segunda-feira, 13 de março de 2017

Bruno Latour: “O objetivo da ciência não é produzir verdade indiscutíveis, mas discutíveis”


Bruno Latour: “O objetivo da ciência não é produzir verdade indiscutíveis, mas discutíveis”

Postado em Publicado em Cultura
 
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Crédito: Ana Cláudio Rodrigues / Divulgação / CP
Considerado um dos principais nomes do pensamento francês atual, especialista em tecnologia e em filosofia da ciência, professor no mais do que prestigioso Instituto de Ciências Políticas de Paris, conhecido como “Sciences Po”, professor convidado permanente na Universidade Harvard, Bruno Latour (1947) tornou-se famoso pelo desenvolvimento da teoria ator-rede (TAR), segundo a qual atores humanos e não humanos interagem e se influenciam reciprocamente, e por teses contundentes como a expressa no ensaio “Jamais fomos modernos”. A modernidade, no entender dele, apesar de sua ambiguidade, pressupunha uma separação entre humano e não-humano, sujeito e objeto, política e ciência. Latour nos recebe no MédiaLab, seu laboratório de pesquisa no antigo prédio da Escola Nacional de Administração (ENA), em Saint-Germain-des-Prés, onde funciona o ISP. Depois de terminar uma entrevista sobre eleições na França para a revista de esquerda Nouvel Obs, eles nos levou para um típico café parisiense onde se entregou com fervor ao jogo de entrevistado. Com uma agenda brutal, ele só marca palestras com um ano de antecedência. O leitor do Caderno de Sábado vai embarcar numa viagem de ideias. 
Correio do Povo: O senhor trabalhou bastante com filosofia da ciência. Existe ainda hoje, de parte do grande público, uma concepção ingênua do que seja verdade científica? Por outro lado, pode existir uma ortodoxia científica fechada a novos métodos e ideias como dizia o físico Paul Feyerabend no seu livro famoso “Contra o Método”? Bruno Latour : As coisas mudaram bastante desde os tempos de Paul Feyerabend, que eu li. As pessoas já não esperam das ciências verdades definitivas. Passamos da confiança total à dúvida absoluta. É pena, pois as ciências são meios de produção de verdade no mundo. É preciso não ser ingênuo nos dois sentidos e ter confiança nas instituições respeitando a fragilidade científica. Há resultados certos e seguros. As ciências são muito mais poderosas do que dizem os seus críticos e muito mais frágeis do que pensam os ingênuos.

