domingo, 11 de março de 2012

ABORTO E PROBLEMAS PSICOLÓGICOS




Nova Legislação: Aborto e Problemas Psicológicos
Carlos A. Lungarzo
O problema do aborto é um dos poucos sobre o qual até os ativistas autênticos de direitos humanos apresentam algum constrangimento. Não quero sugerir que alguns defensores dos DH aprovem a criminalização do aborto. Quando isto acontece (como no caso de pretensas comissões de DH de organizações teocráticas), estamos diante de pessoas ou instituições que se atribuem a condição de defensores de direitos humanos, mas que, na prática, estão utilizando argumentos tidos como humanitários para reforçar o poder de suas respetivas seitas ou ideologias.
Refiro-me a constrangimento porque a defesa do aborto, apesar de ser aceita até a 12º semanas de gravidez por todos os programas realmente humanitários, obriga também a reconhecer que o ato de abortar, mesmo plenamente consciente, pode ser traumático para a mulher e até para o homem que foi gerador da gravidez. Com efeito, quase todas as outras realizações de atos que permitem a garantia de direitos humanos, são totalmente positivas do ponto de vista psicológico. Não é constrangedor para a vítima que o autor de um ato de racismo seja processado, embora o racismo em si mesmo seja um fato cuja perversidade deprima. Em realidade, o constrangedor é o que acontece em 99% ou mais dos casos: que o promotor se recuse a acusar o racista e este receba um repreenda carinhosa do delegado.
Da mesma maneira, ninguém se sente embaraçado por ser liberado de uma prisão injusta ou desnecessária.
Entretanto, o aborto e a eutanásia podem causar (ao mesmo tempo em que a resolução de um problema ou sofrimento maior) um conflito subsidiário que é o fato de ter realizado um direito básico, porém, sem possibilidade de evitar totalmente a perda e a dor. Transformando-se num direito legitimo de escolha de um mal menor.
No caso de aborto, o sentimento de “solução problemática” aparece com frequência. Uma mulher gostaria de ter um filho, mas percebe que todas as condições subjetivas e objetivas são negativas: por exemplo, carece de emprego, de estabilidade, de capacidade emocional para lidar com a situação, etc. Embora a mulher opte pelo aborto, pode manter certo sentimento de angústia por causa de ter interrompido um processo que poderia ter conduzido à geração de vida independente. (Isto não é o mesmo, obviamente, que destruir uma vida independente, mas este assunto merece ser tratado em outro artigo.)
É verdade que esse sentimento é incrementado pela fraqueza psicológica da pessoa submetida a um processo traumático (e, atualmente, punido pela lei, tornando crime a decisão sobre o próprio corpo), que muitas vezes é fácil vítima do envenenamento social desenvolvendo sentimentos de culpa moral e teológica inventados por setores sociais que tiram proveito dos medos e da falta de defesa dessas gestantes (e de muitos outros grupos sociais pobres ou não esclarecidos).

