quinta-feira, 27 de outubro de 2011

ARGENTINA: CONDENAÇÃO A CRIMINOSOS MILITARES




Argentina: Condenação a Criminosos Militares
Carlos A. Lungarzo
AIUSA 9152711
Ontem foi um dia importante não apenas para a Argentina, mas para todos os países que sofreram ditaduras militares cujos autores ainda não foram processados por seus crimes. Também para os governos democráticos, mesmo os de direita, que tiveram cidadãos sequestrados e assassinados pela última ditadura Argentina. A sinistra canalha uniformada destruiu, entre outros milhares, a vida de estrangeiros de 32 países diferentes. Desses países, alguns colaboraram com a ditadura (como o Brasil, o Chile e a Itália), mas outros moveram céu e terra para que se fizesse justiça com seus cidadãos vítimas, como a Suécia, a França e a Alemanha.
Mas também foi um dia emocionante para qualquer país civilizado. Pela terceira vez na história moderna, após Nuremberg e o julgamento dos coronéis gregos, foi realizado um processo judicial profundo, não condicionado, dentro dos mais rigorosos princípios do direito humanitário, de 18 antigos membros da última ditadura Argentina. Deles, 16 foram condenados, 12 a prisão perpétua, e outros 4 a períodos de 18, 20 e 25 anos de reclusão.
É verdade que todos os países que tiveram ditaduras, salvo o Brasil e a Honduras, instalaram comissões de verdade ou tribunais para julgar os carrascos. A mesma Argentina fez isto em 1984, e levou perante os juízes quase uma dúzia de oficiais. Mas as condenações geradas nesses julgamentos acabaram sendo anuladas.
Antes do julgamento de ontem, a Argentina já tinha condenado 209 criminosos militares e cúmplices civis e eclessiais, mas isso foi conseguido pela administração Kirchner, num esforço minucioso e esforçado desde 2002. Todavia, nenhum desses processos tinha atingido tal quantidade de genocidas, e tampouco seu simbolismo era tão forte. Todos os condenados no dia 26 foram chefões da Escuela de Mecánica de la Armada (Escola de Mecânica da Marinha, ESMA), a mais emblemática instituição dos carniceiros argentinos, e o mais destrutivo dos 360 campos de extermínio que a demência assassina dos fardados, junto com seus muitos cúmplices civis, ergueram ao longo do país.
Há numerosas notícias publicadas hoje (27 de outubro) em português. (Vide.)

