https://lavrapalavra.com/2017/03/07/reciclagem-comidas-organicas-andar-de-bicicleta-nao-e-assim-que-nos-salvaremos-o-planeta/
Por Slavoj Žižek, via BlibiObs, traduzido por Daniel Alves Teixeira
Em dezembro de 2016, milhares de
cidadãos chineses asfixiados pela poluição atmosférica tiveram que se
refugiar no campo na esperança de nele encontrar uma atmosfera mais
respirável. Esse “arpocalipse” afetou 500
milhões de pessoas. Nas grandes aglomerações, a vida diária tomou a
aparência de um filme pós-apocalíptico: os transeuntes equipados com
máscaras de gás circulavam em uma fumaça sinistra que cobria as ruas
como uma coberta.
Este contexto fez aparecer claramente a
separação de classes: antes que a névoa não chegasse a fechar os
aeroportos, somente aqueles que possuíam os meios de comprar um bilhete
de avião puderam deixar as cidades. Para isentar as autoridades, os
legisladores de Pequim chegaram a classificar a névoa entre as
catástrofes meteorológicas, como se fosse um fenômeno natural, e não uma
consequência da poluição industrial. Uma nova categoria veio então se
juntar a longa lista de refugiados que fogem das guerras, das secas, dos
tsunamis, dos terremotos e das crises econômicas: os refugiados da
fumaça.
No entanto, o “arpocalipse” não tardou em
ser objeto de uma normalização. As autoridades chinesas, obrigadas a
darem conta da situação, aplicaram medidas para permitir aos cidadãos
que continuassem com sua rotina diária. Eles lhes recomendaram ficar
fechados em casa e não saírem senão em caso de necessidade, munidos de
uma máscara de gás. O fechamento das escolas fez a alegria das crianças.
Uma escapada para o campo se tornou um luxo e Pequim viu prosperar as
agências de viagem especializadas nessas pequenas excursões. O essencial
era não entrar em pânico, agir como se nada tivesse acontecido.
Uma reação compreensível, se consideramos
que “quando somos confrontados com alguma coisa tão completamente
estranho a nossa experiência coletiva, nós não realmente a vemos, mesmo
que a prova seja esmagadora. Para nós, essa “alguma coisa” é um
bombardeio de imensas alterações biológicas e físicas do mundo que nos
alimentou”. Nós níveis geológicos e biológicos, o ensaísta Ed Ayres
enumera quatro “picos” (desenvolvimento acelerados) aproximando
assintoticamente o ponto além do qual se desencadeará uma mudança
qualitativa: crescimento demográfico, o consumo de recursos limitados,
emissão de gases carbônicos, extinção em massa das espécies.
Diante dessas ameaças, a ideologia
dominante mobiliza mecanismos de dissimulação e cegueira: “Entre as
sociedades humanas ameaçadas prevalece um padrão geral de comportamento,
uma tendência a fechar os olhos ao invés de se concentrar na crise,
algo um tanto vão.” Esta atitude é aquela que separa o saber e a crença:
nós sabemos que a catástrofe (ecológica) é possível, mesmo provável,
mas nós nos recusamos a acreditar que ela vai acontecer.
Quanto o impossível se torna normal
Lembre-se do sítio de Saravejo no início
dos anos 1990: que uma cidade europeia “normal” de cerca de 500.000
habitantes se encontrasse cercada, esfomeada, bombardeada e aterrorizada
por atiradores de elite durante três anos teria parecido inimaginável
antes de 1992. Em um primeiro momento, os habitantes de Saravejo
acreditaram que essa situação não duraria. Eles pensavam em enviar seus
filhos para um lugar seguro durante uma ou duas semanas, até que as
coisas se apaziguassem. Todavia, muito rapidamente, o estado de sítio se
normalizou.
Essa mesma alternância do impossível ao
normal (com um breve interlúdio de choque e pânico) é evidente na reação
do establishment liberal americano em face da vitória de Trump. Ela se
manifesta igualmente na forma como os Estados e o grande capital
enxergam as ameaças ecológicas tais como o derretimento da calota
glacial. Os políticos e gestores que, ainda recentemente, excluíam a
ameaça de aquecimento global como um complô crypto-comunista ou, ao
menos, como um prognóstico alarmista e infundado, nos asseguram que não
há qualquer razão para pânico, considerando agora o aquecimento global
como um fato estabelecido, como um elemento normal.