazifascistas. Acontece
que a dissensão é um processo de desafio e confronto com os princípios de
certas doutrinas, ou com as consequências práticas de sua aplicação política.
Com as ditaduras do Cone Sul, não há dissenso possível. Só pode haver oposição
clandestina e geralmente violenta.
No caso do stalinismo, embora
tampouco fossem toleradas as dissidências, houve, em alguns momentos, um
aparente diálogo que tentava mostrar que os dissidentes estavam “equivocados”,
embora isso não os poupasse de punição.
A dissidência não é apenas oposição, mas uma proposta de modificação
de um aspecto doutrinário. Assim, dissidentes soviéticos questionaram a teoria
da ditadura do proletariado, do partido único, da proibição para sair do país,
etc. Numa ditadura como a Chilena ou Argentina, não existia esse tipo de
“dissidência”. Todo discordante acaba arrebentado.
O stalinismo teve uma base teórica e
tanto ele como o leninismo se atribuíam (pelo menos simbolicamente) uma
ancestralidade marxista. Pretendiam, portanto, ter um passado científico. Isso
fazia possível certa polêmica, que deva lugar, apesar da repressão e o
autoritarismo, a movimentos de
dissidentes.
Dissidente foi
o nome dado pelos questionadores a si mesmos. Os Samizdat (editores por conta própria), que editavam domesticamente
e distribuíam textos de propaganda contra o sistema, foram o melhor exemplo de
dissidência intelectual sistemática na URSS.
Por sua vez, o estado só usou esse
nome com ironia, avisando que, na realidade, esses “dissidentes” eram inimigos
do socialismo por causa de diversos “desvios”: educação burguesa, tendências
nacionalistas, resíduos idealistas, etc. Alguns deles era chamados de
sabotadores, terroristas e agentes do imperialismo. Não tenho estatísticas
completas, mas acredito que a tendência majoritária era considerar os
dissidentes como “alienados burgueses” mais que como criminosos.
Por exemplo, o físico e ativista de
DH, Andrei Dmitrievich Sakharov (1921 – 1989), Nobel de 1975, não foi reconhecido
como dissidente formal, mas como um liberal burguês com desvio de extrema
esquerda. Já os escritores Pastiernak e Soljenhitsyn foram acusados de idealistas
nacionalistas e anticomunistas. Não foram tratados como dissidentes, mas como
inimigos.
Em Cuba, o termo dissidente não foi usado pelo estado, salvo como motivo de chacota.
Desde o começo da Revolução, autênticas divergências sociológicas ou políticas
foram interpretadas como sabotagem e conspiração. Houve, porém, algumas
exceções, mas só nos primeiros momentos.
Quando, em outubro 1959, Camilo Cienfuegos Gorriarán, o líder
com maior profundidade ideológica da Revolução Cubana, morreu num acidente de
aviação, alguns setores difundiram a notícia de que teria sofrido uma sabotagem
ordenada por Fidel Castro. Na época, Ernesto “Che” Guevara refutou a suspeita e
negou que houvesse problemas entre Camilo e Fidel.
A Revolução Cubana foi totalmente
diferente da Revolução Russa. Nesta, havia uma coordenação inicial entre
marxistas, anarquistas e outros setores da esquerda, que foi enfraquecendo na
medida em que Lênin conseguiu consolidar seu poder pessoal. Mas isto tomou
vários anos e, mesmo assim, o leninismo deveu compartilhar decisões com setores
diferentes.
Em Cuba, a Revolução juntou alguns
esquerdistas típicos (como Guevara e Cienfuegos), mas a maioria dos militantes
aderia à ideologia nacionalista da família Castro. Portanto, foi fácil
consolidar um núcleo hegemônico já desde o começo. Então, quando apareceram
dissidências ou inconformismos, foram rapidamente dissolvidos.
Huber Matos (n. 1918, ainda vivo) foi
um combatente fundamental na Revolução e a sua iniciativa se deve o triunfo dos
revolucionários em Camagüey. Mas, quando tentou objetar a aproximação de Fidel
com o Partidão foi condenou a morte por um “tribunal popular”. Fidel comutou a
pena por 20 anos de prisão (1959-1979) ao final da qual saiu de Cuba. Ele nunca
foi considerado dissidente. Foi chamado traidor
e sedicioso.
Miró Cardona,
que inicialmente ocupou os cargos mais altos do estado revolucionário, também
foi um “dissidente”, mas foi obrigado a exilar-se. Incapaz de manter uma
posição independente como Matos, acabou se aliando ao imperialismo.
A viragem de Castro em direção da
URSS foi, como ele mesmo reconheceu, uma decisão pragmática, e nunca teve
qualquer afinidade ideológica com o Marxismo. Mas esta virada alarmou alguns
dissidentes, que, mesmo se manifestando de maneira pacífica, foram tratados
como traidores e quase sempre executados.
Alguns se salvaram por intervenção do
Che, como foi o caso de meu tio José Juan Lungarzo (1922-2001), em cuja
libertação influiu o fato de ser estrangeiro e ter lutado na libertação de
Argélia. Mas, Guevara tampouco simpatizava com as propostas internacionalistas
e ultrademocráticas da 4ª. internacional e sua intervenção no caso de José foi
incomum.
Após o governo de Jimmy Carter, que negociou
longamente com Cuba, a execução de dissidentes foi substituída por prisão,
trocas ou permissões para abandonar o país. Após o fim da URSS, com a entrada
de Cuba numa profunda crise econômica, os movimentos de dissidência deveram ser
tolerados de fato, mas com frequentes atos de repressão, como os que já
relatamos num artigo anterior (Vide).
Seria um exercício de maniqueísmo
tentar distribuir culpas e identificar bandidos e mocinhos. Cuba foi alvo de
enorme quantidade de atos terroristas da direita, de bloqueio e de diversos
tipos de conspiração internacional. Não sabemos se teria sido fácil estabelecer
um regime democrático e humano, compatível com o modelo de sociedade imaginado
pelo marxismo.
Mas, o que é claro é que nunca o
governo cubano, nem mesmo nos primeiros momentos da Revolução, admitiu qualquer forma de dissidência.
Por tanto, é uma ingenuidade surpreender-se de que o governo cubano não considere Villar um dissidente. Para o governo da
Ilha, dissidentes são sempre inimigos, de diferente grau e sujeitos a
diferentes punições.
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