Os Ovos das Cobras
Carlos A. Lungarzo
Na década de 60 se consolida a
transformação de uma sociedade herdada do fascismo, da teocracia e do
absolutismo, num novo Ocidente que se propôs realizar os projetos de
emancipação, igualdade e solidariedade tão caros aos iluministas. Uma parte
ainda pequena desse projeto foi realizada, mas o preço foi muito alto: beirou-se
a guerra nuclear, se desenvolveu a guerra de Vietnam, e milhões de pessoas
sofreram repressão, tortura e morte. A chamada Guerra Fria promoveu golpes de estado e ditaduras em quase todo o
continente americano e, naqueles países onde os golpes não foram viáveis, como
o México, a brutalidade militar se fez sentir através do genocídio. (Refiro-me
à chacina na praça de Tlatelolco, na cidade de México, em outubro de 1968)
A América Latina e o Caribe tiveram
dúzias de golpes de estado e ditaduras desde o século 19, mas na década de 1960
triunfa no Brasil o mais paradigmático golpe da Guerra Fria e a mais influente
de todas as ditaduras da região. O papel do Brasil como principal aliado do
imperialismo americano confluiu, no dia 1º de abril de 1964 com tudo o mais
reacionário e truculento da sociedade: a herança integralista, a escravocracia,
o começo do Opus Dei, o coronelismo e
o sonho subimperialista, entre outras mazelas.
Não é que o golpe brasileiro tenha
sido o mais cruento. Em média, ele cobrou menos de 2 vítimas fatais por cada
100.000 habitantes no período 1964-1985, contra cerca de 130 na Argentina de
1974-1983, e por volta de 15 no Chile de 1973-1990.
Tampouco foi o primeiro dos grandes
golpes. A geração de meus pais sempre lembrou o golpe da Argentina de 1955, em
que aviões com a cruz católica e a expressão “Cristo Vencerá” atacaram as
favelas da periferia de Buenos Aires com “tapetes” de bombas que foram ouvidos
durante dias, e produziram um número de vítimas nunca calculado. O bombardeio
massivo da própria população é algo que só tinha sido visto antes em Guernica,
durante a Guerra Civil Espanhola. Mas este golpe não foi muito conhecido no
exterior, porque suas vítimas foram exclusivamente membros das classes
populares, e os intelectuais o apoiaram.
A ditadura brasileira, sem ser a mais
cruenta, foi a mais organizada, a mais longa e a que conseguiu maior suporte
dos países capitalistas e dos civis. Também foi a primeira amplamente conhecida
no exterior pela aplicação sistemática da tortura, embora o uso de tormentos
fosse já totalmente corriqueiro na Argentina, ao ponto que, em agosto de 1962,
o uso de máquinas de choque elétrico gerou um apagão na rede elétrica de Buenos Aires. Mas a direita brasileira
tornou a tortura uma espécie de profissão, estimulada pelos instrutores
americanos, o que, combinado com a grande resistência da esquerda, criou uma
imagem mundial altamente visível do terrorismo de estado brasileiro.
Brasil teve um movimento popular que se
organizava desde antes da Segunda Guerra, e uma onda riquíssima de cultura de
protesto que gerou peças de grande beleza, como os poemas de Chico Buarque.
Entretanto, a ditadura e seus aliados conseguiram se consolidar por causa da desmesurada
estratificação social e da vigência dos valores e praxes de uma sociedade
escravagista que nunca renunciou a sua matriz.
Novamente, o Brasil não foi o pior
cenário das Américas, e há quem diga que outros países da região têm ainda mais
miséria e injustiça, mas foi o modelo mais apurado de uma sociedade com uma
população pobre invisível. A ditadura
deu concreção e viabilidade ao desejo das oligarquias feitoras e das classes
médias emergentes: construir uma sociedade modernizada onde os projetos são
pensados para uma minoria branca, européia, formalmente educada, com forte
identidade monoteísta, que não ultrapassa o 15% do país.
Na Argentina, você sai à rua e pode
descobrir, procurando ao esmo, que uma pessoa de cada 6 ou 7 teve um amigo, um
parente, um ancestral, um colega, um vizinho desaparecido. A ditadura é uma ferida
sempre aberta que permitiu que quase 1% dos genocidas tenha sido julgado e
condenado. (Isto parece pouco, mas perfaz um grupo de mais de 100 altos
oficiais militares e policiais, e relevantes agentes civis e eclesiais). O
mérito de julgar os crimes militares foi de uma minoria corajosa de defensores
dos DH (As Madres e Abuelas de Plaza de
Maio e alguns outros), que lutou duramente contra políticos covardes ou
fascistas que queriam esquecer.
