Nova Legislação: Aborto
e Problemas Psicológicos
Carlos A. Lungarzo
O problema do aborto é um dos poucos
sobre o qual até os ativistas autênticos de direitos humanos apresentam algum
constrangimento. Não quero sugerir que alguns defensores dos DH aprovem a
criminalização do aborto. Quando isto acontece (como no caso de pretensas
comissões de DH de organizações teocráticas), estamos diante de pessoas ou
instituições que se atribuem a condição de defensores de direitos humanos, mas
que, na prática, estão utilizando argumentos tidos como humanitários para
reforçar o poder de suas respetivas seitas ou ideologias.
Refiro-me a constrangimento porque a
defesa do aborto, apesar de ser aceita até a 12º semanas de gravidez por todos
os programas realmente humanitários, obriga também a reconhecer que o ato de
abortar, mesmo plenamente consciente, pode ser traumático para a mulher e até para
o homem que foi gerador da gravidez. Com efeito, quase todas as outras
realizações de atos que permitem a garantia de direitos humanos, são totalmente
positivas do ponto de vista psicológico. Não é constrangedor para a vítima que
o autor de um ato de racismo seja processado, embora o racismo em si mesmo seja
um fato cuja perversidade deprima. Em realidade, o constrangedor é o que
acontece em 99% ou mais dos casos: que o promotor se recuse a acusar o racista
e este receba um repreenda carinhosa do delegado.
Da mesma maneira, ninguém se sente
embaraçado por ser liberado de uma prisão injusta ou desnecessária.
Entretanto, o aborto e a eutanásia
podem causar (ao mesmo tempo em que a resolução de um problema ou sofrimento
maior) um conflito subsidiário que é o fato de ter realizado um direito básico, porém, sem possibilidade de evitar
totalmente a perda e a dor. Transformando-se num direito legitimo de
escolha de um mal menor.
No caso de aborto, o sentimento de
“solução problemática” aparece com frequência. Uma mulher gostaria de ter um
filho, mas percebe que todas as condições subjetivas e objetivas são negativas:
por exemplo, carece de emprego, de estabilidade, de capacidade emocional para
lidar com a situação, etc. Embora a mulher opte pelo aborto, pode manter certo
sentimento de angústia por causa de ter interrompido um processo que poderia
ter conduzido à geração de vida independente. (Isto não é o mesmo, obviamente,
que destruir uma vida independente, mas este
assunto merece ser tratado em outro artigo.)
É verdade que esse sentimento é
incrementado pela fraqueza psicológica da pessoa submetida a um processo
traumático (e, atualmente, punido pela lei, tornando crime a decisão sobre o
próprio corpo), que muitas vezes é fácil vítima do envenenamento social
desenvolvendo sentimentos de culpa moral e teológica inventados por setores
sociais que tiram proveito dos medos e da falta de defesa dessas gestantes (e
de muitos outros grupos sociais pobres ou não esclarecidos).
O Próximo Projeto
de Lei
Este aspecto às vezes embaraçoso da
interrupção da gravidez pode tonar menos eficiente o projeto de lei que será
lançado pelo congresso. Com certeza, o projeto é progressista e deve ser
defendido, mas possui pontos complexos. (Vide)
A comissão de juristas formada pelo
senado oferece algumas “modernizações” às partes do código penal que tratam do
aborto. Por exemplo, a gestante pode interromper a gravidez até 12 semanas de
gestação, no caso em que um médico ou psicólogo,
de acordo com normas regulamentadas pelo Conselho Federal de Medicina avalie
que a mulher carece de condições "para
arcar com a maternidade".
Este é um avanço num país onde se
cometem atos de absoluta barbárie com o apoio da maioria do Supremo Tribunal
Federal, como no caso da tentativa de punir uma mulher que estava grávida de um
embrião sem cérebro. A brutal decisão foi fantasiada por alguns
juízes com o pretexto de que autorizar a liminar para o aborto, conforme
concedida pelo magistrado Marco Aurélio de Mello, seria invadir a área do
legislativo. Embora ninguém fosse tão “ingênuo” de acreditar nesse disparate,
esse argumento parecia menos sádico que o do ministro César Peluso, para quem o
sofrimento da vítima se justificava porque o sofrimento era “bom” para o
aprendizado (o dos outros, claro!).
Mesmo tendo em conta este avanço, há
assuntos muito polêmicos. É verdade que um grupo de médicos medianamente bons
pode avaliar se a gestante tem problemas físicos que colocam sua saúde em risco
em caso de aborto. Até aí, tudo bem. Mas,
como se avaliam os problemas psicológicos?
