quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Trabalho escravo: nova norma só considera ‘bola de ferro no tornozelo’ ou ‘espingarda apontada pra cabeça’



Trabalho escravo: nova norma só considera ‘bola de ferro no tornozelo’ ou ‘espingarda apontada pra cabeça’

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Portaria, anunciada na última sexta, foi publicada nesta segunda | Foto: Ministério do Trabalho do ES

Fernanda Canofre
Três dias depois de o Diário Oficial da União trazer a dispensa de André Roston, coordenador da divisão de fiscalização para erradicação do trabalho escravo do Ministério do Trabalho, a pasta anunciou uma nova portaria: 1.129. No papel, ela altera os critérios de definição do trabalho escravo no Brasil. A medida dispõe sobre conceitos como “trabalho forçado”, “jornada exaustiva”, “condições análogas à escravidão”, com a justificativa de “dar segurança jurídica à atuação do Estado brasileiro”. Na prática, no entanto, para especialistas, ela coloca em risco a segurança dos trabalhadores.
A norma diz, por exemplo, que para caracterizar uma situação análoga a trabalho escravo, o trabalhador deverá comprovar que tinha seu direito de ir e vir impedido e presença de segurança armada no local de trabalho. Comprovação de condições de trabalho degradante e jornadas exaustivas já não bastam. A mudança também transfere a divulgação dos nomes de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas para o próprio ministro do Trabalho. Antes, a lista era competência de técnicos do ministério.
Segundo informações que circularam na imprensa durante a semana, a portaria seria produto de uma negociata entre o governo de Michel Temer (PMDB) e a bancada ruralista, para garantir que a nova denúncia contra o peemedebista seja derrotada no Congresso. O que a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) nega em nota, apesar de defender a portaria e “defender a conceituação em Lei das definições específicas da caracterização de trabalho análogo a de escravo a fim de aperfeiçoar as relações de trabalho e garantir segurança jurídica para todos”.
Na leitura de juízes e procuradores que conversaram com o Sul21, a portaria contradiz decisões que vinham sendo adotadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), artigos da Constituição Federal, do Código Penal e da própria legislação trabalhista.