O Próximo Projeto de Lei

Este aspecto às vezes embaraçoso da interrupção da gravidez pode tonar menos eficiente o projeto de lei que será lançado pelo congresso. Com certeza, o projeto é progressista e deve ser defendido, mas possui pontos complexos. (Vide)
A comissão de juristas formada pelo senado oferece algumas “modernizações” às partes do código penal que tratam do aborto. Por exemplo, a gestante pode interromper a gravidez até 12 semanas de gestação, no caso em que um médico ou psicólogo, de acordo com normas regulamentadas pelo Conselho Federal de Medicina avalie que a mulher carece de condições "para arcar com a maternidade".
Este é um avanço num país onde se cometem atos de absoluta barbárie com o apoio da maioria do Supremo Tribunal Federal, como no caso da tentativa de punir uma mulher que estava grávida de um embrião sem cérebro.  A brutal decisão foi fantasiada por alguns juízes com o pretexto de que autorizar a liminar para o aborto, conforme concedida pelo magistrado Marco Aurélio de Mello, seria invadir a área do legislativo. Embora ninguém fosse tão “ingênuo” de acreditar nesse disparate, esse argumento parecia menos sádico que o do ministro César Peluso, para quem o sofrimento da vítima se justificava porque o sofrimento era “bom” para o aprendizado (o dos outros, claro!).
Mesmo tendo em conta este avanço, há assuntos muito polêmicos. É verdade que um grupo de médicos medianamente bons pode avaliar se a gestante tem problemas físicos que colocam sua saúde em risco em caso de aborto. Até aí, tudo bem. Mas, como se avaliam os problemas psicológicos?
Não se precisa de nenhum conhecimento científico, mas apenas um pouco de bom senso, para saber que imensa maioria dos problemas psicológicos são extremamente complexos e sutis. Não há quem possa, por enquanto, medir a temperatura dos sentimentos ou fazer uma ressonância magnética da angústia, embora possam existir sintomas psíquicos que produzam modificações em variáveis fisiológicas. Talvez uma equipe multidisciplinar (médica e psicológica) possa mostrar que a mulher tem uma grave esquizofrenia, ou padece de uma psicose paralisante, mas...
...O que acontecerá se, pura e simplesmente, ela se sentir psicologicamente incapaz de “arcar” com a maternidade? Pode-se decidir sobre a manutenção ou não da gravidez com base em interpretações freudianas, lacanianas ou lastreadas em Melaine Klein?
Além disso, há uma razão mais profunda para repudiar esta cláusula hipócrita:
POR QUE ALGUÉM, ALÉM DA PRÓPRIA PACIENTE, DEVE DAR PARECER SOBRE SEU ESTADO PSICOLÓGICO?
Por que a mulher não pode decidir, sob a base de seu próprio sentimento íntimo, subjetivo, intransferível, independente de médicos, de psicólogos, do parceiro, e de quem quer que seja se deseja ou não ser mãe?
A resposta foi dada, com incrível cinismo, pela dita “defensora pública” do Estado de São Paulo. (Vale destacar que é a resposta de uma “defensora pública” e não de uma “atacante” pública).
"A ideia não é permitir que o aborto seja feito por qualquer razão arbitrária ou egoística (sic)".
Que quer dizer arbitrária e egoística?
Usualmente, chama-se egoísta alguém que pensa em si mesmo, porém sem pensar nos outros. É alguém que adota uma decisão por seu próprio interesse sem preocupar-se pelo efeito que essa decisão produzirá em outros. Mas, neste caso, em quem deveria pensar a mãe “egoística”? Se a gestante não deseja ter esse filho, ela está pensando em si mesma, mas não está ignorando nem prejudicando alguém que ainda não possui possibilidade de vida independente.
Talvez pudesse chamar-se de “egoístico”, que a mulher queira satisfazer seu sentimento (em princípio, legítimo) de ser mãe. Porém, neste caso é o inverso, pois se reconhecendo incapaz, mesmo que circunstancialmente, de gerar uma vida com a condição mínima de dignidade humana para isso - considerando que a criança terá uma vida duríssima, sem possibilidade de moradia digna, alimentação suficiente e educação adequada, e que muito provavelmente acabará, como muitos outros jovens pobres, sendo mais uma pessoa marginalizada e vítima da repressão – decidir-se pelo aborto não tem nada de egoísmo, ao contrário pode ser um ato de altruísmo!
Pode ser que ela queira assumir o risco e, numa sociedade humanitária, ela tem o direito de assumí-lo. O aborto forçado é típico de uma sociedade totalitária como a China, por exemplo. Mas, também, o estado deveria oferecer possibilidades de vida digna a essa criança, como acontece ainda hoje em boa parte dos países da Europa.

Que Acontece no Resto do Mundo?