O Julgamento do 26 de Outubro

As sentenças pronunciadas em 26/10/2011 pelos juízes Daniel Obligado, Ricardo Farías e Germán Castelli, no 5º Tribunal (Oral) Argentino são o resultado de 22 meses de julgamento oral e de numerosos problemas e sabotagens.  A promotoria apresentou 250 testemunhas e numerosas provas, mas deveu suportar o jogo sujo da defesa, as falsidades, os incidentes provocados, a campanha surda da Igreja e das corporações militares e civis, o assassinato ou sequestro de testemunhas e a intimidação através de atos de terrorismo.
Foi uma luta duríssima contra o espírito da Inquisição, o militarismo, o estado policial, a mídia mercenária, e os advogados sem escrúpulos. Se os algozes foram julgados e condenados, isso foi graças ao enorme esforço da comunidade nacional e internacional de direitos humanos, da minoria de juristas humanitários, e de ativistas compromissados que arriscaram suas vidas numerosas vezes. Vários deles, como Jorge Júlio Lopez (vide) e Víctor Martínez (vide) desapareceram, e outros, como Silvia Suppo (vide), foram assassinados.
Os militares da ESMA foram acusados de oitenta e seis casos comprovados de sequestro, tortura, assassinado e desaparição, mas a dimensão de seus crimes é muito maior. Cálculos muito bem fundamentados estimam entre 4.500 e 5.600 o número total de vítimas do sinistro campo de extermínio. Seria absurdo dizer que, entre os condenados ontem, alguém não fosse cúmplice de todos esses crimes, cuja execução foi resultado de um projeto tão doentio como o que implementaram os nazistas. Se as quantidades são menores, é porque os militares argentinos não tiveram a decisão nem a capacidade dos nazistas, mas não, com certeza, porque fossem menos truculentos.
O jornalista argentino Jacobo Timerman, que fora inicialmente cúmplice dos militares, e que acabara sendo preso e torturado por eles (porque, afinal, os militares não confiavam em judeus, mesmo de direita), disse em seu livro Preso sem Nome, Cela sem número, que a ditadura argentina foi pior que o nazismo, no sentido de crueldade, sadismo e aberrações.
Os 12 condenados a prisão perpétua pelo Tribunal Federal 5º da Argentina são:
Alfredo Astiz – “herói” das Malvinas, assassino de várias freiras, de mães de Praça de Maio e da adolescente sueca Dagmar Hagelin.
Jorge “Tigre” Acosta, célebre psicopata que obrigava suas vítimas a rezar.
E os seguintes: Ricardo Cavallo, Antonio Pernías, José Montes, Raúl Scheller, Jorge Rádice, Adolfo Donda, Alberto González,  Néstor Savio e Julio César Coronel e Ernesto Weber.
Os “feitos” destes genocidas “menores” não merecem ser lembrados. Sua condenação é necessária como amostra da culpabilidade da quase totalidade dos membros das forças armadas do país, salvo quatro coronéis reformados que tentaram se opor à ditadura e foram punidos. Mas, há milhares de oficiais e subordinados que foram responsáveis de crimes desse estilo, e dúzias de milhares de civis que, como no nazismo, foram cúmplices ou omissos face aqueles crimes.
Quem não tem medo de comprometer sua saúde mental lendo a história destes tristes teratomas, pode ver um artigo bem detalhado aqui.
Os crimes não devem ser esquecidos (daí o nome de “comissões de memória”), mas será mais saudável se as distorcidas personalidades de seus autores fossem desterradas de nossas lembranças. Afinal, é fundamental entender que, enquanto existam corporações armadas e superstições que as alimentem, as atrocidades militares não serão extintas. Como dizia Santo Agostinho, há 16 séculos, “a espada e a cruz são duas faces do mesmo espírito”.
Até que a sociedade vire realmente civil e secular, seja adotada uma ética humanista e seja respeitado o direito natural e o conhecimento objetivo, casos como este voltarão acontecer, e acontecem ainda na África e na Ásia.

Por que Agora?

Em dezembro de 1983, o advogado Raul Alfonsín, líder de uma corrente do antigo partido Radical (aqui, “radical” não quer dizer esquerda; o nome tem origem desconhecida), foi eleito presidente. Ele foi o único que se opôs à guerra das Malvinas, mas não por humanismo, pacifismo nem espírito democrático. Ele sempre disse que pensava que a guerra ia-se perder. (Se tivesse possibilidade de ganhar, teria apoiado.)
Quando subiu ao governo, encontrou quase meio milhão de pessoas que tinham perdido parentes ou amigos durante a repressão, das quais muitas exigiam, com enorme resistência, o julgamento dos carrascos. As Mães de Praça de Maio conseguiram forte apoio internacional, e países como a Suécia pressionaram o novo governo de maneira incansável.
Apesar do excecional da situação, os políticos e as pessoas públicas argentinas jamais se colocaram (nem mesmo como projeto de altíssimo risco), o que o presidente da Costa Rica tinha feito em 1948: dissolver definitivamente as Forças Armadas. Na Argentina teria sido mais difícil, mas qualquer preço é pouco para eliminar uma doença social tão nefasta como o crime legalizado. Os golpistas da Costa Rica não tinham sido vencidos por um inimigo externo, como os da Argentina. A derrota do exército argentino pela Grã Bretanha poderia ter sido aproveitada.
Mas, essa possibilidade não foi sequer cogitada, e a única pessoa que falou nisso quase foi linchada.
Alfonsín e seus assessores (que encontraram uma lucrativa atividade na indústria dos falsos direitos humanos) fizeram todo o possível para tranquilizar os militares. Inclusive, deram a eles a oportunidade de julgar seus membros que tivessem atuado “ilegalmente”, deixando sempre claro que os crimes tinham sido abusos, exageros, e não um plano sistemático de genocídio. Aliás, salvo os grupos de DH, todos diziam que a repressão tinha sido necessária, porém descontrolada. Os militares deram uma gargalhada e mandaram os servis políticos enfiar sua proposta no bolso.
Finalmente, não podendo adiar mais a questão, o governo considerou inocentes os que obedeceram ordens, mesmo que tivessem cometido as maiores atrocidades, e apenas decidiu julgar os principais comandantes. Os magistrados, profundamente identificados com os militares, se recusaram a participar, salvo o Promotor Strassera, que tinha subido durante a ditadura, e pensou que, para salvar a maior parte dos militares, era preferível condenar alguns poucos. Anos depois, Strassera tirou a máscara e acusou de “revanchismo” os que continuavam lutando contra o militarismo. Foi assim que só os chefes militares mais altos e mais comprometidos nos crimes foram condenados, quase todos eles com penas simbólicas, salvo em três casos.
Apesar de tanta bajulação e covardia dos políticos (ou talvez por causa disso), os militares se sublevaram quatro vezes em 1987 e 1988, e todas essas vezes suas demandas foram atendidas servilmente pelo governo, cujo presidente chamou os carrascos de “heróis” das Malvinas. Finalmente, Alfonsín mandou ao Congresso duas leis que são atualmente modelos jurídicos de atos infames: essas leis proibiam a investigação de crimes de estado e justificavam (e, indiretamente, também estimulavam) os que tivessem cometido crimes, mesmo aberrantes, por causa de ter cumprindo ordens. Ou seja, além de enaltecer os crimes atrozes, as leis também premiavam a covardia dos que obedecem por medo.
Passaram 15 anos não apenas de absoluta impunidade para os criminosos militares, mas também de silêncio e de perseguição para suas vítimas. Apenas em 2002, com a crise da corrupta classe política argentina, as coisas mudaram. O peronismo clássico, liderado por Menem, tinha perdido as eleições de 1999 para Fernando de La Rua, uma sórdida figura ao serviço do Opus Dei. Mas, em 2001, a população de Buenos Aires se revoltou pacificamente. Quando 29 pessoas foram assassinadas pela polícia durante as passeatas, De La Rua fugiu, mas o país passou meses de instabilidade até a vitória de Néstor Kirchner. A partir desse momento, foi recomeçada a procura por justiça, e as infames leis do governo Alfonsín foram consideradas inexistentes.