Para a juíza do Trabalho da 4ª Região, Luciana Stahnke, isso faz com que a norma seja “inconstitucional”. “A portaria é para fins de seguro-desemprego e inclusão na ‘lista suja’, mas ela restringe conceitos que já estão na lei. Eu acredito que, se ela não for revogada, haverá uma ação por parte do Ministério Público do Trabalho”, avalia ela.
A magistrada, que é membro da Comissão de Direitos Humanos e Trabalho Decente do TRT e da Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo no RS, conta que o anúncio pegou a todos de surpresa, incluindo a secretária da Direitos Humanos do governo Temer, Flávia Piovesan. Ela avalia como muito cedo para avaliar o impacto que a portaria terá, mas acredita que pode servir como precedente para mais alterações no combate ao trabalho escravo.
“É possível [que abra precendentes], porque agora tudo ficou mais concentrado no ministro do Trabalho. Por exemplo, a lista suja, que antes eram os técnicos que inseriam nomes, agora a empresa só vai para o cadastro com a determinação direta do ministro do Trabalho”, diz.
Para o subprocurador geral do Ministério Público do Trabalho (MPT), Luis Antonio Camargo de Melo, que trabalha com o tema do trabalho escravo desde 1992, a decisão do Ministério do Trabalho “está patrocinando um enorme retrocesso quanto ao enfrentamento do trabalho escravo contemporâneo no Brasil”. Melo explica que a maioria dos casos de condições análogas que são encontrados hoje, no país, são de trabalhadores submetidos a condições degradantes, jornadas exaustivas, servidão por dívida ou vínculo que não pode ser rompido por força maior. Sem necessariamente ter o direito de ir e vir cerceado ou armas sendo usadas contra os trabalhadores.
“Claro que há violência, há assassinatos, mas não são os casos de maior número de denúncias. A portaria está desconhecendo o volume de casos de trabalho escravo contemporâneo que acumulamos nos últimos anos”, explica Melo. “Estamos observando uma normativa do ministro do Trabalho que reduz as hipóteses às menos encontradas. Nós estamos diante de uma norma que acredita que trabalho escravo contemporâneo é, basicamente, aquele que o trabalhador está com uma bola de ferro amarrada no tornozelo ou que tem um jagunço com uma espingarda apontada para a cabeça dele”.
O subprocurador avalia ainda que a decisão do Ministério do Trabalho “desconstrói a atuação do Brasil no enfrentamento do trabalho escravo contemporâneo”. “O que nós temos encontrado, na maior parte dos casos, são aquelas situações em que o trabalhador está praticamente abandonado à própria sorte, seja na área rural ou urbana. Se você chegar para identificar [o local], vai dizer: ‘eu não fico aqui, eu não permito que meu filho fique aqui, eu não permito que um amigo fique aqui’. São situações que as pessoas não têm água potável, alimentação, local para fazer suas necessidades fisiológicas. Em que o ambiente de trabalho adoece, mutila, mata”, diz ele, apontando que isso também está destacado em decisões do STF e do TST.
Ele critica ainda a decisão de colocar a “Lista Suja” como competência do ministro, não mais da Secretaria de Inspeção do Trabalho. Mesmo com a decisão da presidente do STF, ministra Carmen Lúcia, garantindo que a lista poderia ser publicada, o governo optou por mantê-la em sigilo. A lista só foi publicada depois que o Ministério Público entrou com ação no Judiciário. “A importância dessa chamada lista suja é você não ter dinheiro público que falta para escolas, para saúde, segurança, para tantas coisas, sendo utilizado para financiar aqueles que exploram os trabalhadores e os mantém em situação análoga”.
No RS, casos se concentram na área rural
No Rio Grande do Sul os casos mais comuns ainda se concentram na área rural. Apesar de o Estado ter criado uma aura de que aqui ocorrências do tipo não são comuns, o judiciário conta outra história. A cidade de Bom Jesus, na região nordeste, com 11,4 mil habitantes, é a que lidera os casos de resgate. Segundo o mapa do Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil, do MPT e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em duas operações realizadas no município, 65 pessoas foram resgatadas. Isso equivale a 20,5% dos casos do RS.
“Temos situações de resgate de trabalhadores, inclusive em Caxias do Sul, a região mais rica do Estado. Essa portaria que reduz as identificações de trabalho escravo não é um problema em tese, mas que também afeta negativamente”, avalia o juiz Rodrigo Trindade, presidente da Amatra IV (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região). “Ainda é mais no meio rural, não é o que acontece, por exemplo, na região metropolitana de São Paulo, que nós temos trabalho em condição análoga principalmente em indústrias terceirizadas de confecção. Atualmente, no Brasil, 90% dos resgatados em situação análoga de escravidão são de terceirizados”.
Para o juiz, a terceirização tem característica de estar associada ao trabalho escravo. “Eu mesmo julguei um processo de uma empresa que contratou outra para fazer o trabalho de desmate de uma área verde. Deixavam as pessoas no meio do mato, sem comida, sem água e sem possibilidade de se deslocar”, conta.
Na avaliação dele, ao reduzir o trabalho escravo à comprovação de retirada do direito de ir e vir, a portaria vai contra o que está previsto no próprio Código Penal, que define quatro tipos de condutas características de situação análoga. Além disso, a decisão do Ministério do Trabalho ainda interfere nas atividades de fiscalização, que teriam suas condições de atuação reduzidas.
De acordo com Trindade, a Amatra IV se somou à Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), dos Procuradores do Ministério Público do Trabalho, que em breve devem lançar uma nota conjunta pedindo que o ministro Ronaldo Nogueira (PTB) reveja a posição e revogue a portaria. O deputado federal Alessandro Molon (Rede/RJ) também estaria articulando, com outros deputados, um decreto legislativo para cancelar a normativa.
Um levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), divulgado nesta quarta, aponta que o tempo médio de tramitação de um processo por trabalho escravo é de 3,6 anos. O estudo reuniu dados de 17 tribunais, inclusive, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O órgão lembra ainda que, o Brasil – último país a abolir a escravidão, no século XIX – adicionou a tipificação do trabalho degradante ao Código Penal, em 1940. Levou ainda 17 anos para que o país ratificasse a convenção da OIT assumindo o compromisso de enfrentar o trabalho escravo. Outros 38 anos, para que novas normas fossem editadas sobre o tema.
A OIT diz que ainda está preparando uma posição oficial a respeito do assunto. Em abril do ano passado, a organização publicou junto com a ONU uma posição técnica sobre o trabalho escravo no Brasil. Entre as recomendações, estavam a manutenção do conceito atual de “trabalho escravo” e que o país voltasse a divulgar a “Lista Suja dos Empregadores”.


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