Não se precisa de nenhum conhecimento
científico, mas apenas um pouco de bom senso, para saber que imensa maioria dos
problemas psicológicos são extremamente complexos e sutis. Não há quem possa,
por enquanto, medir a temperatura dos sentimentos ou fazer uma ressonância
magnética da angústia, embora possam existir sintomas psíquicos que produzam
modificações em variáveis fisiológicas. Talvez uma equipe multidisciplinar (médica
e psicológica) possa mostrar que a mulher tem uma grave esquizofrenia, ou
padece de uma psicose paralisante, mas...
...O que acontecerá se, pura e
simplesmente, ela se sentir
psicologicamente incapaz de “arcar” com a maternidade? Pode-se decidir
sobre a manutenção ou não da gravidez com base em interpretações freudianas, lacanianas
ou lastreadas em Melaine Klein?
Além disso, há uma razão mais
profunda para repudiar esta cláusula hipócrita:
POR QUE ALGUÉM, ALÉM DA PRÓPRIA PACIENTE, DEVE DAR PARECER SOBRE SEU
ESTADO PSICOLÓGICO?
Por que a mulher não pode decidir,
sob a base de seu próprio sentimento íntimo, subjetivo, intransferível, independente
de médicos, de psicólogos, do parceiro, e de quem quer que seja se deseja ou
não ser mãe?
A resposta foi dada, com incrível cinismo,
pela dita “defensora pública” do Estado de São Paulo. (Vale destacar que é a
resposta de uma “defensora pública”
e não de uma “atacante” pública).
"A ideia não é permitir que o
aborto seja feito por qualquer razão arbitrária ou egoística (sic)".
Que quer dizer arbitrária e egoística?
Usualmente, chama-se egoísta alguém
que pensa em si mesmo, porém
sem pensar nos outros. É
alguém que adota uma decisão por seu próprio interesse sem preocupar-se pelo
efeito que essa decisão produzirá em outros. Mas, neste caso, em quem deveria pensar a mãe “egoística”?
Se a gestante não deseja ter esse filho, ela está pensando em si mesma, mas
não está ignorando nem prejudicando alguém que ainda não possui possibilidade
de vida independente.
Talvez pudesse chamar-se de
“egoístico”, que a mulher queira satisfazer seu sentimento (em princípio,
legítimo) de ser mãe. Porém, neste caso é o inverso, pois se reconhecendo
incapaz, mesmo que circunstancialmente, de gerar uma vida com a condição mínima
de dignidade humana para isso - considerando que a criança terá uma vida
duríssima, sem possibilidade de moradia digna, alimentação suficiente e educação
adequada, e que muito provavelmente acabará, como muitos outros jovens pobres,
sendo mais uma pessoa marginalizada e vítima da repressão – decidir-se pelo
aborto não tem nada de egoísmo, ao contrário pode ser um ato de altruísmo!
Pode ser que ela queira assumir o
risco e, numa sociedade humanitária, ela
tem o direito de assumí-lo. O aborto forçado é típico de uma sociedade
totalitária como a China, por exemplo. Mas, também, o estado deveria oferecer
possibilidades de vida digna a essa criança, como acontece ainda hoje em boa
parte dos países da Europa.
Que Acontece no
Resto do Mundo?
Em países medianamente civilizados (e
não apenas em sociedades avançadas, como a Suécia e a Holanda), o aborto pelo
simples requerimento da mãe é admitido
sem necessidade de qualquer pretexto. Nem o potencial pai, responsável pela
gestação, tem nenhum direito a compartilhar a decisão jurídica, embora com
frequência ele e sua parceira troquem idéias e sentimentos.
Numa sociedade não escravagista, o
corpo é exclusivo da mulher e ele aloja um ser vivo que ainda não têm vida
autônoma, sendo, portanto, a portadora do embrião a única pessoa diretamente
atingida pelo fato. Eventualmente, o fato pode afetar indiretamente outras
pessoas, como o potencial pai e os familiares mais próximos, mas estes não
podem nem proibir o aborto quando a mulher o deseja, nem pressiona-la para que
aborte, quando ela quer manter a gravidez.
Na Europa Ocidental, o aborto por
simples pedido da mãe só está proibido em países totalmente dominados por
teocracias, como o Ulster, o Vaticano, Andorra, Malta, Mónaco e a Irlanda. Mesmo no berço do cristianismo, a Itália, a
lei de aborto é totalmente ampla.
Na Europa Oriental, a situação é
ainda mais avançada. Salvo na Ilha de Chipre, que é uma teocracia aos cuidados
de um arcebispo ortodoxo, e na Polônia, um país célebre por seu catolicismo e
por sua perseguição contra os judeus, em todos os demais Estados da região o
aborto por simples requerimento da mãe é
permitido. Chipre não admite o aborto em quase nenhuma circunstância, mas a
Polônia o admite com certas restrições.