O Ovo da Cobra

Toda a América Hispânica foi colonizada por espanhóis que em 1492 constituíram a monarquia dos Reis Católicos. A Espanha foi o único país que teve uma Inquisição própria, foi a sociedade mais repressora da história, e a mais mística e racista de Ocidente. Esses traços se mantiveram em vigência até 1975, e só lentamente se foram atenuando.
As colônias receberam de legado a cultura sanguinária, militarista, carola e etnofóbica da metrópole, mas, como se isto fosse pouco, incrementadas. Com efeito: os colonizadores eram criminosos violentos, estupradores, torturadores, traficantes de escravos, todos eles protegidos pelo imenso poder das congregações religiosas. Entretanto, na maioria dos povos das Américas, os espanhóis encontraram grande resistência dos índios que, apesar dos massacres de indescritível crueldade,  formavam populações de tal tamanho que seu aniquilamento se tornava impossível... ou quase...
Não foi impossível na Argentina. Aí, as nações autóctones foram aniquiladas de tal maneira que, hoje, os descendentes de índios ou mestiços são aproximadamente 0,8 % da população total. Os afro-argentinos, que ultrapassavam os brancos em 1850, foram enviados a operações suicidas na Guerra do Paraguai e, nas décadas seguintes, “empilhados” em bairros pobres açoitados pela febre amarela. Eles simplesmente desapareceram.
Em 1992, Carlos Menem foi muito criticado na Europa quando, numa conferência bicontinental, proclamou que “A Argentina pode orgulhar-se de ser um país sem negros”. Antes disso, em 1981, a junta genocida manifestou oficialmente que a Argentina era  “o país mais branco do mundo”, e propôs ao Brasil e à África do Sul a formação da Organização do Pacto do Atlântico Sul (OTAS), uma paródia da OTAN, para consolidar “o domínio branco e cristão na região”. O Brasil não aceitou.
Argentina é o último país do planeta que ainda não conseguiu anular o concordato que unifica Estado e Igreja, apesar dos esforços dos últimos dois governos.
O primeiro golpe nazista argentino foi em setembro de 1930, dirigido pelo general Uriburu, mas não conseguiu consolidar um equivalente do Terceiro Reich, como pretendia. O Segundo Golpe militar também de natureza fascista foi em junho de 1942, e o 3º, de estilo misto fascista-conservador, em 1955.
A 4ª ditadura, instalada em 1962, com um civil como presidente marionete, foi tão cruenta que durante vários meses houve falta de luz elétrica em alguns bairros, produzida pelo gasto de energia das máquinas de tortura. A 5ª. ditadura, em 1966, foi liderada pelo General Ongania, que ficou famoso por proferir seus discursos... de joelhos!, como homenagem à padroeira do país.
Mas, a 6ª. ditadura, cujo caminho tinha sido preparado pelo governo mafioso da viúva de Perón (assessorado e treinado por policiais e terroristas italianos, entre eles, o famoso Stefano Delle Chiaie), tinha um plano especial: voltar aos valores e à estrutura da sociedade teocrática hispânica. Este projeto parece delirante, mas é similar ao de Hitler.
Como o Führer, os militares argentinos queriam recuperar todas as terras que, segundo eles, teriam sido argentinas. As ameaças contra Chile em 1978 não terminaram em Guerra, porque o Papa João Paulo II, para quem a ditadura de Pinochet e a argentina eram “filhas de seu coração”, fez um acordo para evita-la. Mas ele não interveio em 1982, quando Argentina invadiu as Ilhas Falkland/Malvinas, pois, afinal, Inglaterra era um país protestante. A derrota militar nessa guerra foi um fenômeno único, cuja história ainda não tem sido escrita com neutralidade.
Salvo os militantes de Direitos Humanos (e não todos eles), o resto do país apoiou a bravata militar. Um fato que comoveu todo Ocidente, e despertou alarma até em governos conservadores, foi que os militares queriam reviver a época de conquistas (ou reconquistas) territoriais, ainda após a experiência do nazismo.
Produzida a derrota, a mesma turba que ovacionou os militares, manifestou todo seu ressentimento contra eles, que deveram, lentamente, deixar o governo. Os políticos, em mais de um 95%, apoiaram a aventura militar e, antes dela, tinham sido cúmplices dos crimes da ditadura, tentando negociar um pedaço da torta que os militares comiam sozinhos junto com os padres e os civis mais íntimos, deixando os partidos políticos (todos eles de direita ou centro direita, incluindo nesta qualificação o PCA) a ver navios.
Mas, os políticos não clandestinos (Peronistas, Radicales, Democrata Cristãos, Conservadores e afins), não queriam beneficiar os amigos e defensores das mais de 30 mil vítimas da ditadura. Por tanto, os políticos não pressionaram. Limitaram-se a negociar com os militares os termos da transferência de poder.