Em países medianamente civilizados (e não apenas em sociedades avançadas, como a Suécia e a Holanda), o aborto pelo simples requerimento da mãe é admitido sem necessidade de qualquer pretexto. Nem o potencial pai, responsável pela gestação, tem nenhum direito a compartilhar a decisão jurídica, embora com frequência ele e sua parceira troquem idéias e sentimentos.
Numa sociedade não escravagista, o corpo é exclusivo da mulher e ele aloja um ser vivo que ainda não têm vida autônoma, sendo, portanto, a portadora do embrião a única pessoa diretamente atingida pelo fato. Eventualmente, o fato pode afetar indiretamente outras pessoas, como o potencial pai e os familiares mais próximos, mas estes não podem nem proibir o aborto quando a mulher o deseja, nem pressiona-la para que aborte, quando ela quer manter a gravidez.
Na Europa Ocidental, o aborto por simples pedido da mãe só está proibido em países totalmente dominados por teocracias, como o Ulster, o Vaticano, Andorra, Malta, Mónaco e a Irlanda.  Mesmo no berço do cristianismo, a Itália, a lei de aborto é totalmente ampla.
Na Europa Oriental, a situação é ainda mais avançada. Salvo na Ilha de Chipre, que é uma teocracia aos cuidados de um arcebispo ortodoxo, e na Polônia, um país célebre por seu catolicismo e por sua perseguição contra os judeus, em todos os demais Estados da região o aborto por simples requerimento da mãe é permitido. Chipre não admite o aborto em quase nenhuma circunstância, mas a Polônia o admite com certas restrições.
O aborto está proibido ou fortemente relativizado em todos os países muçulmanos, salvo na Tunísia e naqueles que pertenceram até 1990 à Ásia Soviética. Além disso, a interrupção da gestação sofre rigorosas restrições em quase todos os países da África, mas alguns, como a Argélia, Botswana, Burkina Fasso e alguns outros, a permitem em caso de doenças físicas e doenças mentais.
Em outros países cujas decisões possuem interesse internacional, a situação é a seguinte:
Canadá aceita o aborto sem absolutamente nenhuma restrição, e Cuba também, porém dentro do espaço das primeiras 12ª semanas. Por sinal, países que tiveram um toque de socialismo, mesmo que este tenha sido desviado (como na antiga URSS, no Leste Europeu, etc.), o direito da mãe a decidir sobre seu corpo é respeitado em quase todos os itens.
Nos EEUU a situação mudou radicalmente em 1973. Antes dessa data, o aborto estava proibido em 30 estados, e era aceito em diversos casos (perigo para a mãe, provável disfunção do feto, etc.) em outros estados, sendo totalmente aceito apenas nos estados de Washington, New York e Alaska. 
A luta pela legalização do aborto foi muito dura, devido a enorme força dos lobbies religiosos de diversas denominações, mas, em 1973, o assunto se tornou grande debate nacional por causa do processo Roe vs Wade, junto à Suprema Corte de Justiça.
Nos EEUU, “Jane Roe” e “Joe Roe” são apelidos dados a pessoas cuja identidade se pretende manter oculta num processo jurídico. A Roe deste processo foi, em realidade, Norma L. McCorvey, da cidade de Dallas, Texas, que em Junho de 1969 descobriu estar grávida de seu 3º filho. Ela tentou pretextos legais (como ter sido estuprada) e ilegais (como procurar um médico clandestino), mas nenhum recurso funcionou e acabou tendo a criança. Como o parto tinha acontecido pela oposição da comarca de Dallas a reconhecer seu direito ao aborto, as advogadas de Norma processaram o procurador do estado Henry Wade, em 1970. (Vide)
Após três anos de duríssimos confrontos jurídicos, a Corte decidiu que o direito a abortar fazia parte do direito à privacidade, garantido pela Constituição, desde que a interrupção fosse feita no primeiro trimestre. Posteriormente, a Corte aceitou situações que excedessem o primeiro trimestre.
Quase 40 anos depois, grupos de fanáticos ainda se revoltam contra este acórdão e até se registram alguns atos terroristas isolados contra clínicas que praticam aborto e contra as próprias gestantes, seus advogados, os médicos e os paramédicos.
De qualquer maneira, cabe observar que, mesmo numa sociedade fortemente dominada pelo misticismo e a moral puritana, os resíduos do velho espírito democrático conseguiram o direito de aborto de uma maneira quase tão liberal quanto a européia.

Conclusões

O que parece que se propõe realmente no Brasil não é que a mulher tenha permissão para abortar se experimentar um estado psicológico contrário à maternidade, mas se tiver uma verdadeira disfunção psiquiátrica.
Ou seja, se esta proposta jurídica puder passar no congresso sem sofrer mutilações, então, uma mulher poderá abortar se o feto carece de cérebro, ou ela está gravemente doente, ou possui uma alteração psiquiátrica perceptível. Além do arbitrário destas restrições, há um aspecto prático: a formação de uma comissão de médicos e psicólogos para dar parecer em cada caso criará muitos problemas operacionais.
Se a atenção médica em caso de acidentes ou doenças graves é atualmente tão precária, e os erros médicos no país se reproduzem como coelhos, como será a “eficiência” de uma comissão para algo que a lei já considera como um fato anormal?
Se dar um parecer favorável ao aborto é um “favor” que o Estado faz às mães desesperadas, será que isso será levado a sério? Ou ainda, será que a autorização será dada em tempo ou quando já seja tarde demais?
Bom, observando o quadro dos países em relação ao aborto (vide) podemos tirar uma conclusão “otimista”. Em Direitos Humanos não estamos tão bem como na economia (onde ultrapassamos o Reino Unido), mas tampouco estamos tão mal: nossa lei de aborto será mais avançada que a da Síria e do Sudão, e quase tão boa quanto a de Camarões e a do Haiti...

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