CP: As ciências humanas podem produzir resultados indiscutíveis? BL: O objetivo da ciência não é produzir verdade indiscutíveis, mas discutíveis. Nem as ciências naturais e exatas produzem verdades indiscutíveis. As ciências sociais realizam perfeitamente o trabalho de gerar verdades que possam ser discutidas. Elas são como as demais ciências e em certos aspectos até mais exigentes. A antropologia é muito mais exigente que muitos ramos da psicologia, da economia e da geografia. O objetivo é produzir discussões públicas normatizadas.
CP: Quando se pensa na ciência em relação à religião, à fé, parece pertinente. A fé é indiscutível. O conhecimento racional, não. Mas como fazer quando uma corrente das ciências sociais sustenta uma coisa e outra corrente sustenta o contrário. Quem terá razão? BL: A “discutabilidade” dos argumentos faz parte do trabalho científico. Isso vale para astrônomos, biólogos ou químicos. Talvez isso seja menos verdadeiro na filosofia, que já é outra coisa. As ciências sociais aceitam muito bem a discussão como parte do trabalho. Que Pierre Bourdieu discorde de mim não impede que integremos o mesmo campo, a mesma disciplina, a sociologia.
CP: Jean Baudrillard, de quem estive próximo, ironizava um pouco dizendo que a sociologia pode ser considerada uma espécie de astrologia, tão capaz como esta de produzir alguma verdade. Li num texto seu que as ciências sociais se baseiam num sistema de crença. BL: A astrologia foi ciência durante muito tempo. Ela organizou o conhecimento durante séculos. Não é destituída de interesse. As ciências sociais, diferentemente da astrologia, devem produzir enunciados discutíveis, como se diz, passíveis de refutação. Por outro lado, Baudrillard nunca foi um modelo de cientificidade.
CP: Mas justamente ele questionava a cientificidade das ciências sociais afirmando que elas eram interessantes, mas não científicas. BL: Ele foi professor de sociologia, mas eu não o tomaria como referencial para descrever modelo de operação das ciências sociais.
CP: O senhor tem falado num parlamento das coisas. Vai acontecer? BL: Já acontece. Quantos parlamentares ocupam-se da floresta amazônica ou das cataratas do Iguaçu, da quantidade de gás carbônico na atmosfera, dos peixes? Cada vez mais os eleitos, por diversos dispositivos, são obrigados a falar do não humano. Temos um parlamento das coisas na opinião pública interessada ou no trabalho dos ativistas e militantes ecologistas em defesa da natureza.
CP: No interesse dos seres humanos? Por exemplo, a defesa da Amazônia é feita constantemente em nome do futuro da humanidade. BL: Esse pode ser um ponto de vista brasileiro, até mesmo dos militares brasileiros. Outros se interessam pela Amazônia por outras razões, por ela mesma, pelos interesses dos índios, dos seringueiros, das próprias árvores, do resto do mundo, do oxigênio. A Amazônia é um exemplo em torno do qual se organiza um parlamento virtual. É um tema de representação assim como o futuro da previdência social.
CP: Candidatos disputarão vagas num parlamento como representantes das coisas, dos objetos, do chamado não humano, não dos eleitores? BL: Não é necessariamente eleitoral. O poder eleitoral é um tanto simples. Se olhamos a COP 21 ou 22 vemos que já existem países com grupos de pressão indígenas ou de representantes da extração de petróleo nas galerias. O peso efetivo é difícil de calibrar. No momento, conta mais quem tem mais dinheiro, quem tem mais dólares para influenciar. Não é justo. O dinheiro se impõe. Brasileiros se opõem aos ecologistas norte-americanos afirmando que a Amazônia é uma questão nacional e que dispensam suas lições. Há um conflito clássico de representação em relação ao território. Tudo isso já existe. Não falo de alguma coisa utópica. Não sabemos se o representante foi eleito ou pago para defender determinada coisa. O mesmo vale para o não humano. É preciso saber quais são os interesses em jogo.
CP: O futuro do não humano está garantido. E o dos humanos? BL: É um problema, mas não creio realmente na autonomia das máquinas. Trabalhei muito em pesquisas sobre tecnologia. Sempre que me mostram um instrumento automático sei que por trás dele existem muitos seres humanos, a começar por engenheiros. No filme Metrópolis, de Fritz Lang, o robô sente calor e precisa ser refrescado. Era uma pessoa. Por trás das máquinas sempre há humanos. É incontestável.
CP: Máquinas substituem cada vez mais pessoas em trabalhos de todos os tipos. É possível fazer quase tudo nos aeroportos automaticamente e até se instalar num hotel sem falar com pessoas. Na França, caixas de supermercado estão sendo substituídas rapidamente por máquinas. Para que servirão os humanos no futuro? Para algo melhor? BL: Para que um robô seja automático é preciso muita gente por trás dele. Insisto nisso. Trata-se de uma rede de sustentação entre o humano e a máquina. Eliminar o trabalho de caixa de supermercado é uma bendição, pois se trata de uma atividade desagradável. Não?