E a Prisão Perpétua?

Os crimes contra a humanidade são especiais: não são políticos, como os delitos que se cometem durante a resistência contra a opressão, mas tampouco são comuns, como assalto, latrocínio ou assassinatos não organizados. O problema é que os especialistas em direito ainda se guiam pelas Pandectas.
Desde Nuremberg, os crimes contra a humanidade são considerados uma categoria especial, que merece critérios especiais para seu julgamento. O direito de defesa, a aplicação de normas claras, e as condenações humanitárias e não vingativas devem ser iguais para quaisquer crimes, inclusos os crimes contra a humanidade, pois estes são princípios do direito natural que, como disse no século 2º o jurista Ulpiano “valem para os homens e para todos os seres vivos”.
Mas os crimes contra a Humanidade não prescrevem, e isso ficou demonstrado no julgamento de ontem na Argentina, acontecido 35 anos após os fatos. O direito humanitário é contrário à prisão perpétua, e erradica-la é fundamental, mas a condenação a prisão perpétua de autores de crimes contra a humanidade não é, como torpemente pretendem os bajuladores das casernas, um ato de vingança.
Por um lado, na Argentina existe prisão perpétua, e até que esta bárbara punição seja abolida, se ela for aplicada a outros crimes (como de fato acontece) e não a crimes contra a Humanidade, ficaria o sentimento de que existem criminosos que são piores que os genocidas militares. Criar essa mentira seria confundir a opinião pública. Deve-se lutar contra a prisão perpétua em geral, mas não pode argumentar-se que, existindo a prisão perpétua, os militares merecem uma pena menor.
Por outro lado, sabemos que esses homens tem uma probabilidade quase zero de se recuperar, pois, nos 26 anos de investigação sobre o caso Argentina, nunca se viu algum militar e policial que estivesse arrependido das torturas e assassinatos cometidos.
Vários deles, em julgamentos anteriores, choraram no tribunal, mas não por motivos nobres. Um velho general, que se movimentava em cadeira de rodas, olhou os juízes e a audiência e disse:
-Eu me arrependo... de não ter podido matar mais, de não ter matado todos vocês. Em vez de 30 mil deveriam ter sido 3 milhões...





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