O aborto está proibido ou fortemente
relativizado em todos os países muçulmanos, salvo na Tunísia e naqueles que
pertenceram até 1990 à Ásia Soviética. Além disso, a interrupção da gestação
sofre rigorosas restrições em quase todos os países da África, mas alguns, como
a Argélia, Botswana, Burkina Fasso e alguns outros, a permitem em caso de doenças físicas e doenças mentais.
Em outros países cujas decisões
possuem interesse internacional, a situação é a seguinte:
Canadá aceita
o aborto sem absolutamente nenhuma restrição, e Cuba também, porém dentro do espaço das primeiras 12ª semanas. Por
sinal, países que tiveram um toque de socialismo, mesmo que este tenha sido
desviado (como na antiga URSS, no Leste Europeu, etc.), o direito da mãe a
decidir sobre seu corpo é respeitado em quase todos os itens.
Nos EEUU a situação mudou radicalmente em 1973. Antes dessa data, o
aborto estava proibido em 30 estados, e era aceito em diversos casos (perigo
para a mãe, provável disfunção do feto, etc.) em outros estados, sendo
totalmente aceito apenas nos estados de Washington, New York e Alaska.
A luta pela legalização do aborto foi
muito dura, devido a enorme força dos lobbies religiosos de diversas denominações,
mas, em 1973, o assunto se tornou grande debate nacional por causa do processo Roe vs Wade, junto à Suprema Corte de
Justiça.
Nos EEUU, “Jane Roe” e “Joe Roe” são
apelidos dados a pessoas cuja identidade se pretende manter oculta num processo
jurídico. A Roe deste processo foi,
em realidade, Norma L. McCorvey, da cidade de Dallas, Texas, que em Junho de
1969 descobriu estar grávida de seu 3º filho. Ela tentou pretextos legais (como
ter sido estuprada) e ilegais (como procurar um médico clandestino), mas nenhum
recurso funcionou e acabou tendo a criança. Como o parto tinha acontecido pela
oposição da comarca de Dallas a reconhecer seu direito ao aborto, as advogadas
de Norma processaram o procurador do estado Henry Wade, em
1970. (Vide)
Após três anos de duríssimos
confrontos jurídicos, a Corte decidiu que o direito a abortar fazia parte do
direito à privacidade, garantido pela Constituição, desde que a interrupção
fosse feita no primeiro trimestre. Posteriormente, a Corte aceitou situações
que excedessem o primeiro trimestre.
Quase 40 anos depois, grupos de
fanáticos ainda se revoltam contra este acórdão e até se registram alguns atos
terroristas isolados contra clínicas que praticam aborto e contra as próprias
gestantes, seus advogados, os médicos e os paramédicos.
De qualquer maneira, cabe observar que, mesmo numa sociedade fortemente
dominada pelo misticismo e a moral puritana, os resíduos do velho espírito
democrático conseguiram o direito de aborto de uma maneira quase tão liberal
quanto a européia.
Conclusões
O que parece que se propõe realmente no Brasil não é que a
mulher tenha permissão para abortar se
experimentar um estado psicológico contrário à maternidade, mas se tiver
uma verdadeira disfunção psiquiátrica.
Ou seja, se esta proposta jurídica puder passar no congresso sem
sofrer mutilações, então, uma mulher poderá abortar se o feto carece de
cérebro, ou ela está gravemente doente, ou possui uma alteração psiquiátrica
perceptível. Além do arbitrário destas restrições, há um aspecto prático: a
formação de uma comissão de médicos e psicólogos para dar parecer em cada caso
criará muitos problemas operacionais.
Se a atenção médica em caso de
acidentes ou doenças graves é atualmente tão precária, e os erros médicos no país
se reproduzem como coelhos, como será a “eficiência” de uma comissão para algo
que a lei já considera como um fato anormal?
Se dar um parecer favorável ao aborto
é um “favor” que o Estado faz às mães desesperadas, será que isso será levado a
sério? Ou ainda, será que a autorização será dada em tempo ou quando já seja
tarde demais?
Bom, observando o quadro dos países
em relação ao aborto (vide) podemos tirar uma conclusão “otimista”.
Em Direitos Humanos não estamos tão bem como na economia (onde ultrapassamos o
Reino Unido), mas tampouco estamos tão mal: nossa lei de aborto será mais
avançada que a da Síria e do Sudão, e quase tão boa quanto a de Camarões e a do
Haiti...
Nenhum comentário:
Postar um comentário