CP: Em geral, as atividades não são muito agradáveis, mas criam empregos e garantem o sustento das pessoas. Como elas sobreviverão? BL: Fundamental é que as máquinas não vão substituir os seres humanos. Isso é uma utopia completa. Mas as máquinas vão liberar as pessoas de muitas tarefas. Por exemplo, de dirigir automóveis e de trabalhar como motorista de táxi. O futuro dos humanos ou os empregos que terão é outro problema. Isso não elimina o fato de que sempre haverá seres humanos por trás das máquinas. Os economistas estão divididos quanto aos números, mais ou menos empregos. Certo é que os novos empregos não são geralmente para as mesmas pessoas desempregadas pela tecnologia. As transições são duras e penosas. Nos laboratórios japoneses, por trás de cada robozinho, há muitos engenheiros. Só o tempo nos dirá como as coisas se resolverão.
CP: Muitos o acusam de ser relativista. Isso o incomoda? BL: O relativismo não pode ser visto como uma crítica. É uma virtude. Quem critica o relativismo é absolutista. Isso é pior. O relativismo é virtuoso moral, política, religiosa e cientificamente. A verdade científica não precisa de absolutismo, mas de relativismo. O importante é estabelecer relações em todas as direções possíveis. Voltamos ao tema da “discutabilidade”. Não faz sentido que um cientista não seja relativista. Já faz alguns anos que não escuto essa crítica. É algo superado, ultrapassado, ingênuo, anacrônico. A defesa da verdade científica hoje passa justamente pelo relativismo. Talvez os filósofos ainda se interessem por esse debate, mas não os cientistas, que já mudaram seus procedimentos e parâmetros. Relativismo significa capacidade de estabelecer relações entre pontos de vista diferentes. A filosofia da ciência antigamente era simplista, ingênua e boba. Isso tudo foi importante nos anos 1950. Atacados, os cientistas buscam atualmente aliados fora do absolutismo. Paul Feyerabend foi ultrapassado pelo lado esquerdo.
CP: O Caso Sokal, denúncia que questionava a falta de cientificidade de muitos grandes pesquisadores, está completamente superado? BL: Sokal reconheceu o seu fracasso. Quem quer defender hoje a autoridade científica não pode seguir o que Sokal disse na época. Faz 40 anos que mostramos que somos capazes de chegar a resultados garantidos. Precisamos de instituições, de pesquisadores, de investimentos, de hipóteses e de discussão. Nós não mudamos. Aqueles que nos acusavam de relativismo há 40 anos agora nos pedem ajuda. Escrevi um livro intitulado A vida de laboratório. Ele é dirigido aos cientistas. Há 40 anos teria sido visto como reducionista. Tomemos a questão do clima. Os cientistas foram fortemente criticados por outros interesses ditos científicos. Hoje tudo está esclarecido. Mas os cientistas estão aprendendo com a gente em função dos ataques. Eles ainda precisam aprender bastante, pois não foram formados para refletir. Felizmente isso já está acontecendo por toda parte.
CP: Uma corrente científica diz que o aquecimento global é resultado da ação humana. Outra, sustenta o contrário. Quem tem razão? BL: É questão resolvida, dois mil a dois. Conseguimos encontrar dois cientistas que negam o papel humano no aquecimento global. Não é mais questão de maioria, mas de unanimidade. É um caso raro em que não há discordância. Todo mundo sustenta a mesma posição. As pessoas pensam que há discordância por que a Esso gastou milhões de dólares para difundir uma ideia errada sobre o fenômeno. Foi uma campanha de desinformação e de produção de ignorância em escala mundial.
CP: Complô ou hipótese? LB: Fato. Verificado. Foi possível fazer a demonstração.
CP: As ciências políticas transformam opinião em verdade? BL: A palavra ciência, neste caso, é acima de tudo uma maneira de falar. Não penso que seja de fato uma ciência. São artes políticas. A sociologia é diferente por não ter, por exemplo, a obrigação de indicar a melhor maneira de governar ou algo desse tipo. Voltamos ao começo. Não conheço ciência aplicada que não se veja às voltas com opiniões diferentes. É incontornável. Sempre foi assim.
CP: Visto que sempre há pontos de vista diferentes, o que leva alguém a escolher este ou aquele? Qual o critério? A crença? BL: As razões que levam alguém a optar, a tomar partido, a escolher, são muitas, políticas, sociais, psicológicas…
CP: Não necessariamente racionais? BL: Elas não são necessariamente irracionais, mas não são racionais tampouco no sentido de basear-se em provas indiscutíveis.
CP: Podemos ter escolhas ditas científicas não racionais? BL: Eu não utilizaria a palavra racional para descrever as ciências. Há muito de crença e de outros elementos em jogo. A ciência produz enunciados exatos, mas falar de racionalidade é muito.
CP: Quando especialistas liberais e antiliberais discutem como estabelecer critérios científicos para saber quem pode ter razão? BL: Economia e ciências políticas não são ciências. Retiro o que disse sobre a sociologia. É possível produzir verdades pontuais. Faz diferença se falamos, por exemplo, de sociologia aplicada ou fundamental. A palavra racional é enganadora. Não é o que decide. A palavra racional nada descreve. É uma ilusão de certa época.
CP: Será que as pessoas aceitariam continuar financiando a pesquisa científica se soubessem que a racionalidade não conta? BL: É estranho só querer financiar o que é racional. O dinheiro público financia estádios como os do Brasil na Copa do Mundo.