O esquecimento que se propôs na
Argentina entre os anos 1986 e 1990 foi ainda pior que o do Brasil. Políticos
de direita, mas também de centro, santificaram a amnésia dos crimes de estado
com um dos mais iníquos documentos conhecidos, a Lei de Obediência Devida. Esta não apenas mandava esquecer, mas
também tornava legítimas as atrocidades cometidas sob a disciplina militar,
premiando, além da crueldade, a covardia sempre inserida nos atos de
obediência. A situação começou a mudar em 2003, porque aquele grupo de
ativistas manteve viva sua luta durante duas décadas de escuridão, e conseguiu
influenciar o judiciário em 2005, quando estas anistias foram declaradas
inconstitucionais.
Não pode dissimular-se que, quase
sempre, um exército só é realmente derrotado
quando sofre um colapso nas mãos de outro exército ao qual considera “adversário”
na luta pelo poder. A ditadura argentina se desgastou, mas poderia ter
ressurgido de alguma maneira, aproveitando a tradição fascista da sociedade. Mesmo
sem apoio americano e com a oposição dos grupos de DH, poderia ter-se
“reciclado”. Isso não aconteceu porque os militares foram derrotados na Guerra
do Atlântico Sul. Embora eles fossem, após sua saída, julgados por iniciativa
de uma minoria, a maioria da sociedade
apoiou esse julgamento porque guardava enorme rancor pela perda das Malvinas, e
não pelas vidas humanas. Os observadores esclarecidos afirmam que, se os
militares tivessem obtido as ilhas, as grandes massas os teriam idolatrado
durante décadas, teriam repudiado a memória de suas vítimas, e teriam linchado
todos os defensores de direitos humanos.
No Brasil, uma singela comissão de
verdade, que apenas quer construir a historiografia correta e desfazer os mitos
e mentiras das gangues armadas, assusta os dignitários, melindra os partidos e
estimula a insolência castrense.
Negar o direito à memória é uma ação
infame e equivale simplesmente à censura. A memória é a que nos permite recuperar
os fatos passados e, se formos suficientemente rigorosos e tivermos a
informação necessária, conseguir identificar os inimigos e criar defensas contra possíveis
ataques futuros.
A defesa dos ataques inimigos é
essencial, porque (salvo em menos de uma dúzia de casos, como o da Suíça e da
Suécia) não existem forças armadas, sejam capitalistas ou socialistas, liberais
ou fascistas, de países pobres ou ricos, que respeitem os direitos humanos. O
caso já mencionado de México é crucial. Durante décadas, o exército mexicano
foi considerado “civilizado”, porque nunca tinha dado um golpe e seus quadros
sempre tinham respeitado a democracia. Mas, isso não impediu que, durante a
noite de Tlatelolco, cerca de 20.000 manifestantes pacíficos fossem alvejados
desde todos os cantos numa chacina cujo resultado foram 300 mortos. Observem que
quase nenhuma ditadura do pós-guerra exterminou essa quantidade de pessoas numa
única operação.
O exemplo de Costa Rica, um país
quase desconhecido na América do Sul (que muitos confundem com Puerto Rico)
pode servir de elemento de comparação. Este pequeno país vive em paz absoluta
desde 1949, quase sem repressão, e com o relativo bem estar que permite uma
economia modesta, porém bastante igualitária. A explicação é simples: após a
guerra civil de 1948, o governo dissolveu totalmente as Forças Armadas, e nunca
se cogitou sua reconstrução.
Mesmo durante a Guerra Civil na
América Central (1980-1986), Costa Rica preferiu a resistência pacífica contra
os mercenários antissandinistas que a invadiram, e não cogitou nenhuma recriação,
mesmo limitada, de suas forças armadas.
Pelo contrário, após da paz assinada
na ilha panamenha de Contadora, o governo da Costa Rica estimulou a Panamá a
dissolver seu próprio exército. Hoje, já são 19 os pequenos países que têm
eliminado suas forças armadas e, salvo o Haiti, que sofre a ocupação militar de
tropas falsamente chamadas de “forças de paz”, todos os outros, apesar de seu
pequeno tamanho e recursos estão entre os mais igualitários do planeta.
Atualmente, há um forte movimento, com grandes possibilidades de sucesso, para
dissolver o exército da Suíça, que poderia tornar-se o primeiro país
desmilitarizado de porte médio.
Em todos nossos países, a luta contra
o passado ditatorial, em favor das Comissões de Memória e dos Tribunais
Humanitários é essencial, mas deve ser acompanhada pela campanha pela
desmilitarização que já possui em Ocidente milhões de ativistas. Sem dúvida, se
esse projeto tiver sucesso, não será no curto prazo. Mas ficará para dentro de
quatro ou cinco gerações que serão muito mais felizes do que foram as nossas.
Na Costa Rica, por exemplo, ninguém celebra uma “festa” tipo
1º de abril. Pelo contrário, o dia mais popular do ano é o 1º de dezembro, DIA
DA DISSOLUÇÃO DO EXÉRCITO.
A humanidade deve esforçar-se para
fazer um omelete com os ovos das cobras que ainda ficam, antes de que sejam
chocados.
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