CP: Foi bastante criticado por muita gente. Em geral, aceita-se financiar aquilo que pode trazer benefícios claros à sociedade. Por exemplo, uma vacina para doenças como a dengue ou a zika. BL: Financiamos saúde e educação. Não é racional. A descoberta de uma vacina é o resultado de um processo. Acrescentar a palavra racionalidade não muda coisa alguma. Além disso, há agora uma campanha contra as vacinas. Não há unanimidade em relação a elas. Não se compreende grande coisa com a palavra racionalidade. A ciência é exata, o que não quer dizer racional. Há outras possibilidades, religiosas, morais, que não sendo racionais não são tampouco irracionais. A questão da racionalidade serviu aos interesses dos cientistas, que usavam a palavra para impedir qualquer crítica a eles. No caso do clima, cientistas, prêmios Nobel, criticavam cientistas em nome da ciência recorrendo ao termo racional como argumento. A questão do financiamento da ciência deve ser retomada. Por que mesmo financiar? É preciso convencer a cada vez. Donald Trump vai tentar eliminar a ciência nos Estados Unidos. Os cientistas serão obrigados a apresentar novos argumentos para obter financiamentos. Não será em nome da racionalidade que obterão um centavo que seja. Cada disciplina precisa ser convincente para ser financiada. As razões não são as mesmas para todos os casos. É claro que é legítimo financiar a pesquisa de uma vacina capaz de proteger contra um vírus.
CP: O senhor defende uma ciência sem racionalidade? BL: Sim. Racionalidade era um termo de uma filosofia de guerra. Foi usada no século XIX para proteger certa ideia de modernização, mas jamais teve qualquer conteúdo preciso. Se observação, experimentação, repetição e outros elementos dessa ordem garantissem resultados racionais isso seria feito desde os romanos. Pasteur não teria chegado aos seus resultados dessa forma. Nenhum cientista crê realmente nesse método. Racionalidade não tem a ver com tudo isso. A ciência alcança resultados claros e úteis, mas não racionais.
CP: Creio que a maioria dos cientistas discorda do senhor. BL: Não sou cientista. Sou filósofo. A nova situação de dúvida sobre o saber científico faz com que alguns se apeguem a uma versão datada da filosofia da ciência. Pierre Bourdieu tinha uma visão de ciência de 150 anos atrás. Nem todos podem avançar ao mesmo tempo. Estou à frente de outros. Não creio nos ideais da racionalidade.
CP: A sua teoria do ator-rede tornou-se conhecida mundialmente. É possível com ela superar a naturalização dos fatos sociais? BL: Foi concebida para isso. Antes, era preciso argumentar sobre a ligação entre humanos e não humanos. Agora, é muito mais fácil. Aceitamos que tudo se mescla. Precisamos agora de um método. Ninguém mais sustenta uma separação entre os humanos e suas tecnologias. É claro que os seres humanos estão ligados à natureza e às materialidades. Se alguém fala de micróbios ou bactérias, com a teoria ator-rede não é possível ficar no médico ou no paciente, é necessário envolver a bactéria. É tão simples que se espalhou. Tornou-se a sociologia padrão. Salvo nas ciências políticas (risos).
CP: Por que o senhor rejeita, com a ideia de não modernidade, a desconstrução crítica e a reflexão irônica da pós-modernidade? BL: Gente como Baudrillard ou Bourdieu se opunha ao que era percebido como totalitarismo da autoridade científica. Todo mundo agora pratica a desconstrução. Trump vive uma permanente desconstrução. Ninguém crê em coisa alguma. O momento da ironia e do distanciamento passou. Todos são baudrillardianos. Até a zeladora do meu prédio. Ela não crê em nada. Acha que tudo é inventado.
CP: Não é uma contradição. Retorno a uma verdade absoluta? BL: É preciso confiar nas instituições que produzem a verdade.
CP: É uma crença? BL: Confiança.
CP: Por que confiar? BL: Porque sem isso caímos na suspeita de que falamos. Basta um dado ser veiculado por um jornalista para que se diga que é falso. Se um juiz toma uma decisão, diz-se que foi comprado.
CP: O que muitas vezes é verdade. BL: Nem por isso se deixará de defender o direito, a justiça, a ciência, a religião e a política. Aquilo que foi corajoso no tempo de Baudrillard, na desconstrução da autoridade hegemônica, agora mudou de sentido. Corajoso é dizer que podemos produzir verdades relativas sólidas. Algo que é discutível, referenciado e aberto ao debate.
CP: Baseado em que se deve confiar? BL: Fiz um livro sobre o Conselho de Estado da França. Um trabalho de seis anos. Há solidez nos procedimentos jurisdicionais, mesmo submetidos, por essa esquisitice francesa, ao executivo. O ex-presidente Jacques Chirac foi condenado contra todas as previsões. O direito administrativo impôs-se. Precisamos, mesmo nos países com muita corrupção, confiar nas instituições jurídicas.
CP: Pedir confiança sem critérios sólidos não parece ingênuo? BL: Em todo caso, não cabe aos jornalistas, professores e intelectuais acrescentar mais dúvidas e suspeitas. O público não engole qualquer coisa. Não é preciso insistir nisso. A hora é de confiar. Uma posição irônica de dúvida constante hoje é criminosa. A ironia de Roland Barthes não cabe mais. Insistir nisso, como se diz nos Estados Unidos, é se colocar na pós-verdade. Temos verdades científicas sólidas e que são mais do que meras opiniões.


Por Juremir Machado da Silva

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